O VELÓRIO DE NHÔ BENTO
Por Herick Limoni*
O senhor Antônio Bento, mais conhecido como Nhô Bento, era bastante famoso na cidade. Pertencia à quarta geração de uma tradicional família de comerciantes, e, aos 87 anos, estava há mais de 30 à frente do Empório dos Bento. Casado há 69 anos, estava a apenas um de comemorar as Bodas de Vinho, bebida, aliás, que ele muito apreciava. Era pai de seis filhos, sendo duas mulheres e quatro homens, avô de 12 netos e quatro bisnetos. Sua esposa, Dona Dolores, era um pouco mais nova, e gozava de ótima saúde no auge dos seus 84 anos. Pais e filhos dividiam juntos as tarefas no Empório.
Todas as quartas-feiras à noite, há exatos 42 anos, Nhô Bento tomava banho (o único da semana, aliás), perfumava-se, vestia-se elegantemente, pegava seu carro, por volta das 19:00 horas, e dirigia-se para a cidade vizinha, que ficava acerca de 40 km, para a reunião da Maçonaria. Como Dolores e os filhos sabiam, ele não podia faltar e não podia levar ninguém consigo, muito menos fazer comentários sobre o que se discutia nas reuniões. Terminado o encontro, rumava para casa, onde chegava por volta das 23 horas e 30 minutos. Na manhã seguinte acordava cedo e, após tomar seu café, preparado por Dona Dolores, abria o Empório, pontualmente às 07:00 horas, muito mais disposto e com o semblante mais feliz do que nos demais dias.
E assim a vida seguia, com Nhô Bento trabalhando junto com sua família, todos os dias, e participando infalivelmente das reuniões das quartas-feiras. Porém, em um fatídico dia, quando retornava de uma dessas reuniões, Nhô Bento perdeu o controle da direção do veículo e bateu em uma árvore à beira da estrada, morrendo instantaneamente. A família só soube da triste notícia por volta das 04:30 horas, quando uma equipe da Polícia Militar compareceu na casa de Dona Dolores. A comoção foi geral. Não podiam acreditar que Nhô Bento havia morrido. Como consolo, Dona Dolores sentenciou que ele devia ter morrido feliz, pois havia acabado de participar de uma das reuniões de que tanto gostava.
Logo pela manhã, os clientes estranharam o fato de o Empório ainda estar fechado, algo que nunca havia ocorrido em mais de 30 anos. Preocupados, foram até a casa de Nhô Bento, que distava cerca de 400 metros do comércio. Lá, ficaram sabendo do triste fato. Logo a notícia se espalhou, e como era muito querido, muita gente se dirigiu para a casa de Nhô Bento. Em pouco tempo, boa parte da população da cidade estava na porta da casa.
Resolvidos os trâmites burocráticos, ficou acertado que o velório seria realizado a partir das 13:00 horas, no ginásio da cidade, com sepultamento às 17:00 horas no cemitério municipal.
Pouco depois do meio-dia já havia bastante gente no ginásio, à espera do corpo de Nhô Bento. Coroas de flores chegavam a todo momento, materializando o carinho que toda a gente da cidade nutria pelo velho Nhô e sua família. A funerária atrasou um pouco, e o corpo chegou ao ginásio exatamente às 13:14 horas. Assim que o veículo fúnebre encostou, vários amigos de Nhô se deslocaram até lá, muitos com mais de 80 anos, a fim de auxiliar no transporte do caixão, como último ato de auxílio ao velho amigo. Durante o trajeto de pouco mais de 30 metros entre o veículo e o local onde o caixão seria colocado, era possível observar muitas pessoas em pranto. Para a família, era o sinal inequívoco da admiração que todos tinham por Nhô Bento.
Às 15:00 horas o ginásio já estava completamente lotado, e aquela multidão era um alento para a família, cujos membros, orgulhosos, não tinham dúvidas do quanto o patriarca era querido. O filho mais velho, Manoel, olhava admirado aquela quantidade de gente quando, em um canto, observou um grupo de cinco mulheres jovens, com idades entre 20 e 30 anos, todas vestidas de preto e muito maquiadas, as quais choravam copiosamente, borrando a maquiagem carregada. Ele nunca as tinha visto na cidade. Se fossem da cidade, certamente as conheceria. Aquela situação o intrigou, e pensou mesmo em se dirigir até o grupo e perguntar às mulheres de onde seriam, e principalmente, saber de onde conheciam seu pai. Mas achou que seria indelicado e desistiu.
Durante o velório, as muitas coroas de flores foram colocadas estrategicamente próximo à saída, uma ao lado da outra, de modo que quando o cortejo partisse rumo ao cemitério, todos pudessem ver as homenagens enviadas para o defunto. Eram muitas. Umas trinta pelo menos. Quando o relógio marcava 16:30 horas, os velhos amigos de Nhô retiraram o caixão do catafalco, pois iriam partir à pé, carregando o féretro pelas ruas da cidade até o cemitério. Enquanto caminhavam, Manoel ia observando as inúmeras coroas de flores, quando uma delas lhe chamou a atenção, mas ainda assim continuou seguindo o cortejo. Quando todos já haviam saído do ginásio, Manoel resolveu voltar.
Ao chegar próximo à tal coroa, deparou-se com a seguinte mensagem:
Homenagem da Casa das Carmelitas
Você nos fará muita falta. Nossas noites de quarta nunca mais serão as mesmas!
Descanse em paz.
Imediatamente Manoel matou a charada e sussurrou:
- Então as reuniões das quartas-feiras daquele velho safado não eram na maçonaria!
Passado o susto inicial, Manoel arrancou a fita com os dizeres e a queimou, de modo que sua mãe não tivesse o desgosto de ver aquilo. Recuperado, partiu em passos rápidos para o cemitério, com o firme propósito de interpelar o grupo de jovens desconhecidas. Porém, quando lá chegou, elas não mais se faziam presentes. O enterro transcorreu sem intercorrências, e ao baixar do caixão, a multidão que a tudo assistia aplaudiu efusivamente.
Já em casa, Manoel, ainda com o pensamento na façanha do pai, sentou-se junto da mãe no sofá, indagando-lhe se estava tudo bem, ao que Dona Dolores respondeu:
- Está sim meu filho. Sei que seu pai vai fazer muita falta! Homem bom, honesto e trabalhador era aquele. Você viu a multidão que foi se despedir dele? Ele era muito querido mesmo. Agora, eu só fiquei triste com uma coisa.
- O que foi mãe?
- Você viu aquele tanto de coroas de flores?
Manoel estremeceu. Meneou a cabeça fazendo sinal positivo.
- Pois então, continuou Dona Dolores, aquele tanto de coroas e não tinha uma sequer da maçonaria! E olha que seu pai participava das reuniões há mais de 40 anos.
Nesse instante Manoel, o único que sabia a verdade, abraçou a mãe e disse:
- Não esquente com isso mãe. Pelo menos o pai fez a parte dele.
*Mestre e Bacharel em Administração de Empresas, escritor amador e entusiasta da literatura.