Causos, Benzeduras, rezas e cura

Na região onde vivi minha infância e início da adolescência, no oeste paulista, hoje é tudo cana. Percorrem-se vários quilômetros e, dos dois lados da estrada, é só o que se vê.

Antigamente, tinha todo tipo de plantação: café, amendoim, algodão, árvores frutíferas, abóbora, melancia, hortaliças, cana para açúcar, para chupar e fazer garapa. Mais criações de porcos, galinhas, gado de leite e de corte, cabras e por aí vai.

Uma ou outra grande fazenda de gado. Os grandes fazendeiros já haviam migrado para o outro lado do rio Paraná, no então Estado do Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul.

Região abundante de pequenos sítios com diversidade de produções agrícola, suína e avicultura. Nos estreitos rios abundavam peixes de várias espécies.

Meu pai, comerciante, era assíduo caçador e pescador nos finais de semana.

Sempre tínhamos, como alimento, codornas, perdizes, curimbas, piaus, lambaris, bagres, às vezes dourados e pacus do rio Paraná.

Morando na cidade, tínhamos como hábito visitar os parentes nos seus sítios, uma vez a cada um ou dois meses. Saindo bem cedo e voltando ao entardecer. Íamos de charrete ou de chofer contratado, com o veículo dele. Não chamávamos de táxi,

naqueles tempos. Dizia-se, vamos de chofer. Era uma confraternização muito agradável, claramente percebida naqueles que nos recebiam e em nós mesmos. Gostava muito destas visitas. Saborear frutas diretamente do pé, leite recém tirado das vacas, doces diversos, os momentos com os primos e primas eram inesquecíveis. Ouvíamos histórias rurais variadas. Às vezes, difícil de acreditar.

Um empregado de sítio da região deu de cara com uma onça, contavam. O tal sujeito, sem saber o que fazer, arregalou os olhos, dizia, começou a gritar como um louco e correu em direção ao felino, que se virou e fugiu em desabalada carreira,

assustada. Creio que não estava faminta!

Pescadores, saiam a noite para praticar a pesca de “bundada”. Esta era real.

Reproduzo o que ouvi de um primo e de meu pai, que as vezes saia para a tal pesca noturna. Três ou quatro deles saiam de bote pelo rio, iluminavam os arredores próximos com fortes lanternas cilibrins, faziam silêncio. Os curimbas se aproximavam à flor d`água, atraídos pela luz. Daí, um ou dois dos indivíduos se levantavam e, em seguida, se sentavam com violência nos bancos causando barulhos repentinos, a “bundada” . Os curimbas se assustavam e saltavam, alguns para dentro do bote. Eram recolhidos em sacos de estopa. Meu pai dizia que era suficiente bater forte com os pés no fundo da embarcação. Além disto, nestas empreitadas, levavam cartucheiras, pois capivaras eram atraídas do mesmo modo pela luz das lanternas posicionando-se nas margens do rio. Aproveitavam para caçá-las. Naquele tempo não havia proibição e nem se ouvia nada sobre a febre maculosa. Auxiliei meu pai uma ou outra vez a tirar o couro do animal e separar as carnes boas para consumo. A vizinhança recebia a maior parte das carnes. Ninguém tinha freezer. Apenas geladeira. Não era fácil armazenar carnes por longos períodos.

Estas pescarias e caçadas noturnas exatamente naquele rio foram paralisadas depois que um pescador foi atacado e morto por abelhas africanas, as “abelhas assassinas”. Um grande enxame atacou o pobre pescador. Na autópsia, foram encontradas grandes quantidades no estômago, nos ouvidos, nariz, boca. A causa mortis foi apontada como choque anafilático. Noticiou-se que havia sido o primeiro ataque no país, vítima de tais abelhas, nos primeiros anos da década de 60. Está registrado que

as primeiras abelhas foram trazidas da África, em 1956, para um experimento em faculdade da cidade de Rio Claro, no Estado de São Paulo. Tal experimento saiu do controle, abelhas escaparam, cruzaram com a espécie nativa europa e acabaram se espalhando por todo o continente americano, aumentando sobremaneira a produção

de mel e, em contrapartida, causando muitas vítimas ao longo dos anos.

Alguns colegas gostavam de zoar visitantes que vinham de cidades grandes, de capitais e que nunca “tinham visto uma vaca, bezerro, porco”. Que maldade! Contavam história inventada de como se caçava patos por ali. O caçador se escondia no

taboal às margens do lago. Chegando os patos, mergulhava, nadava submerso até eles e puxava as aves pelas pernas e as afogava.

Gostava mais quando nos sentávamos à mesa do quintal, o parente depositava sobre a mesa o fumo de corda, algumas palhas de milho e canivetes de lâmina larga, os chamados pica fumo, para os fumantes. Concentrava minha atenção porque era certo que seriam contadas histórias interessantes, bem detalhadas, sem pressa de terminar. Ao longo da narrativa, apreciava o ritual dos fumantes: cortavam e picavam o fumo bem fino. Amaciavam a palha de milho passando várias vezes a lâmina do canivete pela superfície, de um lado e do outro. Enrolavam o fumo na palha, apertando bem, acendiam e passavam a fumar, sem afobação. Para histórias longas, de vinte a trinta minutos, faziam e fumavam dois ou, no máximo, três cigarros.

Uma história que me impressionou foi esta a seguir, contada por parente em uma de nossas visitas ao seu sítio. Ouvi com muita atenção.

O senhor Ângelo tinha um belo sítio na vizinhança, com produção agrícola diversificada e criação de porcos, frangos e galinhas. Percebeu que aves começaram a sumir. Duas ou três por semana. Revisou as telas do galinheiro, estava tudo em ordem. Chegou a ficar acordado um tanto de noites, observando e nada viu.

Desnorteado, comentou com vizinhos. Ninguém sabia sobre algo similar, exceto nas noites da Sexta-feira Santa, quando marmanjos, por tradição, assaltavam galinheiros e roubavam algumas. Não era este o caso.

Um deles mencionou que estava de passagem pela cidade um tal Atílio Rezador que além de curar, poderia resolver problemas deste tipo.

O Atílio foi chamado, chegou numa camionete muito velha. Acercou-se do galinheiro, lá ficou por dez minutos, observando e propôs voltar no dia seguinte, com dois assistentes, fazer suas rezas e acabar com o problema. Para tanto, fazia parte

do ritual que eles preparassem uma galinhada para os três, iriam comer a partir exatamente do meio-dia e depois executariam as rezas.

Encurtando a história, se fartaram com a galinhada durante duas horas, acompanhada da melhor cachaça produzida ali mesmo. Foram ao galinheiro, lá ficaram por quinze minutos, com rezas da religião católica conhecidas por todos os fiéis: a Ave Maria, Pai Nosso, Salve Rainha, na íntegra. Sem modificações que verdadeiros rezadores, ao longo de séculos, inseriam normalmente para maior efetividade nas soluções dos problemas. Atílio mantinha um rosário em mãos. Um dos assistentes fazia gestos aleatórios, o outro corria pela periferia do cercado, gritando palavras sem nexo. Ao final, o tal Atílio disse que, o que quer que fosse, não disse o que ou quem, não mais voltaria a este galinheiro. Teria que viajar naquele dia para outra região, voltaria na semana seguinte para confirmar. De quebra, pediu dinheiro para colocar combustível na caminhonete.

Óbvio que o senhor Ângelo, experiente, desconfiou da charlatanice, todavia não quis criar caso. Rezadores não pediam pagamento, prendas ou dinheiro, por seus trabalhos. Poderiam aceitar se fossem oferecidos, como gratificação. Preferia que os charlatões sumissem de sua frente. Até porque percebeu que um dos assistentes estava de olho

em sua menina de dezesseis anos.Naquela noite outra ave sumiu.

Vizinhos disseram que o delegado da cidade recebeu denúncias sobre ações similares do charlatão, na região. Se voltassem, deveria ser avisado. Ninguém mais os viu por aquelas bandas.

Já no dia seguinte, um vizinho mencionou que perto dali havia um curandeiro muito procurado por fazer e desfazer feitiços. Se este fosse o caso, com certeza ele descobriria. A mulher do sitiante, fez o sinal da cruz três vezes e não queria este tipo

de feiticeiro nas suas terras. Tinha medo deles. Podiam fazer o bem e o mal, era sua convicção. Argumentos e relatos contrários não a satisfaziam.

O medo, segundo os especialistas está localizado na região do nosso cérebro conhecido como sistema límbico, mais propriamente a amigdala, região de origem primitiva, da era dos homens das cavernas. Com o tempo, os humanos passaram a buscar refúgio e soluções contra os mais diversos pavores e desequilíbrios nos amuletos, nas preces, nas penitências. O medo leva a busca de soluções, mas também recusa propostas de auxílio quando o temor que tem de quem propõe, do método ou do descontrole do resultado, é maior que o medo do desequilíbrio que enfrenta. A esposa do sitiante queria distância dos curandeiros.

O senhor Ângelo lembrou-se de um benzedeiro que conhecera há tempos. Se ainda vivo, Afrânio pareceu ser a melhor opção. Morador antigo, de povoado um pouco distante, gozava de muito prestígio ali. Um mascate que circulava todo mês na região, por sorte, estava por perto e levou o pedido ao homem.

Afrânio veio, dois dias depois. Chegou logo cedo, em carroça puxada por um cavalo já meio velho. Inteirou-se da situação, circulou pelo galinheiro e área próxima. Com frequência olhava para o chão e para o horizonte, em várias direções. Parecia

que rezava, concentrado. Depois de hora e meia relaxou . Disse que era cobra. Voltaria no dia seguinte, que não se preocupasse, traria tudo o que precisaria. Seria demorado. Chegou bem cedo, pediu para a família, marido, mulher, filha e filho, levarem cadeiras para o quintal, uma de sobra, ali se sentarem e permanecerem até o final, só

observando. Abriu uma maleta muito surrada, tirou e vestiu uma espécie de bata, de um

branco impecável, e alguns ramos de alecrim. Ante de começar olhou para a família, viu a menina nervosa, ninguém ali poderia sentir medo, caso contrário a cobra faltosa se sentiria mais poderosa e não viria.

Esta é que deveria sentir medo. Pegou um ramo de alecrim, fez a menina se levantar, pediu que olhasse o tempo todo em seus olhos. Alternava leves batidas do ramo em cada ombro dela e rezava em voz bem baixa. Percebia-se que a menina ia se acalmando. Ao final de alguns poucos minutos disse que estavam todos prontos.

Aproximou-se do galinheiro e começou a balbuciar, com certeza, rezas. As vezes levantava um dos braços fazendo gesto para algo ou alguém se aproximar. Uma ou outra vez levantava a voz, irritado, parecendo que dava ordens. Vários minutos

nesta situação. Daí, duas cobras de porte médio saíram de uma moita, serpenteando rapidamente em direção ao Afrânio. Este, com o braço fez gesto para desviarem e voltarem para o mato. Não eram aquelas, explicou depois. Mais um longo tempo de rezas e de espera, saiu de outra moita uma cobra maior, ziguezagueando lentamente, cabeça baixa, em direção ao benzedeiro, que continuava rezando. Fazia gestos para ela se aproximar e, quando próxima, seu dedo indicador determinava que passasse entre suas pernas. Uma vez do outro lado, outro gesto com a mão, mandava a cobra

voltar para a mata. Assim se deu.

Afrânio continuou a rezar, calmamente, mais alguns minutos, ao final dos quais, extenuado, cambaleando, caminhou até a perplexa e imóvel família e se sentou na cadeira vaga. Ao fim de pouco tempo, pediu água. Explicou que havia ordenado à cobra que se embrenhasse na mata e ali encontraria sua subsistência. Ela não voltaria a importunar.

Olhou para a menina. Ela respirou fundo e deu a impressão de sair de um transe. Não quis ficar para o almoço. Aceitou um quarto de porco e partiu.

A notícia logo correu a região, o problema foi resolvido. Pelos inúmeros relatos de benzimentos de sucesso, de acontecimentos com familiares, fica difícil contestar que os praticantes gozam de poder especial, tratando

tanto males físicos quanto espirituais. Eles parecem controlar as forças que levam a desequilíbrios que, de uma forma ou outra, prejudicam as pessoas.

Eu mesmo passei por uma experiência com meu pai. Nos anos 60, morando em pequena cidade, quase sem recursos médicos, ele contraiu erisipela. Os remédios caseiros ou as pomadas da farmácia, aliviavam os sintomas, mas não curava. Foi

orientado a buscar um benzedor que morava em um pequeno sítio não muito distante. Conseguiu melhor resultado. Logo após o benzimento, a erisipela e todos os sintomas desapareceram. Todavia, sem explicação, passou a voltar todo mês de agosto. Durante três anos, o ciclo se repetiu. Voltava ao benzedeiro em agosto, sarava, reaparecia a doença no agosto seguinte. No terceiro ano deste ciclo, estava o benzedor realizando seu já costumeiro ritual, que consistia das rezas em muito baixa voz, com tom enfezado, deixando escapar palavras como secar, cortar; de untar a ferida com um

pano embebido em banha de porco; de passar, levemente, o fio de uma faca em cruz sobre a ferida, quando sua mulher se aproximou, permaneceu observando por um tempo e, ao final do benzimento do marido, disse que se tratava de um casal. Ela

precisava benzer também. Assim o fez. Mais rezas inaudíveis, calmas, transparecendo que visava uma espécie de convencimento, passou o pano com banha de porco sobre a ferida, em cruz e aproximava a ponta da faca da ferida, várias vezes como se quisesse estourar bolhas. Pasmem! Nunca mais meu pai teve problema com a erisipela. Curou-se.

Meu pai tinha uma loja de móveis e presenteou o casal com uma nova cama de casal e colchão de molas. Os colchões de espuma ainda não estavam em uso.

Estes benzedores eram muito simples, não tinham espaço para luxos. Pessoas de “roupas remendadas sim, rasgadas não” como se dizia, denotando indivíduos humildes e dignos.

Não há dúvida que as rezas, os gestos e os objetos empregados assumem relevâncias nos benzimentos. Os carismáticos benzedeiros são capazes de modificar uma situação indesejada. E fiquei com a impressão de que as palavras, ditas de maneira eloquente ou mesmo calma são os pontos-chaves. Pelo que consta, o poder de cura pelas palavras foi trazido por dedicados católicos portugueses, durante o período de colonização, ocupando lugar de destaque no misticismo popular.

Na cultura popular brasileira, existem os rezadores, os curandeiros e os benzedores. Todos portam uma popularidade mística, inspirando confiança e respeito e, por vezes, medo, temor, pavor. Existem relatos de ações de sucesso de todos eles. As formas de atuação diferem. Os rezadores têm o dom de curar com orações, súplicas religiosas, usando ervas. Com certa frequência se ajoelham. Os benzedeiros abençoam, benzem, fazendo o sinal da cruz sobre pessoas ou

coisas, recitando formas litúrgicas, comumente acompanhados de gestos compatíveis com os resultados que buscam, às vezes, se valendo de ervas.

Os curandeiros utilizam rezas e feitiçarias. Indicam poções, xaropes, remédios. Por vezes provocam maior medo, pois são conhecidos por fazer feitiços. E desfazê-los. Rezadores e benzedores desfazem feitiços, porém não os fazem.

Enfim, a sobrevivência de tais práticas em meio aos avanços da medicina, da tecnologia, pode ser computada às respostas que fornecem a uma gama de insatisfações físicas, espirituais e psicológicas, principalmente aos mais humildes, sem recursos financeiros.

Edson Gomiero
Enviado por Edson Gomiero em 21/12/2024
Código do texto: T8224425
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