O ACÓLITO PAPA-HÓSTIAS
Adriana Ribeiro
Domingo era dia de missa matinal e quase todas as famílias da comunidade se faziam presentes na Paróquia de Frei Galvão. Os habitantes da cidadezinha de Ingazeira eram religiosos praticantes. De pequeno já serviam à igreja.
Nicanor, filho de pai Sacristão e mãe beata assumida, era um desses meninos devotos. Aos sete anos perdera o pai vítima de um Infarto fulminante e fora entregue ao Santo Padroeiro como afilhado pela mãe viúva. Desde então se tornara aprendiz de Coroinha. Aos dez anos o menino já fazia parte da comitiva do Padre Amadeus e vivia visitando as casas dos fiéis oferecendo indulgências.
Com sua bata marrom saltando riacho e amarrada na cintura com um pedaço de corda, Nicanor era, no mínimo uma figurinha hilária. Nascera quase albino, franzino, narigudo e zarolho. Só de olhar para ele qualquer cristão agradecia a Deus por ter nascido “normal”. O bichinho era feio com gosto e coragem. Quem quisesse ver uma criaturinha bizarra era só ir à igreja ou solicitar a visita do Pároco que lá ia o garoto ao tiracolo.
Mas o tanto que o garoto tinha de esquisito tinha de agilidade. Não parava quieto nem na hora da missa. Tocava o sino, ajeitava uma flor caída, consertava uma toalha pendida, avivava uma vela apagada e, na hora certa, se postava ao lado do Sacerdote para encher-lhe a taça de vinho ou recolher o dízimo do Ofertório. Era diligente de sobra o moleque.
E de tanto acompanhar o Padre, o danado do menino passou a morar de vez na casa paroquial. A mãe, uma faz tudo de carteirinha, também prestava serviço de diarista cozinhando, lavando e passando duas vezes por semana na casa do Sacerdote.
Assim, com a vida mansa e comida na hora certa, Nicanor cresceu saudável. E mais que isso. Aos poucos o moleque começou a engordar.
Com treze anos completos já vestia as roupas velhas do Pároco. E olha que o representante de Deus era um homem alto, robusto e gostava de roupas largas.
Para não ver o ajudante perder a forma, o Padre Amadeus começou a administrar suas refeições já que não podia controlar-lhe o apetite descomunal. Já era realmente notório que Nicanor estava ficando gordo e preguiçoso.
Há muito tempo não subia a velha escada que levava até a torre da igreja para tocar o sino. Dizia ter medo da madeira rebentar e ele cair estatelado. Durante a Missa o mandrião ficava sentado ao lado do Ambão observando o Padre conduzir a celebração, mas já não se levantava para servi-lo como antes. Talvez comendo menos ele recuperasse a forma física. __ Pensava o religioso.
Até o ofertório passara a ser feito à guisa de procissão. Agora os fiéis se dirigiam ao pé do altar para depositar sua “oferenda ao Frei Galvão” em uma cesta disposta sobre um pedestal de madeira entalhada. O esperto Nicanor tanto fez que convencera o Padre a encomendar a peça na marcenaria do Sr. Josafá. Com preguiça de andar por entre os bancos da igreja a cata das ofertas, fez o padre acreditar que tal móvel estava em voga nas igrejas mais abastadas das cidades vizinhas.
O Sacerdote, cuja menina dos olhos era a sua paróquia, para não ficar por baixo dos colegas de ofício, mandou o rapazote ir dizer ao artesão habilidoso como deveria ser o pedestal sagrado. Desde então o único trabalho do jovem Coroinha era recolher a cesta das ofertas no fim de cada cerimônia e carregá-la, ao lado do Padre, até a casa paroquial.
Vendo que sem as obrigações que demandavam esforço físico a dieta alimentar de Nicanor não resolveria o problema da sua obesidade, o Padre Amadeus resolveu “apertar ainda mais o cinto do rapaz” e mandou colocarem fechaduras nos armários da dispensa da casa paroquial. Assim que terminavam as refeições, ele mandava o adolescente guardar as panelas e fazia questão de passar a chave nos armários pessoalmente.
Certa feita deu por falta do serviçal perto da hora de tocar o sino para anunciar a missa dominical. Preocupado, começou a interpelar os fiéis que chegavam à igreja perguntando se tinham visto o adolescente pelas redondezas. Mas ninguém sabia informar aonde fora parar o displicente coroinha.
Quando já estava quase na hora de começar a cerimônia religiosa o Sacerdote resignou-se e foi ele mesmo preparar os acessórios para celebrar a missa.
Dirigiu-se apressado ao altar e abriu a porta do Sacrário para pegar os objetos litúrgicos, mas, para completar seu desespero, percebeu que o Cálice e o Cibório haviam sumido. Olhou mais ao fundo do pequeno armário sagrado e reparou que a Galheta do vinho estava vazia.
Nervoso e sem saber para quem apelar sem causar um escândalo na igreja quase cheia, lembrou-se de ir procurar os objetos na Sacristia. Quem sabe o coroinha displicente tivesse levado os acessórios para abastecer e esquecido de guardar de volta no lugar certo. Essa esperança ainda lhe veio à mente. E com tal pensamento na cabeça o Sacerdote passou a mão embaixo do castiçal de prata que ficava à direita do altar procurando a chave da sacristia. Porém não a encontrou.
Confuso, tentou lembrar se havia entrado no escritório paroquial naquela manhã, mas, por via das dúvidas, achou melhor ir até lá para conferir se havia esquecido a bendita chave na porta do cômodo que ficava atrás do altar.
Chegando na Sacristia Padre Amadeus levou a mão à maçaneta e constatou que a porta estava realmente aberta. No entanto a chave não se encontrava pendurada pelo lado de dentro como ele esperava.
Apesar de intrigado com o fato entrou no salão sem se dar ao trabalho de acender a lâmpada e, assim que a vista se adaptou à penumbra do ambiente, identificou uma cabeleireira alaranjada atrás da escrivaninha onde costumava sentar-se para redigir os documentos e fazer os registros da paróquia. Puxou pela memória, mas a verdade era que só conhecia uma criatura que tinha os cabelos daquela cor nas redondezas de Ingazeira e essa pessoa era o seu quase Acólito paroquial.
Tentando não perder o controle dos próprios atos, o Sacerdote chamou o rapaz pelo nome de batismo algumas vezes mas não obteve resposta. Cismado com o silêncio do seu auxiliar, rodeou o móvel e deu de cara com Nicanor sentado no chão completamente desacordado.
O jovem estava abraçado ao galão de vinho e segurava um pacote de hóstias destroçadas e já pela metade na outra mão, enquanto os objetos da liturgia sagrada estavam espalhados ao seu redor.
A cabeça miúda pendida, os olhos vesgos meio abertos, os cantos da boca cheios de farelos e as roupas manchadas de vinho denunciaram o pinguço comedor de hóstias.
Padre Amadeus era um homem branco de olhos azuis e temperamento calmo, mas naquele instante estava vermelho como o tapete da nave da igreja. De repente, totalmente transfigurado pela raiva, agarrou o aprendiz de Sacristão pela “bertura” da batina velha e saiu arrastando-o pelo meio da igreja até a Pia batismal onde afogou Nicanor tantas vezes foram necessárias para fazê-lo ficar completamente sóbrio.
Durante o processo de “cura” do bebum alguns impropérios paroquianos foram ouvidos pelos fiéis que assistiam a cena boquiabertos e paralisados, pois não entendiam quase nada do que estava se passando.
Porém, passados os primeiros minutos de agitação, as pessoas começaram a decifrar aquele mistério, pois Nicanor não parava de repetir a palavra FOME enquanto o Padre, ainda nervoso, perguntava aos brados como iria celebrar a Missa se o ajudante havia dado cabo de todo o vinho e devorado as hóstias.
O episódio quase causou um racha na Igreja de Frei Galvão. Os fiéis se dividiram: uns acusavam o Pároco de fazer Nicanor passar fome e outros queriam mesmo era escalpelar o Coroinha porque a missa dominical fora suspensa e os objetos sagrados profanados.
Somente após alguns meses a situação na igreja se acalmou. Mas uma coisa jamais pôde ser revertida:
O assistente paroquial nunca mais se livrou da alcunha de Acólito Papa-hóstias.
Adriana Ribeiro/@adri.poesias