Uma nova oportunidade

UMA NOVA OPORTUNIDADE

Em casa finalmente!! Mais de dez anos se passaram desde a última vez que estive aqui. As lembranças saltavam aceleradas na mente. Nas poucas horas em que me encontrava ali, percebia que a rotina voltara a uma certa normalidade dentro daquela casa. Nesse momento pensava, diante da janela da sala, rememorando fatos antigos e contemplando o grande jardim e mais além, o portão que nos isolava do mundo exterior. Finalmente estamos de volta àquela propriedade onde nos anos iniciais de minha vida, conheci a felicidade que pensava ser eterna, mas que aos sete anos, me mostrou através de um evento que ainda tento compreender e esquecer, não sê-la...

Por mais que desejasse estar longe dali, não foi possível fugir... Lembranças dolorosas ainda me saltam o íntimo... Me impedindo de estar pleno com o ambiente...

Sinto a presença de alguém se aproximando... Não preciso virar para saber de quem se tratava. Sabia muito bem. Aliás, viu-me nascer naquela casa.

- Matando a saudade do lar Felipe? Como você cresceu menino! Deixa vê. Tá quase do meu tamanho...

- Oi tia Dora. Como vai a senhora?

Tentei me livrar do abraço, mas não teve jeito. Me apertou de encontro ao peito com tanta força, que tive até dificuldade de respirar. Depois, olhou-me atentamente, como em um exame médico apurado e, com um sorriso largo, aplicou-me dois sonoros beijos nas bochechas e voltou-se para olhar também o jardim.

Tem certas coisas que não mudam nunca. Essa era uma delas. Tia Dora veio para aquela casa muito pequena, trazida pelos meus avós paternos. Seus pais verdadeiros, tinham falecido em um acidente automobilístico e meu avô a trouxe para fazer parte da família, que naquela época, contavam com três filhos: Duas meninas e um menino.

Sempre alegre e preocupada com todos, não deixava de exagerar nos cuidados. Até demais...

Enfim, estávamos ali, juntos a observar o jardim e a recordar momentos vividos nas traquinagens de um garoto que alimentava muitos sonhos e achava que a vida se resumia àquele espaço... Ficamos assim por um bom tempo, até que tia Dora, quebrando o silencio, apontou para a área do portão...

- Me parece ter alguma pessoa lá no portão. Felipe! dê uma olhada com seus olhos jovens e confirme para mim.

Voltei-me na direção do portão e realmente havia uma pessoa por lá. Confirmei balançando a cabeça.

- Vamos até lá meu menino. Vamos ver de quem se trata...

Não deu tempo nem de dizer sim ou não. Pegando na minha mão e quase me arrastando, partiu em direção ao portão em uma velocidade impressionante para a idade que tinha.

Havia esquecido o tamanho daquele jardim. Era enorme! Dei-me conta disso ao chegar suado e ofegante na entrada, onde um senhor nos aguardava. Ao nos vê, foi logo saudando com um sorriso.

- Bom dia senhores, penso estar na casa da senhora Eleonora. Estou certo?

- Correto senhor! E, quem é o senhor? E o que deseja?

Minha tia Dora era assim. Toda despachada, perguntou sem rodeios.

- Vim por conta da vaga de jardineiro. Fui encaminhado pela agência contratada por vocês. Eles lá me orientaram a estar aqui nesse endereço hoje.

- Já não era sem tempo. Íamos até desistir da contratação. Entre aí e me acompanhe. Vou explicar do que se trata e quais são as regras da casa. A proposito como é o seu nome?

- Meu nome é Francisco. Mas todos me chamam de seu chico. Fique à vontade!

- Ok seu chico. Esse aqui é meu sobrinho Felipe e pode me chamar de Dona Dora. Trouxe sua bagagem? Sabe que vai precisar dormir no serviço né?

- Sei sim senhora!! Fui orientado de tudo. Não se preocupe! Só me mostre onde tenho que me alojar e exatamente o que querem que seja feito.

- Me acompanhe!! Não percamos tempo! Temos muito a fazer...

Acompanhei aquele homem gentil e sorridente por toda a extensão do jardim. Minha tia Dora, deu a volta pela lateral da casa indo em direção aos fundos onde havia outra construção isolada. Tratava-se do local onde meu pai ensaiava e compunha suas músicas. Ele quando em vida, exercia a função de maestro e era excelente musicista.

A visita àquela área trouxe recordações dolorosas. Meus olhos ficaram húmidos pelas lembranças que assaltaram a mente naquele momento. Fato que não passou despercebido de seu chico. Ele estava me olhando atentamente como se soubesse o que estava no meu íntimo.

Aquilo me incomodou. Procurei apressar o passo saindo do seu lado.

Continuamos com a tia Dora, sempre à frente explicando as coisas. Chegamos finalmente nos alojamentos onde o seu Chico permaneceria pelos próximos três meses. Entre as explicações de tia Dora e os consentimentos do senhor Chico, aproveitei o momento para me afastar e deixá-los a sós. Lá, ficaram conversando. Não estava mais interessado nas explicações, mas, em uma outra construção, próxima, cujo telhado se projetava por entre as folhas, bem atrás dos alojamentos.

Fui andando até as escadarias de acesso... muitas folhas e arbustos encobriam seus degraus. Fiquei um tempo a contemplar o local. Mesmo mal tratado era de uma beleza rara. As flores que ornavam as escadas, continuavam lá, como se o tempo houvesse parado para elas. Exalavam um odor agradável que despertavam memórias afetivas de criança. Olhando melhor, percebia-se que ninguém ia ali já alguns anos. Pelo menos não por aquelas escadas. Era uma construção impressionante. Haviam dois espaços: um para a música e um outro para a pintura de telas e obras de artesanato. Ambos convivendo harmonicamente. Queria descer, mas aquelas escadas despertavam algo em mim, uma sensação de angustia, de medo. Minha respiração estava como que acelerada e o meu pulso acelerou junto com a respiração.

Percebi estar e uma espécie de paralisia que me impedia de andar. Estava próximo ao topo, em um dos primeiros degraus de descida, estático. Imagens embaçadas vieram à tona, reabrindo feridas que acreditava estarem cicatrizadas. Lágrimas escorreram pelas minhas faces espontaneamente sem que pudesse detê-las. Fiquei inerte por um bom tempo, preso ao chão, tentando chamar a atenção sem conseguir, apenas revivendo cenas distantes em minhas memorias, em um loop que não queria se desmanchar.

Queria sair dali correndo, mas as pernas não obedeciam. Queria gritar, mas a voz não saia. Não sei por quanto tempo fiquei naquele estado, olhando fixamente para o local, buscando enxergar algo lá embaixo, alguma coisa... uma imagem se formando, algo se mexendo... a respiração acelerada... o suor na testa...

Até que de minha garganta saiu um grito involuntário, carregado de todo sentimento que naquele momento experienciava.

- Pai... Cuidado!!! Cuidado!!! Cai sem sentidos...

Acordei em meu antigo quarto, na casa principal. Estavam lá, minha irmã Felícia, desenhando algo no caderno, tia Dora conversando com um senhor que logo reconheci como sendo médico e amigo da família. Doutor Ricardo.

Assim que perceberam que havia acordado, voltaram as atenções para mim. E aí, começaram aqueles intermináveis questionamentos.

- O que houve Felipe? Graças a Deus! tudo bem com você. Me assustou sabia? Disse a tia Dora colocando a sua mão sobre mim.

Minha irmã assistia a tudo com verdadeira curiosidade. Queria saber o que houvera lá e, não despregava os olhos da minha direção.

O doutor Ricardo apenas acompanhava os movimentos da tia Dora e com um sorriso discreto me saudou, acenando com a cabeça.

Dada a insistência com as perguntas menti para eles. Estava um pouco confuso e ao mesmo tempo envergonhado com a sena que devia ter proporcionado. Inventei ali uma história.

- Não tomei café hoje de manhã e o esforço da viagem provocou vertigens. Estava olhando o jardim e de repente fiquei tonto e desmaiei. Foi isso que aconteceu...

A tia veio logo ensaiando aquele sermão que já conhecia bem. De ficar sem se alimentar longas horas, de ter feito um lanche ao chegar, de ter falado com ela, etc, mas para minha irmã, seus olhos brilhavam. Ela sabia que estava mentindo.

Passados essa avalanche de preocupações iniciais, o doutor fez mais uns exames, sugeriu que, assim que fosse possível, fossem feitos alguns exames laboratoriais e deu como encerrado sua visita. A tia feliz da vida, acompanhou até a saída e foi providenciar algo para que eu comesse.

Restava no quarto, naquele momento, apenas a Felícia... Com aquela postura quase insuportável de irmã mais nova e enxerida. Sabia que não ia ser fácil me livrar dela. Fiquei esperando os seus questionamentos que não demorou muito.

- Pode me contar o que ocorreu lá? Você pensa que me engana? Lhe conheço mito bem! Vai, desembucha!

Queria ficar sozinho naquele momento. Mas sabia que não ia ser fácil me livrar da minha irmãzinha. Busquei ganhar tempo para poder elaborar algo mais consistente e convencê-la. Não iria dizer a verdade. Poderia ser uma meia verdade.

- Você está parecendo um policial querendo extrair a confissão de um suspeito de crime! Calma vou contar o que ocorreu. Mas, primeiro me diga como cheguei até aqui. Pode fazer isso?

- O novo trabalhador, o seu Chico, foi que lhe trouce juntamente com a tia Dora. Ela disse que você estava com ela mostrando as acomodações do novo empregado, quando gritou algo e na sequência caiu no chão desmaiado. O senhor Chico o pegou juntamente com a tia e trouxeram para seu quarto. Essa é a versão da tia. Agora quero saber o que ocorreu de verdade lá!

- A verdade é que aconteceu de novo. Quando fui ver a escada que dava para o estúdio e o ateliê de nossa mãe, senti uma dor na cabeça e apaguei. Não conte para ninguém isso! Não quero estar de novo indo para psiquiatra, tomar aqueles remédios ou coisa do gênero. Fica com sua boca fechada! Não voltarei por lá, enquanto estiver aqui.

- Olha Felipe, sou sua irmã e quero o seu bem. Não deveria conversar com alguém adulto sobre o que lhe aconteceu hoje? Não seria mais prudente? Vou acreditar em você, mas ficarei de olho. Se perceber algo diferente eu mesmo conto para mamãe quando ela chegar.

- Fique tranquila! Não vai ocorrer de novo. Prometo...

A nossa conversa se encerrou ali, com a entrada de um generoso lanche feito pela tia Dora. Lanche não! Almoço. Tive que comer forçado. O meu medo agora era passar mal por conta da comida em excesso.

Depois que todos saíram do quarto, busquei revisar na memória o que havia acontecido comigo...

O acidente

Era uma quarta feira. Já havia cinco dias que estávamos todos reunidos. Eu, minha irmã Felícia, tia Dora, minha mãe, minha avó paterna, tia Carmen, tia Cândida e o casula da família, tio André e meu pai. Era raro os momentos juntos. Normalmente, nos encontros com a família, sempre faltava algum membro por impedimentos diversos. E quando se juntava, todos, como naquele momento, era uma muvuca só.

Havia acordado já um tempinho. Estava no jardim, apreciando o ar e a quietude do lugar. Nasci ali, e na plenitude dos meus sete anos não encontrava lugar melhor para se viver.

Minha mãe era artista plástico. Fazia escultura e pintava como ninguém. Só vivia viajando por conta dos compromissos.

Meu pai, maestro e compositor, vivia quase sempre ali, naquele cantinho do céu, como ele chamava, envolto em suas composições e nos arranjos que fazia para os músicos que o contratavam.

O dia estava meio frio. Com nuvens anunciando chuvas, mas nada impedia do prazer que sentia em ficar ali, imerso, ouvindo os sons da Natureza. Na verdade, esse hábito copiei de meu pai, que ao acordar, sempre caminhava pelos jardins e depois, sentava num banquinho quase esquecido ao lado do seu cantinho de Céu, como ele costumava chamar aquela parte da propriedade.

Cantinho do Céu era o local em que ele se isolava da casa, para desenvolver seus trabalhos. Construção feita por meu avô, para os saraus de fim de tarde com a família e amigos. Vovô era músico e gostava de receber os amigos para um final de tarde naquele lugar. Era uma réplica em miniatura de um conservatório de música onde vovô aprendeu a tocar alguns instrumentos quando em vida. Não cheguei a conhecê-lo. Quando nasci, havia pelo menos dois anos de seu falecimento.

Mais tarde, meu pai fez uso daquele ambiente e transformou no seu escritório de trabalho. Mantinha também a tradição de tocar para a família e amigos que nos visitavam.

Quando conheceu minha mãe em uma de suas turnês, modificou o espaço para que ela pudesse desenvolver seus trabalhos também ali. Mãe pintava com maestria. Aliás, todo o nosso jardim está retratado em várias molduras feitas por ela.

Mas aquele dia, estava reservado para algo muito diferente de tudo que poderia ser imaginado. Na verdade, se pudesse apagar da memória, assim o faria com muito prazer.

Pai como sempre, acordou bem cedinho, veio para fora da casa. Da janela observava-o. Olhou as plantas uma por uma. Respirava de vez em quando com os braços abertos e olhando pro céu como se estivesse em oração. Eu imitava-o quase sem sentir.

Estava na hora de sair da cama e encontrá-lo. Desci descalço e fui para fora da casa ainda de pijama.

Encontrei na mesma posição, braços abertos, olhos fechados e rosto virado para o céu. Fui de mansinho e abracei uma de suas pernas com força.

Ele me olhou e sorriu como sempre fazia. Meigo, alegre. Sempre de bem com a vida.

- Veja Felipe um pássaro preto na arvore. Ouça ele cantar. Vamos fazer silencio em respeito.

Olhei na direção e o vi entre os galhos um pequeno pássaro a soltar um canto lindo!! Ficamos um bom tempo ali parados apreciando o momento.

Depois fomo sentar em um pequeno banco que havia ali perto. Agora era hora, hora de apreciar as roseiras que haviam por ali. Sentir seu perfume. Vovô as havia plantado para minha avó. Tinha roseira de várias cores. Uma profusão de cores e tipos.

Ficamos um tempo ali sentados quase que paralisados pelo momento. Dizíamos muito sem pronunciar palavras.

- Pai!!! Podemos terminar aquela música que o senhor começou fazendo para mim?

- Oh filho! Claro que podemos. Você vai me ajudar não?

- Sim!!! Vamos agora?

- Mocinho, primeiro a gente toma café, escova os dentes, calça umas sandálias e, só depois a gente vai. Combinado?

- Mas vamos escondidos. Não quero que ninguém ouça antes de estar pronta. Se Felícia acordar vai querer vir atrás e aí não vai dar certo. Promete?

Ele olhou-me com um sorriso no rosto e pediu para eu me aprontar. Sai correndo para a cozinha, ver se já havia algo pronto para o café da manhã. Meu pai normalmente tomava café tarde, com a mamãe.

Nesse dia tomei leite com canela e beiju feito na hora, lá mesmo na mesa da cozinha. Aproveitei peguei uns biscoitos, umas maçãs para que, se sentisse fome mais tarde, ter algo para comer. Fui pegar minhas sandálias que não sabia onde havia deixado. Tinha que ser rápido e discreto para aproveitar bem aqueles momentos lá no cantinho do céu. Sabia que se o pessoal todo acordasse, seria difícil ficar lá embaixo sem interferências. Procurei por todos os lugares que normalmente deixava. Não as encontrei. Por fim, vi as sandálias de minha vó. Um pouco grande para os meus pés, mas serviria. Calcei-as e parti para onde havia deixado meu pai.

- Vamos pai! Vamos rápido antes que o povo da casa acorde. Peguei-o pela mão e puxei.

Sentado ainda no banco, me olhou como que a certificar se estava tudo certo. Levantou-se e começamos a andar em direção as escadarias de acesso ao ambiente que mais gostava de estar. No meio daquelas arvores frondosas, ficava o cantinho do céu. Lugar mágico. Ali, sentia uma paz indescritível. O tempo parecia não existir naquele lugar. Pássaros de vários tipos e cores, faziam seus ninhos bem pertinho do solo. Dava para ver seus ninhos e ovos com as novas ninhadas.

Estava ofegante, ansioso, queria logo estar lá. E, no primeiro passo que dei para descer as escadas, tropecei na sandália e cai. Sai embolando escada abaixo, tudo rodando, ate parar e perder a consciência. Não sei quanto tempo fiquei desacordado. Ao recobrar os sentidos, sentia uma dor forte na cabeça em contraste do bem estar, de estar deitado sobre algo macio que me protegia do chão duro e frio daquela manhã. Aos poucos, fui tomando consciência: olhava para os pequenos arbustos que projetavam seus galhos próximo ao meu rosto. Não conseguia me mexer direito. Sentia dores pelo corpo todo. Tentei movimentar as pernas e uma delas estava presa sobre algo que não visualizava direito. Havia algo muito pesado sobre mim. Com muita dificuldade e sentindo dores muito fortes, comecei a me desprender do que estava me mantendo preso. Logo percebi estarrecido, ser meu pai desacordado sobre mim.

- Pai acorde!! Acorde pai... porque não levanta? Balancei ele sem compreender direito o que havia ocorrido... assim foi como nos encontraram. Eu, em prantos, por sobre ele, tentando acorda-lo...

Agora, ali no quarto, como antes, a me recordar das cenas de dez anos atrás como se fora ontem. Os mesmos sentimentos, as mesmas emoções... Afundei o rosto no travesseiro e deixei que as lagrimas viessem à tona. Assim adormeci...

Encontros e despedidas

O dia seguinte começou de forma movimentada com a chegada de minha mãe. Ela estava bastante agitada por conta dos últimos preparativos para a turnê que faria pela Europa, divulgando seus trabalhos e os de outros artistas plásticos acolhidos na fundação criada por ela e minha avó, em homenagem à memória de papai.

Seriam cem dias longe de casa, em terras estrangeiras. Durante esse período, tanto eu quanto Felícia ficaríamos sob os cuidados de tia Dora. Aproveitaríamos os meses de férias escolares para descansar e visitar amigos da região.

Demorei a me juntar à comitiva porque acordei tarde. Tia Dora já havia passado pelo quarto e deixado, sobre a mesa de canto, um vaso de flores frescas que ela colhia todos os dias. Era um hábito que mantinha desde que me lembro: substituir as flores antigas por novas, enchendo o ambiente com um aroma suave e uma sensação de renovação.

Ainda sonolento, troquei-me lentamente e fui até a janela, atraído pelo burburinho das pessoas do lado de fora. Parecia que alguém mais havia chegado e estavam sendo recepcionados. Entre as silhuetas, pude distinguir a figura de minha mãe. A Felícia já estava também por lá, o que me fez apressar os passos para encontra-los, antes que minha irmãzinha dissesse bobagens a minha mãe.

Nos abraçamos como de costume e trocamos palavras de afeto e carinho. Havia ao seu lado um senhor que mais tarde nos foi apresentado como o curador que estava na organização do evento. Mãe depois da morte de papai, mergulhou junto com a minha vó em eventos culturais e organizações festivas, ocupando o tempo de maneira que o pouco que sobrava, agente desfrutava ao máximo juntos.

Almoçamos todos juntos: Tio André, tia Carmen eram os que mais falavam, empolgados com a viagem. O resto do dia, ficamos todos andando e descansando em baixo das arvores, desfrutando as sombras que se formavam no entorno da casa, colocando a conversa em dia. Sabíamos que o tempo que dispúnhamos era escasso. Apenas minha mãe, minha avó e eu conscientes ou não, evitamos andar para os lados do estúdio.

Passamos os três dias de muita conversa e brincadeiras, as quais me levaram a recordar os tempos de criança quando corria solto pelo quintal a explorar cada cantinho. Uma alegria só. No último dia, nos despedimos com lágrimas nos olhos, prometendo no retorno, ficarmos mais tempo juntos. Tanto ela quanto minha vó, entraram no veículo e partiram para o início de suas aventuras em terras outras. De longe, acompanhei com os olhos até desaparecerem pela estrada. Segurando a mão de Felícia, que se mantinha calada, com os olhos marejados de lagrimas, olhei atentamente em silencio, e nos abraçamos por um longo tempo. Retornamos lentamente para dentro da casa, atendendo ao chamado de tia Dora, que nos convidava para o lanche da tarde.

Ao final do dia, já beirando à noite, com os demais membros da família sentados na varanda à frente da casa, nos despedimos de tio André e tia Cândida que partiram prometendo voltar no final de semana seguinte. Aliás, de todos ali, somente tia Cândida não falou comigo. Desde o acidente com meu pai que ela deixou de falar comigo. Restavam agora, eu, minha irmã, tia Carmen, tia Dora e o senhor Chico que se mantinha até aquele momento, afastado, a nos observar, sentado em um velho banco próximo a um chafariz que tínhamos na frente da casa.

Não demorou muito para manifestarmos o desejo de entrar, a temperatura já começava a baixar e fazia um frio gostoso. Tia Carmen então, como que combinado com a tia Dora, nos informou que levaria Fenícia com ela no dia seguinte. Que havia combinado tudo com minha mãe. Fenícia, claro, não se conteve de contente. Tia Carmen morava próximo do mar e uma coisa que minha irmã gostava era o mar. Sem falar que lá teria o convívio com minhas primas e elas se davam muito bem. Ouvi tudo e esbocei um pequeno sorriso de aprovação que não revelava o verdadeiro sentimento de tristeza que se instalou em mim com a novidade. Com essa deixa, nos despedimos do senhor Chico e entramos para dormir. Fenícia não se aguentava de contente. Pediu ajuda de tia Carmen com as bagagens.

No dia seguinte, após o café da manhã, estávamos a nos despedir de tia Carmen e de Fenícia. Abracei-as com carinho e as acompanhei até o veículo, vendo-as partir. De longe ainda via minha irmã acenar para nós toda contente.

Olhei para tia Dora que sorrindo, pegou em minha mão e disse: - somos nós agora. Estaremos aqui administrando tudo até elas voltarem. Tenho uma serie de tarefas para cumprir aqui e vou precisar muito de sua ajuda. Seu Chico, não dá conta sozinho do que temos que fazer. Posso contar com a sua ajuda?

- Claro tia! É só dizer do que precisa. E, sem se fazer de rogada, ela apontou na direção do seu Chico, que me olhava sorridente.

- Está tudo com ele. Vocês vão fazer uma bela dupla aqui. E, sorrindo, retirou-se para dentro da casa me deixando meio que aturdido.

Seu Chico por sua vez, com um gesto amigável, pediu que me aproximasse. Assim o fiz.

- Jovem Felipe, amanhã a gente começa. Hoje, aproveite para fazer algo que queira para si. Amanhã começaremos bem cedo, umas seis horas da manhã. Iremos concertar a cerca do lado dos cafezais. Está precisando de reparos urgente.

Assenti com a cabeça, ainda aturdido com a esperteza de tia Dora. Sem mais nada a dizer, seu Chico foi tratar de coletar algumas frutas para o suco de logo mais no almoço. Eu, por outro lado, voltei para o quarto onde permaneci deitado, refletindo sobre o desmaio que tive ao chegar na casa que foi meu lar, nos primeiros anos de minha vida.

Um novo começo

O dia amanheceu lindo, pássaros cantando, um perfume suave de flores frescas no ar e um cheiro de café que invadia o cômodo como um convite a me levantar. Tia Dora, acordava muito cedo. Antes mesmo do raiar do dia. Ela sempre dizia que não havia imagem mais linda do que ver o sol raiar e ouvir os pássaros com os primeiros raios, brincando na fonte de água do chafariz. Meu pai tinha esse mesmo habito. Variava apenas que ele sentava no banco que havia entre a cozinha e o cantinho do céu, local de seu refúgio para trabalhar. Doces lembranças aquelas. Mas, chega de nostalgia que hoje, já tinha compromisso cedo. Precisava me aprontar a caráter.

Ao entrar na cozinha, já se ouvia vozes: seu Chico e tia Dora em conversa animada. Ao me verem sorriram e abriram espaço na mesa para que me acomodasse e desfrutasse do café com eles. Aceitei o convite alegremente. Era um dos momentos mais incríveis naquela casa. O momento da refeição em família. Sentia falta daquela atmosfera acolhedora e de sabores. E ali, naquele momento, revivia com força aqueles velhos hábitos. Um deles, o de tia Dora, que queria que comesse de tudo que tinha sido feito para aquele momento. Era uma afronta recusar seus quitutes. Desde criança, lutávamos para driblar a vigilância quanto a alimentação.

Resignado, aceitei o que me foi imposto comer. Não adiantava reclamar. Apenas olhei para o seu Chico, pedindo socorro com o olhar. Ele, por outro lado, parecia se divertir com a situação. Assim começamos nossa manhã de encontros e revelações.

Após o café, que no meu entendimento se transformou em um almoço, acompanhei seu Chico ate a pequena oficina que tínhamos no anexo da casa, para pegar os utensílios que necessitaríamos para cuidar da área onde se encontravam os cafezais.

-Felipe, pega o carrinho de mão que esta la no fundo, para agente colocar as ferramentas que usaremos naquela área. Assenti com a cabeça e fui buscar o carrinho que ele pediu. Ele, por sua vez, ficou escolhendo as ferramentas e um rolo de tela que usaríamos nos reparos da cerca. Só ali, teríamos trabalho para ocupar a manhã inteira.

Ao chegar no local, paramos em baixo de uma velha mangueira que oferecia uma sombra gigantesca. Protegidos do sol pela sua sombra, sentamos para planejar as atividades. Sempre no comando das ações, seu Chico pediu que colocasse as luvas e, de posse de uma sacola de pano, fosse primeiro, retirar os grãos maduros de cafés que estavam por ali. Ele por sua vez, iria avaliar a extensão da cerca a ser consertada.

Cada um então foi desenvolver sua tarefa. Enquanto catava os grãos maduros nos pés de café, seu Chico olhava a cerca, retirava as partes danificadas, limpava o terreno no seu entorno, sempre cantando, fato que não fugiu à minha observação. Não sei quanto tempo permanecemos assim absortos nas atividades abraçadas. Mas, em dado momento, seu Chico perguntou se eu gostava de música. Respondi-lhe quase sem pensar que adorava musica instrumental. Foi a deixa par ele me fazer outras tantas perguntas. – Sua tia Dora disse que você tocava muito bem o piano quando mais jovem e que depois parou.

- Tocava razoavelmente. Meu pai me ensinou desde pequeno. Ficava no colo dele, onde me ensinava as notas musicais, sendo depois meu professor, nos primeiros momentos com o piano...

Velhas recordações saltaram-me à mente e algumas lagrimas se fizeram presentes. Levantei a cabeça como a buscar nas lembranças, aqueles momentos de indescritível alegria. Era uma rotina quase que diária. Descíamos para o “cantinho do Céu” como chamávamos, e ali, saiamos da realidade. Ficava às vezes, observando-o trabalhando em arranjos e composições, e imitava quase sem perceber num pequeno piano que ele mandou fazer para os meus primeiros passos na música. Ele por sua vez, observava me e sorria com a situação. Ali, o tempo passava e não nos dávamos conta. Era necessário ou minha avó ou minha mãe ou até mesmo, tia Dora interromper para que voltássemos à realidade. Ainda sob efeito das lembranças, vi seu Chico se aproximar sorridente e despejar mais uma pergunta.

– Porque parou de tocar? Levei um choque com a súbita pergunta. No primeiro momento fiquei sem saber o que responder. E, de forma maquinal, respondi. – Meu pai morreu e eu fui o culpado... Despejei aquelas palavras de uma forma tão abrupta, como que a me livrar pelo sentimento de culpa que carregava. Lagrimas saltaram me e num choro incontido, sentei me à sombra de uma mangueira.

Mais uma vez, seu Chico, já próximo de mim, indagou.

- Em que consistiu a sua culpa? O que houve? Pode me dizer?

Após um breve momento, olhei para aquele senhor sorridente, simpático, como a medir se valeria a pena conversar sobre aqueles assuntos que ainda machucavam meu coração. Mas, seu olhar tranquilo, me fez responder seus questionamentos e falar sobre o acontecido.

- Estávamos eu e meu pai no topo das escadas que dão acesso ao “cantinho do Céu”, calçava uma sandália maior do que o meu pé, quando tropecei e comecei a cair. Meu pai, na tentativa de me agarrar e proteger, caiu comigo, e aí, não acordou mais... AS lágrimas estavam banhando meu rosto, mas não me importava com isso... Ficamos em silencio um bom tempo. Apenas o choro de um adolescente e o barulho da natureza se faziam ouvir.

Aos poucos fui me recompondo, um pouco envergonhado, pelo descontrole emocional.

- Agora entendi o porquê de todos dessa casa evitar andar por ali. Cuidam de tudo, menos daquela área, que virou um deposito. Mas, Felipe, você amava seu pai?

Virei em sua direção, como que indignado com a pergunta feita. Respondi meio que agressivamente... – Claro!! O senhor não tem o direito... Fui interrompido pelo velho Chico que sorridente falou lenta e calmamente : - Se você amava seu pai e quer honrar a sua memória, não seria correto você volta a tocar, cuidar daquele ambiente e mostrar através da sua música, o quanto o amava? Ao invés de ficar fugindo, como todos da casa? Se punindo por algo que você não sabe direito se teve realmente culpa? Já pensou que pode ter havido outra coisa que levou ao acidente? Vai passar a vida toda se punindo? Lá onde seu pai deve estar, será que ele está feliz por vê vocês nessa autopunição?

Felipe! Já está na hora de mudar essa situação. Enfrentar de frente esses medos. Pense com carinho sobre o que conversamos aqui. Estou disposto a lhe ajudar a reconstruir aquele espaço como antes, a vencer seus medos, se você me prometer que vai voltar a se dedicar à musica, como forma de honrar a memória de seu pai. Vou ajeitar o galinheiro que está precisando de uma pequena reforma e você, quando terminar de catar o café, leva para o galpão anexo e vem se encontrar comigo lá no galinheiro.

Aquelas palavras do velho Chico, caíram em minha alma como alfinetadas, não conseguia raciocinar e nem responder. Apenas assenti com a cabeça e fiquei olhando-o se afastar. Demorei algum tempo para cair em mim. As palavras do velho Chico ainda ressoavam em meu íntimo. Muitas verdades ali foram ditas. Esses anos todos, recluso em minha dor, não percebi que minha avó, mãe e tia Dora, também sofriam. Que era preciso ajuda-las na superação. Vencer aquele ciclo paralisante e continuar a viver. Precisava ouvir o que ouvi. Tantos anos de terapia e uma pessoa humilde, foi quem forneceu a chave para o despertar. Realmente, tinha que honrar a memória do meu pai. Por tudo que ele representou para a família, para mim, em especial, por ter convivido mais com ele.

Naqueles dias, antes do acidente, ele estava compondo uma música para mim. Era um segredo nosso para ser apresentado no dia de aniversário de minha avó. Estávamos animado com a surpresa que seria. Todos os dias pela manhã, logo cedo, íamos para o cantinho do Céu, trabalhar na surpresa. Com o acidente, tudo parou. Aliás, pensando claramente, onde foram parar os escritos de meu pai? Será que ainda se encontram por lá, no seu ambiente de trabalho? Ou alguém guardou? Questões que emergiam do meu íntimo e buscava respostas. Já era hora de buscar essas respostas e, como disse o velho Chico, honrar a memória do meu pai. Retornei às atividades da coleta do café, desta vez, mais rapidamente para me juntar lá no galinheiro com aquele que iria me ajudar a elucidar o caso.

Revolvendo o mistério – Parte I

- Cheguei seu Chico. É pra fazer o que?

- Jovem Felipe! Tudo certo com o café? Colocou lá no galpão? Venha aqui, segure esse arame. Vamos esticar para reforçar e levantar mais a tela de proteção. Tem galinha que está pulando a cerca.

Prontamente obedeci. Segurei o arame e estiquei conforme orientação dele. Seu Chico mostrava grande habilidade nas coisas que fazia. Não tinha serviço que ele não fizesse com perfeição. Fiquei observando sua destreza e animação durante as atividades. Não perdia o humor e sempre com uma música nova a cantar. Comecei a acompanha-lo nas músicas, quase sem perceber. Quando errava, ele sorria e repetia o trecho e continuava cantando. Assim concluímos os serviços daquela manhã.

- Hora de se refrescar e irmos para o almoço. Sua tia já está nos aguardando lá na cozinha. Agente se encontra por lá. Disse ele.

Assenti com a cabeça. Saímos dali, completamente suados. Merecíamos sim, um bom banho. Sai assoviando uma das músicas cantada por ele, em direção à casa, para o merecido banho.

Mal sai do chuveiro, tia Dora, já estava tocando o sino chamando para o almoço. Era assim, ali. Todos eram avisados da hora das refeições através do toque do sino, instalado ainda na época do meu avô. Doces recordações aqueles badalos. Busquei me organizar para então sair em direção à cozinha. O odor da comida feita por tia, já chegava aos meus sentidos como prenuncio de coisas boas.

Parecia que havíamos combinado o horário. Cheguei ao mesmo tempo que o seu Chico à cozinha. Tia Dora, já estava colocando seus quitutes à mesa, parecia que teríamos um batalhão de pessoas ali hoje, de tanta comida feita. Ela era assim, exagerada em tudo. Os anos passaram, mas, continuava do mesmo jeito. Almoçamos os três entre risos e contação de histórias. Depois do banquete, tia Dora foi passar um cafezinho para ela e seu Chico que aproveitou o momento que ficamos a sós e perguntou se eu havia pensado na proposta investigativa que havia feito. Eu, claramente excitado, pela possibilidade de transgressão e descobertas, acenei positivamente. Notei que até a respiração estava acelerada com a perspectiva que se apresentava. Tia Dora me vendo daquele jeito, perguntou logo: - está passando bem Felipe? Essa suadeira foi a comida? Deu na fraqueza meu filho? Dizendo isso, sorriu ruidosamente, enquanto servia o café ao seu Chico que também sorria. De minha parte, fiquei calado.

Após o cafezinho, Seu Chico informou que iria dar continuidade aos serviços de limpeza do terreno e poda das plantas. Que levaria provavelmente o resto da tarde e o dia seguinte todo. Que Precisaria imensamente da colaboração minha. Tia Dora apenas assentiu com a cabeça afirmativamente.

Saímos rapidamente para o jardim, no nível mais baixo da casa, próximo ao alojamento em que seu Chico ficava. Ali, seria a nossa base de operações. Lá, em baixo das arvores, seu Chico expos a intenção.

- Felipe, a ideia é o seguinte: você fica responsável pela organização da parte de dentro da construção e eu fico com a parte de fora. Hoje, iremos juntos para avaliarmos a situação. Sei que as lembranças que aquele local vai despertar em você serão intensas. Mas, foque na nossa proposta. Se começar a sentir-se mal por alguma coisa, me chame que estarei por perto. Durante às manhãs a gente faz os serviços que dona Dora nos pede e as tardes, aqui. Alguma dúvida?

- Não seu Chico. Só vou pedir que nos primeiros momentos, façamos juntos. Ainda tenho receio de que as lembranças que ainda trago do ocorrido sejam mais fortes do que eu.

- Combinado! Vamos olhar dentro? Ver o que nos espera? Está pronto?

Assenti com a cabeça ainda receoso se era a decisão certa. Ao nos aproximarmos da construção, estava tremulo. Mas, seu Chico não deixava nem pensar. Já foi dizendo e chamando minha atenção.

- Veja Felipe, como está largado essa área. Virou um deposito de coisas inúteis. Olha as plantas sem cuidados, o mato em volta tomando conta de tudo. Vai dar um trabalhão recuperar isso tudo. Venha comigo, vamos olhar dentro.

Caminhamos com dificuldade, pois o mato havia realmente tomado conta do caminho, alcançava as paredes e telhado da construção. Aliás, não se via mais o telhado e sim uma camada de folhas e plantas que cobria tudo que nem um grande tapete.

Com alguma dificuldade alcançamos a porta. Também tomada pelo mato. Tivemos dificuldades em abri-la. La, no interior, haviam muitos objetos largados: telas quebradas, mofadas pela umidade e tempo. Alguns trabalhos de minha mãe inacabados, outros completos estavam pelos cantos da pequena sala que dava acesso ao salão principal. Alguns moveis velhos, outros quebrados. Enfim uma confusão total. Na sala principal, onde era o estúdio de música de meu pai, o aspecto não era diferente da primeira. Muitas caixas com documentos e escritos feitos, alguns móveis danificados, guardados ali, o velho piano, coberto por uma capa grossa bem no centro do salão.

A visão despertou doces recordações, de quando estava ali, imerso nas atividades de estudos no piano e nas várias brincadeiras com meu pai. Lagrimas balsâmicas escorreram, misto de alegria e saudades. Despertei com a voz de seu Chico ao meu lado.

- Tudo bem Felipe? Como está se sentindo?

Com o dorso da mão enxuguei as lagrimas e balancei a cabeça em sinal positivo de que tudo estava bem.

- Ótimo!! Aqui será seu campo de trabalho. Seu objetivo é restaurar esse local como era antes. O que você retirar, colocaremos lá na oficina. Os papeis e caixas com documentos, colocaremos na sala de artes de sua mãe, para analisarmos melhor. Pode ser? Eu estarei sempre ao lado, do lado de fora, efetuando o meu trabalho para recuperar o ambiente externo como era antes. Lembre-se: sua tia, mãe e avó ainda não estão preparadas para isso. Manteremos em segredo por enquanto. Há, pode me chamar de “Arandu” é como meu povo me conhece.

-Arandu? Não entendi? Não é Chico? Quer dizer, Francisco?

- Na língua tupi guarani da qual sou descendente, me chamam Arandu. Antes que você me pergunte: Quer dizer, “conhecer com a experiencia de vida”, “ouvir o tempo”. Coisa de meus ancestrais. Quando nasci, o meu pai, “Anhangá”, me deu esse nome. Disse que minha vida era andar pelo mundo, consertando coisas onde precisassem. E assim, andando pelo mundo, estou aqui... Mas, mudando de assunto, se prepare para começarmos amanhã pela tarde. Por hoje, você pode descansar. Vou adiantar umas coisas que tenho que fazer na parte do chafariz, desentupir a passagem de água e retirar as folhas no entorno. Aproveitar o sol para pintar a estrutura que está meio desgastada.

- Vou com o senhor, quer dizer, vou com você. Eu preciso estar com alguma atividade para ocupar minha mente. Ainda me sinto abalado quando passo por aqui. Dizendo isso, saímos em direção à frente da casa, para a nossa próxima empreitada.

O resto dia transcorreu normalmente. Fizemos a limpeza do chafariz, pintamos, desobstruímos a passagem da água. Ficou uma belezura. O tempo passou sem nos darmos conta.

Como sempre, tia Dora apareceu para chamar a atenção do horário. Era para irmos tomar banho e nos prepararmos para o jantar. Assim o fizemos. Fui para o meu quarto e só quando entrei no banho foi que percebi o quanto estava cansado. Dia exaustivo, mas compensador. Tomei o banho, e deitei um pouco aguardando o sino ser tocado para a jantar. O que não demorou muito.

- Como estão às coisas meninos? Perguntou tia Dora assim que chegamos. Olhei para meu novo amigo, Arandu, e aguardei que respondesse.

- Dona Dora, estamos nos entendendo muito bem. O rapaz tem ótimas ideias, e algumas delas vamos colocar em prática. Esse recanto que vocês têm aqui, vai ficar um espetáculo. O pessoal quando retornar da viagem, não vão reconhecer. Ou melhor, não vão querer sair mais daqui. Ela sorriu, e convidou para sentarmos e degustar as delícias que havia preparado.

O jantar transcorreu com muito bom humor. Hora eu falava, hora tia contava velhas histórias da família, hora Arandu contava causos do seu povo e de sua infância. O tempo passou quase sem sentirmos. O relojão de parede que havia na sala, ainda da época de meu avô, tocou dez horas da noite. E aí foi um corre, corre, para irmos organizar as coisas e dormir. O dia seguinte prometia.

Pela manhã, a velha rotina do café, depois fomos podar plantas no entorno da área da cozinha. As flores que haviam ali, estavam mais viçosas, exalando um odor que me despertaram velhas lembranças. Aquilo serviu como um estimulante para as atividades que viriam pela tarde.

Finalmente chegou o momento. Pela manhã, só pensava em estar ali, no “cantinho do Céu”, e agora, estava olhando cada detalhe daquela área, que foi o quintal de minhas primeiras aventuras de criança. Segui exatamente as orientações de seu Chico. Na sala que antecedia a área de música, abri espaço, separando no canto as telas que estavam danificadas, as que poderiam passar por alguma reforma e as velhas tintas e pinceis espalhados por todo o local. Reuni todos e coloquei em uma pequena sacola de lona para ver que destino seria dado.

Haviam também outras telas, pintadas por minha mãe, com a imagem das flores e do jardim no entorno daquele local. Cópias fidedignas de como eram as coisas por ali. Essas, apesar do tempo, resistiram aos maus tratos e continuavam a representar imagens vivas presas às paredes, como a contar a história encantada daquele local. Assim passei a tarde, entre contemplações, recordações e atividades de limpeza daquela parte. O dia se despediu de nós e eu, não consegui chegar na metade do que precisava fazer por ali. E olha que só estava abrindo espaço para colocar coisas que viriam da sala de música.

Suando em bicas, seu Chico me encontrou ainda organizando em pequenos volumes as coisas que no meu entendimento, não serviam mais. Rindo, e com um olhar de aprovação, me disse: - Jovem Francisco, vejo que você andou muito ocupado aqui. Aquela área, ali no canto da sala, apontou para um dos cantos vazios, vamos deixar livre para colocar as coisas que virão de dentro da sala de música.

Essas coisas quebradas que você separou aqui, apontando para um outro canto da sala, deixa que retiro amanhã. Agora vamos subir, tomar banho que sua tia logo, logo vai nos chamar para jantar. Dito e feito. Bastou sair daquele ambiente que ouvimos o sino tocando. Sorrimos quase que ao mesmo tempo e, cada um seguiu seu caminho para o banho e depois para a cozinha onde tia Dora já estava esperando.

- Finalmente chegaram! Já não era a hora! Porque demoraram? Sentem ai que vou colocar as coisas na mesa. E, não pensem que vão comer e sair sem contar o que fizeram hoje, não vou deixar passar em branco. Seu Chico estava com um largo sorriso, como que adivinhando o que viria a seguir e, claro, já se servindo da sopa de verduras que se encontrava perto dele.

Tia Dora então, olhou para mim com aquele olhar de como quem buscava respostas para algum mistério ou mal feito feito. - Vamos Felipe, desembucha primeiro. O que vocês aprontaram?

- Tia, não fizemos nada, ou melhor, passamos a tarde toda trabalhando...

- Onde? Não enrola! Uma coisa que sei bem, é quando estão tentando esconder algo de mim. E vocês estão com cara que estão escondendo. Sua tia é idosa, mas não perdeu o juízo ainda. Conta logo... Assim, ficou me olhando e olhando seu Chico, alternadamente. Este, continuava a sorrir, como se divertindo da situação. Eu, por outro lado não sabia o que dizer. Se contava o que estava fazendo, ou inventava desculpas.

Seu Chico, tomou a palavra de forma simples e direta. – Estamos arrumando o “Cantinho do Céu”. Tia Dora tomou um choque ao ouvir. Como? Vocês mexerem lá. Felipe, você está bem?

- Claro tia. Estou ótimo. A senhora não sabe a satisfação que estou tendo organizando aquele espaço com o seu Chico. Doces recordações saltam aos meus olhos a todo instante. É como uma parte de mim, voltasse a viver novamente. Me sinto revigorado trabalhando ali. Não tem por que se preocupar.

- Mas Felipe, e o acidente? Falou meio que engasgada, com lagrimas nos olhos...

Seu Chico, interviu educadamente: - Dona Dora, é fato que ouve um acidente que deixou todos tristes, mas ali também se construíram muitas coisas boas. E esses sentimentos não podem ficar esquecidos. Faz parte da história da casa, do local, da família...

Às vezes, é necessário reviver lembranças dolorosas para seguir adiante com a vida. Elas não devem nos paralisar, mas nos fortalecer para as conquistas que teremos mais adiante. Com certeza Felipe sente tristeza ao lembrar dos fatos acontecidos na sua infância, com o seu pai, porem ele tem consciência, que os momentos de felicidade vividos ali, são mais fortes e significativos para a vida e para a memória de seus ancestrais, do que ficar evitando e represando sentimentos, como se fosse uma doença sem cura.

Estava ouvindo seu Chico com os olhos úmidos, enquanto tia Dora, estava com o olhar distante, como a reviver cenas de um passado não tão longe. Primeira vez que a via daquele jeito, reflexiva, pensativa... Após um tempo em silencio, ela falou quase que em um sussurro.

- A verdade, é que desde aquele acidente, nunca mais fui a mesma. Disse Tia, Dora, olhando para o vazio da cozinha, com os olhos cheios d’agua. É como se uma parte de mim, também tivesse ido embora naquele dia. Sabe, todas as noites, acordo sobressaltada revivendo os momentos difíceis daquele dia. Nunca disse nada a ninguém sobre isso. Vocês são as primeiras pessoas a saberem e devem manter segredo disso principalmente de mãe. Ela, sua mãe e tia, ainda não superaram. Mãe quando vem aqui, só dorme a base de remédios e sua mãe fica acometida de dores de cabeça. Sua tia por sua vez, que era alegre e extrovertida, vive calada, pelos cantos, sem mais se expressar e interagir como antes. Só André e Felícia parece não terem sofrido grandes abalos com o ocorrido. Ele era muito jovem na época. Os demais, inclusive eu, sobrevivemos ate os dias de hoje.

Não me dei conta de como, mas percebi estar próximo de tia, abraçando-a carinhosamente e chorando com ela. Ficamos assim um bom tempo, juntos, sentindo o calor um do outro. De repente percebi que haviam anos que não nos abraçávamos assim. Era tão bom, o calor que sentia naquele momento. Ficamos assim por um bom tempo. Só quebrado por seu Chico que disse sem cerimônias: - Como é que é, vão comer ou vão deixar as coisas aqui esfriarem? Sozinho não dou conta.

Tia Dora também sorriu e finalmente fomo jantar. No ar pairava uma atmosfera de leveza e bem estar. Mais tarde, na área externa, em frente da casa, observando o chafariz, voltamos a conversar. Dessa vez foi a tia Dora que perguntou: - E qual é a ideia de vocês? Seja o que for, também quero participar... Já é hora de começar a andar. Assim, conversamos boa parte daquela noite, traçando planos e ações para a recuperação daquela parte da casa. Fomos dormir tarde, mas com uma sensação de bem estar e de alegria que a muito tempo não sentíamos.

Revolvendo o mistério – Parte II

No dia seguinte acordei sobressaltado com o sino tocando de forma frenética. Havia dormido demais. Me arrumei rapidamente e desci para a cozinha. Lá, já se encontravam seu Chico e tia Dora, tomando o café e conversando animadamente. Tia, estava diferente, vestia um macacão e seus cabelos estavam envolto em um lenço. Ao me ver foi logo dando a ordem: - Ou dorminhoco, venha tomar café que temos muita coisa para fazer hoje. Não pense que vocês vão la para baixo sozinhos, vou com vocês. Não vou deixar vocês bagunçarem aquele local mais do que já está. Se é para por ordem, precisam de uma especialista. E por um acaso, essa sou eu. Hoje para o almoço, vão ser sobras de ontem. Nada de reclamação. A cozinha só abriu agora de manhã. Ficará fechada para balanço o resto do dia. A comida será servida lá em baixo mesmo. Seu Chico vai organizar um cantinho para o nosso lanche. Esse, por sua vez, só fazia balançar a cabeça em resposta afirmativa aos devaneios de tia Dora. Assim, com essa animação, descemos juntos, em direção ao “Cantinho do Céu”.

La em baixo, tia Dora, puxou-me com força, segurando minha mão. Estávamos diante da porta de entrada do salão de artes de minha mãe. Eu a observava com atenção. Seu Chico, no caminho, foi fazer a montagem de um cantinho para colocar água e os quitutes que tia havia feito para o dia. Ela olhava a entrada como a recordar momentos importantes em sua vida. Fiquei em silencio respeitando o momento.

De repente ela falou: - Aqui vivi minha infância antes de você, Felipe. Ajudei seu avô a construir isso pedra por pedra. Ainda me lembro ele reclamando comigo para não me machucar. Seu pai tinha apenas três anos e ficava com mãe, na parte de cima. Ele era o mais apegado com sua avó que estava grávida de André. Eu, pôr outro lado, ficava muito com seu avô. Foi ele que me acolheu nesta casa, quando meus pais se foram em um acidente. Sou muito grata a esse casal, que me acolheu e criou como filha. Ajudei a criar seu pai. Era mais velha do que ele três anos e senti muito o ocorrido com ele. Éramos muito ligados. Mãe sempre me dizia: - Dora, toma conta de nosso menino. E assim fazia sem reclamar. Mesmo porque haviam as duas meninas, uma de dois anos e a oura de um ano ainda. Digo a você sem sombra de errar, cuidei de todos aqui, mas de seu pai, gostava mais do que dos outros irmãos. E virando-se para observar a construção disse: - Como deixamos abandonado esse lado da casa. Em memória de meu pai adotivo, seu avô e seu pai, meu irmão querido, vamos colocar ordem aqui e restaurar como era antes. Vamos Felipe, ao trabalho. Dizendo isso, adiantou o passo e, segurando a minha mão, entramos na construção.

Lá dentro, mostrei o que havia feito no dia anterior. Tia Dora olhou com calma, e me pediu que organizasse a sala de música, que ali, ela mesma faria a arrumação. As documentações e papeis encontrados, seriam colocados no local em que havíamos reservado antes, eu e seu Chico.

Deixei tia e fui para a sala de música. Haviam muitas coisas fora de ordem e outras quebradas, amontoadas em todos os cantos. Mal se via o velho piano de meu pai envolto em uma lona grossa em um dos cantos da sala. Poeira era o que não faltava. Cada movimento provocava tosse e espirros. Vez por outra, tia Dora punha a cabeça dentro da sala, olhava e sem dizer nada, voltava para a sala de artes. Nesse ritmo, levamos uma semana na organização do espaço. Faltava agora, lavar os ambientes, limpar os moveis que estavam inteiros, recompor com os que seu Chico havia reparado na marcenaria e pintar as paredes nas cores originais de antes. Tanto pelo lado de dentro quanto pelo lado de fora. As plantas e flores que haviam do lado de fora foram recuperadas, o mato sobre o telhado retirado e as telhas e arvores cuidadas por seu Chico.

As escadarias, que até então nem eu nem tia Dora havia tido a coragem de usar, estavam pintadas de branco, como eram antes, em minhas memórias de criança. Parecia que a vida havia retornado àquele local. Até os passarinhos votaram a cantar por ali. Apesar de não estar concluída a reforma, mas, já dava para perceber o esplendor que era aquele lugar. Uma maravilha. Fiquei um tempinho admirando aquele cenário.

Nos dias seguintes, auxiliamos seu Chico na pintura interna e externa. Nas mesmas cores de antes. Tia Dora, passou a colocar flores dentro das salas como antes, e o ambiente, voltou a exalar um cheiro de perfume de flores. Sem percebermos, passamos todas as noites, após o café a ficar conversando naquele ambiente, hora, sentados nas escadas de acesso, hora na sala de artes de minha mãe. Tia nos entretia com suas história de criança e as traquinagens feitas em companhia de meu pai.

Restavam ainda duas grandes ações – fazer uma triagem dos papeis e documentos amontoados em um dos cantos da sala e reparar o piano, colocando-o em condições de ser usado novamente. Para isso, tia, havia entrado em contato com um reformador de pianos, velho amigo da família, para realizar o intento.

Quanto às obras feitas por minha mãe, tia, separou as que estavam em condições de voltar à parede, e as outras, ficaram para que no retorno dela, pudesse restaurar. Ainda por iniciativa de tia, esta, retirou por conta própria, todo material que minha mãe tinha de pintura de dentro da casa, como telas, pinceis, tintas e outros artefatos de pintura e escultura, e trouxe para a sala de artes. Organizando aquele ambiente, adequadamente, como antes.

Como o senhor, contratado para reparar o piano, e as caixas para organizar os papeis amontoados, só chegariam no final de semana, voltamos à atenção para os outros pontos da casa. Ali, por enquanto, ficaria paralisado pois os próximos passos seriam, a recuperação do piano, e a verificação dos documentos ali amontoados. Tia, estava entusiasmada como nunca. Só falava que eu deveria voltar a tocar piano como antes. Que preparássemos um recital, que nem os velhos tempos de pai, para homenageá-lo e que fizéssemos uma surpresa na volta da excursão de mãe e de minha avó. Ela se encarregaria de organizar tudo.

No sábado, pela manhã, o senhor do piano se apresentou no portão, e rapidamente tia pediu-me que o acompanhasse à sala onde o piano se encontrava. Apreensiva, aguardou o veredito ansiosamente. Este, por sua vez, nos informou que com pequenos ajustes e troca de peças, que o piano voltaria à velha forma. Ele precisaria retornar uns dois dias depois, para então iniciar os reparos, caso fosse aprovado o orçamento apresentado.

Acordado os termos de recuperação do piano, nos despedimos do senhor e voltamos nossas atenções para as caixas que haviam chegado no final do dia. Tia Dora, estava diligenciando para o dia seguinte, como seria a nossa atuação. Naquela noite, ficou acordado que no dia seguinte, eu ficaria responsável pelas partituras que houvesse naquela montanha de papeis, Seu Chico por sua vez, iria organizar os livros, separando os que eram de música dos que eram de artes, que se encontravam jogados entre os papeis, organizando os nos respectivos ambientes, e ela, ficaria com os documentos da casa e papeis que encontrasse. Faríamos então, primeiramente, essa triagem e depois iriamos verificar mais minuciosamente o que serviria e o que não serviria para descarte ou guarda.

Revolvendo o mistério – Parte III

Na manhã seguinte, estávamos no café cedo e empolgados. Tia Dora era a que mais se encontrava animada. Distribuiu logo antes de iniciarmos o café, máscaras, luvas e um kit de canetas coloridas para que fizéssemos nas próprias caixas, descrição do conteúdo ali colocado.

Descemos todos para “o cantinho do Céu” agora revigorado com a manutenção feita do local. Cada um, escolheu sentar em um local específico da sala de artes para ali, organizar o material, o qual era responsável. Estávamos em silencio e concentrados no que fazíamos.

Comecei reunindo as pastas com as composições que se encontravam dentro. Fiz a retirada da sujeira ali acumulada com muito cuidado. Os papeis ali, estavam amarelados e fragilizados pela forma com que foram conservados. Haviam várias pastas na mesma situação. Consegui reunir no período da manhã, umas quinze pastas, com várias composições cada. Agora era efetuar a limpeza, identifica e levar para a sala de música, onde normalmente ficavam alinhadas em uma estante, junto com os livros de estudos.

Fizemos pausa, nesse momento, para o almoço que ocorreria ali mesmo, desta vez, feito pelo seu Chico. Ele, em dado momento da manhã, deixou de fazer a coleta dos livros para cuidar do nosso almoço. Tia Dora estava tão entretida nos papeis que não se incomodou com a iniciativa.

Nos lavamos no banheiro existente por ali, e nos sentamos em mesa improvisada em baixo das arvores, do lado de fora, para o almoço. Almoço simples mais saboroso. Tia Dora até repetiu, coisa que não era do seu feitio, numa demonstração clara de aprovação.

Ainda no almoço, começamos a conversar sobre os nossos achados. Seu Chico, informou ter encontrado vários livros de artes, alguns poucos de música e outros falando de jardinagem e plantações de café. Alguns necessitando de uma limpeza. Outros precisando de organizar melhor as páginas que se achavam soltas e outros ainda, com a capa precisando de reparos. No momento, ele parou na separação dos que eram de música, da dos que eram de artes. Tia Dora por sua vez, estava separando documentos da casa que ainda se apresentavam servíveis, outros, devido a humidade e mofo, não se encontravam mais visíveis e então, estava separando para o descarte final. Eu, de um lado, relatei o que tinha feito até então. O fato era que tínhamos muito serviço, muto mais do que imaginávamos no primeiro momento e que levaria dias por ali, em sua organização.

Retornamos às tarefas, rapidamente naquela tarde. Eu, continuei a pôr ordem nos cadernos de música que encontrei pela manhã e, os demais, que exigiam reparos por apresentarem as folhas soltas e com rabiscos incompletos, deixava no interior da caixa para verificação mais cuidadosa. O trabalho de organização dos cadernos, levou a tarde toda, mas, ao final, havia concluído todos.

Seu Chico, por sua vez, me entregou alguns livros para que pudesse coloca-los ordenadamente nas estantes e depois, atendendo a um pedido seu, fui ajuda-lo com os de Artes. Utilizei lembranças de infância para poder coloca-los no local de origem. Já tia Dora, estava tendo dificuldades na organização dos papeis.

Tanto eu quanto seu Chico, olhávamos para ela, toda arrodeada de papeis de todos os tamanhos e tipos. Se não bastassem, vários envelopes com mais papeis dentro requerendo atenção redobrada. Assim, terminamos aquele dia, cansados, mas satisfeitos com os resultados. Fizemos nosso café ainda por ali, do lado de fora, e, depois, cada um se retirou para os aposentos.

Os dias seguintes, tanto eu quanto seu Chico, estávamos quase que com as tarefas terminadas. Eu, havia encontrado parte da partitura da música que meu pai havia prometido fazer par mim. Estava revirando outras anotações, na tentativa de encontrar as partes restantes. Seu Chico, por sua vez, se encontrava sentado junto à tia, e a ajudava no que podia. Ambos olhavam várias vezes os mesmos documentos retirados dos envelopes, e conversavam entre si, talvez em uma tentativa de definir a destinação dos mesmos.

Nesse dia, foi a minha vez de faze o café para todos lancharem naquele fim de tarde. E, naquela noite, durante o café, o semblante de tia Dora se apresentava bastante carregado. Em minha ingenuidade, imaginava ser o cansaço dos dias de labuta por ali. Porém, seu Chico também se mostrava preocupado. Isso fez com que questionasse se estava tudo bem, se havia algum problema...

Depois de algum silencio, Tia Dora falou: -Felipe, não sabemos ainda, mas, encontramos documentos, na verdade, exames médicos de seu pai, os quais mostravam que ele se encontrava muito doente, antes do acidente que sofreram.

- Meu pai doente? De que? E ninguém sabia?

- Parece que seu pai estava escondendo de todos. Falou seu Chico. Precisamos buscar outras evidencias que nos revelem a extensão de sua doença e o porquê de esconder da família.

- Mas, que doença ele tinha? Era grave?

- Parece que ele estava com um tumor no cérebro. Ia ou já fazia uso de medicamentos fortes já há algum tempo. Disse tia Dora. Por isso ele tinha aquelas dores de cabeça quase que todos os dias. Hora dizia que era enxaqueca, hora dizia que era do estomago, mas o fato era que escondia de todos o que estava se passando. Ele ate me pedia para não dizer a sua mãe ou avó para não as preocupar. Como fui tola...

- Amanhã iremos fazer uma busca criteriosa, naqueles documentos, organiza-los por data e depois vamos ligar para os médicos que lhe atendeu para saber mais detalhes. Espero que tenhamos sucesso.

No dia seguinte, o senhor contratado para reparar o piano havia chegado cedo, conforme prometido. E tia Dora, pediu que o acompanhasse nos serviços de reparos do piano. Isso frustrou minhas intenções de acompanhar aquela investigação. Fiquei com esse senhor por dois dias seguido, longe do que acontecia, na outra sala ao lado.

Finalmente, o senhor concluiu os trabalhos deixando o piano impecável como antes. Pude apreciar algumas partituras sendo tocadas por ele, para atestar seu pleno funcionamento. Foram momentos de deleite ouvir aquelas músicas novamente. Ele utilizou alguns dos trabalhos de meu pai. Eu mesmo, estimulado, pude tocar alguma coisa de que me lembrava quando criança.

Enfim, piano concertado, voltei me novamente para as atividades de investigação nos documentos médicos de meu pai.

Naquela noite, tia Dora e seu Chico me puseram a par do que tinham descoberto nos documentos e nas ligações com os médicos e clinicas que o atenderam.

Realmente, pai estava muito doente. Tratava um tumor no cérebro, que não podia ser retirado, em função do tamanho alcançado. Estava sendo tratado através de medicamentos e terapias no intuito de diminuir seu tamanho, na tentativa de estabilizar pra uma possível cirurgia de extração. As medicações que tomava, provocavam dores de cabeça, náuseas, tonturas, sonolência, entre tantos outros sintomas.

Conversando com o médico da família, este, informou, que sabia da situação, mas que ele pediu que não revelasse nada à família, que ele mesmo o faria. Isso ocorreria, naquele encontro de família, onde ocorreu o acidente que o vitimou.

Outra revelação bombástica, foi o laudo expedido pelas autoridades. Estas, constataram que a causa morte não foi a queda. A perícia técnica, nas investigações feitas, constatou que, em nenhum momento ele bateu a cabeça durante a queda. Mas que provavelmente, ele havia perdido a consciência e por conta disso, houvesse caído. Já os exames, detectaram um acidente vascular, ocorrido por conta do rompimento do tumor. Essa foi a verdadeira causa da morte e não a queda, e não o tropeço que tive com as sandálias. Aliás, o tropeço foi provocado pela queda em função da perda de consciência dele.

Aquelas revelações, chocaram me e ao mesmo tempo, retirou um peso que carregava a anos. Tantos anos, achando que tinha sido o causador da morte de meu pai. Olhava para meus tios, minha mãe e avó e percebia, em seus olhos, um certo ar de acusação pelo ocorrido. Como autopunição, deixei de tocar piano, de falar com as pessoas, fiquei mudo para o mundo, comecei a apresentar falta de ar, a ter fobias, a ponto de fazer terapias e tomar remédios controlados. Foram quase sete anos ausente de tudo, sempre sendo considerado pessoa de relacionamento difícil com os demais, e de saúde frágil.

Desci correndo para o “cantinho do Céu” e lá, na sala de música, chorei como nunca havia chorado. Cansado, adormeci por ali mesmo. Pela primeira vez, tive um sono leve, cheios de sonhos, até com meu pai, sorrindo e me chamando para tocar de novo.

Acordei com seu Chico ao meu lado sorrindo. O sol já ia alto. Dava para sentir. Ele, carinhosamente me perguntou: -Jovem Felipe, está tudo bem com você? Tem algo a dizer?

- Seu Chico, tudo que ocorreu comigo nesses últimos dias, não sei nem explicar. A revelação feita ontem, me tirou um peso tão grande, é como se eu tivesse nascido outra vez. Uma nova chance me foi dada...

- Sim, uma nova chance, uma nova oportunidade, um novo recomeço... Você precisa tomar agora as rédeas de sua vida. O que pretende fazer?

- Acho que recuperar o tempo perdido. Vou retomar meus estudos e voltar a praticar o piano. Vou honrar a memória de meu pai, como o senhor mesmo disse um dia desses. E, as outras pessoas da família? Será que já sabem?

- Elas estão sendo informadas aos poucos. Sua tia Dora, está cuidando disso. Agora cuide de você. Aliás, vim aqui lhe chamar para o café da manhã. Sua tia está lá em cima esperando. A coitada só faltou amaçar o sino de tanto bater para você acordar. Vamos.

Subimos as escadas juntos, e lá no topo, tia Dora me aguardava, sentada no mesmo banco que papai ficava todas as manhas, para me dar um grande abraço. Daí, saímos juntos para o café. Durante o café, anunciei que voltaria a estudar piano. Decisão que agradou a todos ali.Seu Chico então se levantou, e pegou uns papeis, em um dos envelopes, que havia em cima da mesa e passou para mim sorrindo.

Ao abrir, qual minha surpresa. O restante da partitura da música que meu pai havia composto para mim, conforme prometido. Estavam ali. Completas. Não me contendo de tanta felicidade, corri para a sala de música, para buscar as outras e retomar meu treino ao piano. Os dois ficaram olhando e sorrindo...

Faltavam três dias para que todos da família se reunissem ali novamente. Minha mãe, avó, irmã , tios e primos, todos de volta àquela casa. Seu Chico, por sua vez, se apresentou para se despedir. Havia concluído o período de serviços dele por ali. Deveria retornar. Tanto eu quanto tia Dora, estávamos tristes com a despedida. Por mais que pedíssemos para que ele ficasse, ele dizia: - sou Arandu, filho de Anhangá, já tenho compromisso em um outro lugar. Preciso partir. Outros precisam de mim...

Por mais que insistíssemos em que ele ficasse, seu Chico Arandu, com seu sorriso contagiante, nos convenceu do contrário. Foi difícil de aceitar a situação. Considerávamos seu Chico, como pouco tempo de convivência, parte da família. Estávamos tristes, mas, não podíamos prendê-lo ali. Acompanhamos até o portão e ficamos eu e tia Dora, abraçados, olhando-o desaparecer na curva da estrada andando e cantando suas músicas.

Ficamos, eu e tia Dora, alguns dias após a partida do seu Chico, sozinhos, nostálgicos, ainda lembrando e com saudades, da presença alegre e marcante do velho jardineiro. Aproveitamos esses momentos, para preparar a recepção que seria feita à família. Passei a Dividir minhas atenções entre o treinamento no pino e no auxílio à tia Dora nos cuidados com a casa e com os preparativos para a reunião familiar que se aproximava.

Finalmente o dia chegou, nossa família toda reunida. Que festa!! Todos ali, sem exceção, sentados na sala de música, acompanhando a minha execução ao piano. Havia treinado duro, para executar para todos, a canção composta pelo meu pai. Que alegria! Principalmente por conta de minha mãe e avó, que anunciaram voltar a fixar residência por ali novamente. Era tudo que queria. Voltara morar naquela casa.

Tudo ia bem até que um novo mistério se apresentou, alguns dias depois de ter terminado o recital, um senhor se apresentou no portão, querendo falar com a proprietária do local. Tia Dora e eu que estava próximo, fomos atende-lo, para saber do que se tratava. Qual foi a nossa surpresa ao ouvi-lo.

- Sou o dono da agencia que a senhora algum tempo atrás, solicitou jardineiro por três meses. Mesmo sem a agencia mandar, a senhora depositou os valores referente aos três meses de contrato, tentei ligar várias vezes para o número cadastrado, mas não conseguia contato com ninguém daqui. O fato é que não mandamos nenhum jardineiro para aqui. Estou aqui para devolver os recursos depositados.

- Como? vocês mandaram um jardineiro aqui. Seu Chico Arandu, veio aqui, dizendo-se enviado pela sua agencia. Ficou por três meses conosco. Deve ter havido algum equívoco.

- Não senhora. Não há equivoco algum. Não temos no nosso quadro, ninguém com esse nome, sinto muito. Se houve alguém aqui, não sabemos quem foi essa pessoa. Desconhecemos qualquer funcionário nosso de nome Francisco de Arandu. Só queremos devolver os recursos que foram enviados.

Dizendo isso, entregou a tia Dora um envelope, com o montante referente aos três meses de contrato do jardineiro e, sem esperar resposta, entrou no veículo que saiu pela estrada. Tia Dora e eu por sua vez, estávamos sem compreender o que havia ocorrido.

Entramos pensativos a tentar entender o que ocorrera e quem era verdadeiramente Chico Arandu, jardineiro, que se apresentou e ficou ali, conosco por três meses... mais um mistério a ser catalogado por aquelas bandas.