DAS HISTÓRIAS QUE MINHA BISAVÓ CONTAVA:  A ASSOMBRAÇÃO DO TAMARINDEIRO

Adriana Ribeiro

   

  A minha bisavó materna viveu oitenta e sete anos bem vividos. Era uma mulher forte e trabalhadora. Segundo ela já havia feito deum tudo na vida foi lavadeira cozinheira arrumadeira lavradora e finalizou seus dias de vida como costureira. E foi nessa fase de costureira que eu a conheci e tive o prazer de escutá-la contando histórias para os netos e bisnetos como eu.

     Vó-Mãe-Finha - como eu a chamava - era uma mulher séria. Sisuda e calma. Eu nunca a vi se exaltar. Quando não gostava de algo, torcia a boca e ficava calada. Era do tipo imperiosa. Sabia mandar e estava acostumada a ser obedecida pelos filhos e pelos, netos que criara, mas com os bisnetos era paciente e afetuosa. Do jeito dela, mas não deixava de ser um jeito carinhoso.

     Gostava de agradar a gente e tinha sempre um doce ou uma sopa nos esperando na casa dela. Rala, é verdade, pois era muita gente para alimentar, principalmente meninos entre netos, bisnetos, sobrinhos e vizinhos, aglomerados no seu quintal até mesmos nos horários das refeições.

     Eu sempre fui bem curiosa e não costumava brincar muito tempo com as outras crianças. Gostava mesmo era de ouvir histórias e ficar chupando dedos - sim, eu chupava os dedos médio e o anular da mão direita com a palma virada para cima - o que intrigava as pessoas - enquanto enrolava os cabelos. Quando enjoava das brincadeiras infantis ou brigava com algum dos primos, sentava encostada em minha mãe e ficava chamando ela para irmos embora e só parava quando ouvia minha avó dizer:

     __ Vá pra casa Eulina. Quando vier amanhã deixe essa menina impaciente em casa trancada.

     Na época minha mãe que já estava separada do meu pai e, para ganhar algum dinheiro, ajudava a minha avó com as costuras aproveitando a máquina para costurar ou reformar alguma roupa usada para minha irmã e eu. Mas apesar da feição séria da minha avó ao dizer aquilo olhando para mim, eu sempre via quando ela piscava o olho para a minha mãe e alargava os cantos da boca querendo sorrir. Era uma espécie de código secreto entre as duas para eu ficar quieta e funcionava. Eu ficava lá vendo as duas costurar. Minha mãe sabia que eu gostava de ouvir histórias e logo pedia para a matriarca contar um causo ou outro - que com certeza ela mesma já ouvira antes - e ela contava. Com riqueza de detalhes realistas e muito suspense. Seu jeito sério de expor as narrativas não deixava brechas para questionamentos. Se eram experiências vividas ou inventadas não dava para saber. Não naquela época em que a minha imaginação era tão fértil quanto a dela. E eu mergulhava naqueles causos como se fosse uma Alice no país das maravilhas entrando na toca do coelho…

 

 

 

A ASSOMBRAÇÃO DO TAMARINDEIRO

 

     A primeira vez que eu vi uma assombração foi quando eu tinha a idade de dezessete anos. Naquela época nós já morávamos na cidade por causa da escola, mas passávamos o final de semana na casa da fazenda Engenho Novo onde meu pai trabalhava como vaqueiro.

     Foi em uma noite de chuva intensa, cheia de raios e trovoadas. Dessas que você não dorme direito, pois fica deitada rezando para o dia amanhecer depressa.

     Entre a casa que a gente morava e o curral onde meu pai tirava leite todos os dias de madrugada, havia um imenso pé de tamarindo com sua copa larga e folhagem tão densa que chegava a ficar escuro e úmido embaixo dele. Um local agradável e hospitaleiro durante os dias quentes de primavera e verão, porém totalmente sombrio à noite e extremamente desagradável no inverno chuvoso como o daquele ano.

     Meu pai estava resfriado e tossindo muito o que piorava a situação porque dava para ouvi-lo tossir no quarto ao lado. E foi assim que eu percebi quando ele saiu naquela madrugada para ir ordenhar as vacas.

     Quando um raio iluminou a janela do quarto onde eu dormia com meus irmãos, levantei para ver se meu pai estava bem agasalhado. Eu desconfiava de que aquela gripe que nunca sarava era resultado de suas andanças pelo curral lamacento e da friagem da noite que ele não podia evitar devido ao ofício de vaqueiro.

     Olhei por entre os espaços da madeira entalhada da janela almofada e avistei meu pai caminhando com uma corda em uma e o balde de zinco na outra. Estava em mangas de camisa, sem nenhum casaco ou capa que o protegesse do frio. Pensei em chamar minha mãe para ir levar um casaco para ele vestir, mas resolvi levar eu mesma já que estava acordada e sem sono. Eu sabia tirar leite muito bem porque já o havia ajudado algumas vezes. E ele estava precisando, apesar de não ter me chamado.

     Troquei ligeiro de roupa, vesti um casaco de lã, calcei as velhas botas de minha mãe e fui até a cozinha pegar a xícara de porcelana branca que eu costumava usar para tomar leite. Peguei a capa de chuva do meu pai que estava pendurada no torno da cozinha e abri a porta da frente com cuidado para não fazer barulho àquela hora da madrugada.

     Olhei para o céu e vi que a noite estava se misturando ao dia no fim do horizonte, mas ainda estava muito escuro e frio, apesar da chuva, raios e trovões terem passado. A estrada, porém, estava lamacenta mas eu já estava acostumada com aquilo.

     Saí andando a passos largos e à medida que fui me aproximando da sombra sinistra do pé de tamarindo comecei a sentir uma coisa estranha. Meu coração começou a acelerar antes mesmo que eu visse alguma coisa. Minha vista e minha audição foram atraídas por uma silhueta branca que se movia e fazia um barulho incomum próximo ao tronco da grande árvore. De início pensei que fosse um bezerro que fugira do curral e estava tentando chamar a mãe. Mas quando cheguei mais perto percebi que não tinha a forma de um bezerro e sim a de uma ovelha de pelagem tão branca que chegava brilhar na escuridão. Também percebi que aquela criatura não berrava como um bezerro comum mas fazia um som bem diferente. Me arrepiei toda, apesar de bem agasalhada, quando lembrei que não haviam ovelhas na fazenda.

     Como aquele animal fora parar ali embaixo do tamarindeiro naquela noite chuvosa e por que fazia aquele barulho medonho como se fosse um cachorro cavando um buraco cheio de objetos de metais. Reparei bem que ao parar para ver do que se tratava, a ovelha também parou de cavar e olhou para mim fazendo um movimento vertical com a cabeça levantando o focinho como se farejasse em minha direção e logo depois virou-se em direção ao buraco que estiver cavando, pulou dentro e sumiu.

     Ao ver aquele animal branco desaparecer sem explicação corri até o curral aos tropeções, passei por dentro das poças de lama e atravessei o curral pelo meio das vacas paridas até chegar onde meu pai estava e só então parei para respirar. Àquela altura já havia me esquecida de que fora até ali para agasalhar meu pai e ajudá-lo com a ordenha das vacas.

     Estatelada no meio do curral comecei a gaguejar e gesticular tentando contar o que havia acabado de ver, mas o meu pai não entendia nada. Imagino o susto que ele levou ao me ver pálida e tremendo no meio do gado, pois ele levantou-se do banquinho derrubando o balde de zinco, já quase cheio de leite, aos pés da vaca apeada fazendo um barulho imenso. Chegou perto de mim, segurou em meus ombros e balançou o meu corpo perguntando aos gritos:

     __ O que foi Zifinha? Por que veio assim atrás de mim?

     Eu não conseguia dizer nada com nada. Além de gaga tremia tanto que os dentes batiam como se estivesse morrendo de frio. Meu pai me abraçou por um instante, me fez sentar no banquinho de madeira, pegou a xícara da minha mão, foi até a vaca que continuava apeada, tirou um pouco do leite e me deu para beber enquanto esperava, pacientemente, que eu me acalmasse para contar o que se passava.

     Quando meus dentes pararam de bater e minha mente voltou a funcionar eu comecei a contar a ele o que tinha visto embaixo do pé de Tamarindo. Estranhei porque o meu pai não se mostrou surpreso nem incrédulo, apenas deu de ombros e disse:

     __ Você já sabia que havia visagem embaixo daquela árvore. Porque veio sozinha uma hora dessas? Se tivesse me dito que queria vir comigo eu teria lhe chamado.

Confusa com a reação dele perguntei:

     __ O Senhor já viu aquilo alguma vez meu pai?

 

     Ele balançou a cabeça afirmando e, dando de ombros novamente, disse:

     __ Eu já estou acostumado. Passo por ali todos os dias. Vejo essas coisas mas já não me assusto mais.

     __ Essas coisas? Como assim, Pai? _ Perguntei. __ Não é sempre uma ovelha cavando um buraco não?

     __ Não! Às vezes são cachorras ou vacas paridas querendo me pegar. Cobras chocas sibilando em minha direção. Galo cantando, velho fumando, mulher me chamando, criança chorando. Enfim, já vi tantas coisas embaixo daquele velho pé de tamarindo que nem lembro mais.

     __ E eu sempre achei que o Senhor estava brincando quando falava sobre isso meu Pai.

     __ Não. Eu sempre disse a verdade, mas como as pessoas não acreditam em assombração eu também nunca fiz questão de provar que existe.

     __ Dizem que embaixo daquela árvore tem uma botija enterrada e é por isso você ouviu o som de metal trincando, mas eu nunca fui lá ver o que é.

     __ Me disseram uma vez que quem cava botija morre cedo. __ Continuou. __Eu é que não vou me arriscar. Prefiro morrer velho como vaqueiro mesmo. E deu um meio sorriso piscando o olho pra mim. Meu pai era um homem amoroso. Sempre me senti muito querida por ele. Sei que aquele sorriso era para me tranquilizar, pois ele já sabia que estava doente e não viveria muito por muito.

 

     Ficamos no curral conversando até terminar a ordenha naquele domingo e eu voltei para a cidade no fim da tarde.

 

     Quando a minha avó se calou, talvez relembrando os dias que viveram com seus pais, minha mãe perguntou:

     __ Não ficou curiosa não, Mãe Finha?

Minha avó suspirou parecendo despertar de um transe e respondeu:

     __ Fiquei sim. Muito! __ Não só fiquei curiosa como fui cavar a botija assim que meu pai faleceu poucos anos depois, pois, suspeitei que ele havia cavado a botija.

 

     Eu já estava casada e já tinha sua mãe. Fui ao Engenho Novo só para isso.

     __ E aí? Perguntou minha mãe.

     __ Foi como meu pai disse. Era uma botija mesmo. Cavei no lugar que vi a ovelha desaparecer. Não demorou muito e eu senti que a pá tocou em uma tábua de madeira. Cavei ao redor com um facão velho que achei no curral e percebi que era uma tampa arredondada. Deu muito trabalho para tirar aquele círculo de madeira e eu poder ver que se tratava de um pequeno pote de barro contendo algo enrolado num tecido grosso, tipo fustão, então separei as partes do tecido roto e vi que eram colhes, garfos, facas e outros utensílios de cozinha. Pareciam ser de ouro e de prata, mas não sei de certeza porque quando pensei em pegar para mim, lembrei do que meu pai havia me dito sobre morrer cedo e desisti de tocar naqueles objetos. Então tornei a cobri-los com o tecido escuro e grosso e fechei o pote com a tampa de madeira. Cobri com a mesma terra que havia cavado e quando já ia saindo dali senti uma estranha vontade de rezar para a alma do meu pai e de quem enterrara aquele tesouro cheio de mistério.

 

     E foi o que eu fiz! Rezei.

     Depois colhi alguns tamarindos maduros e voltei para casa. Nunca mais voltei lá. Nem sei se o velho tamarindeiro existe mais.

 

     A essa altura eu já estava de olhos esbugalhados cutucando a cintura da minha mãe para irmos embora de novo.

 

Adriana Ribeiro/@adri.poesias

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 30/12/2024
Reeditado em 30/12/2024
Código do texto: T8229867
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