Esta mensagem foi baseada num comentário que fiz ao ler um conto da Poetisa Lia Fátima, Vida no Campo (clique e leia) ele me trouce recordações da minha infância, e no momento que comentava a história ia acontecendo. Grato a poetisa pela lembrança

"Quando a poesia traz outra poesia, ela se torna uma janela para o infinito. E assim, a poesia se reinventa, vive e sobrevive em cada leitura."

 

Um Recanto no Maranhão

  Nas terras do interior do Maranhão, havia um lugar que parecia retirado de um sonho. João Lisboa, como era chamado, era um refúgio onde o tempo parecia fluir em sua própria cadência, embriagado pelas manhãs de orvalho e as tardes de chuva fina. Era em oitenta e dois, e as memórias daquele tempo ainda me cercam com uma clareza que quase me transporta para lá.

 

  Ao nascer do sol, meu avô nos acordava suavemente. Era uma rotina que nunca cansava: eu e meus primos, ainda sonolentos, caminhávamos pelo terreiro até o curral. O frescor da manhã abraçava a todos, e o cheiro da terra misturava-se ao perfume leve do capim molhado. O leite recém-tirado era uma dádiva. Quente, espumante, parecia conter o sabor puro da natureza.

 

  Quando a chuva vinha, buscávamos refúgio na varanda do barracão. Era uma construção simples, mas impregnada de histórias. Gotas de água escorriam das samambaias penduradas em vasos que minha avó cultivava com carinho. Do outro lado, um pequeno laranjal reluzia com o toque da chuva. As laranjas, maduras e reluzentes, chamavam nossa atenção, e a permissão da vó para brincar na chuva vinha com a condição: colher algumas frutas.

 

  Sob o céu cinzento, corríamos para o córrego que serpenteava ao longe. A água cantava sua melodia nas pedras, e o som mesclava-se ao mugido distante dos bois. Meu avô, com passos lentos e firmes, guiava-nos até os coxos. Cavalos, bois e bodes aguardavam o alimento que ele distribuía com paciência. Mesmo nos dias de chuva intensa, quando deslizamentos impediam os animais de alcançar o pasto, ele nunca falhava em cuidar de cada um.

 

  Ao cair da tarde, havia um momento sagrado: reunir-se sob a sombra da mangueira. A manga rosa, com sua polpa doce e macia, era a nossa recompensa. O sol, tingindo o céu com tons de laranja e púrpura, parecia dançar em despedida. Meu avô apontava o horizonte, ensinando-nos a observar a mágica transição do dia para a noite.

 

  A escuridão chegava devagar, trazendo consigo o brilho intenso da lua e das estrelas. O barracão, com suas paredes de barro e madeira, tornava-se um santuário acolhedor. Lá dentro, o aroma inconfundível do queijo fresco e dos bolinhos de chuva nos recebia. A coalhada, servida, era um lembrete de que o descanso da noite estava próximo.

 

  Minha avó, com mãos hábeis e um olhar sereno, preparava cada detalhe. Meu avô, por sua vez, nos envolvia com as palavras de Camões e Bocage, lidas à luz de uma lamparina. A poesia, misturada ao som distante dos grilos e sapos, parecia costurar nossos sonhos, embalando-nos em um sono tranquilo.

 

  Cada amanhecer trazia a promessa de um novo dia repleto de aventuras e aprendizados. O ciclo da vida seguia ali, entre o céu aberto, as águas correntes e o coração generoso daquele lugar. João Lisboa era mais que uma terra; era um abraço da simplicidade, um testemunho do que é viver plenamente.

 

  Este texto continua em espírito na alma de quem o ler e quem viveu tempos assim, porque, como aquele barracão, é feito para acolher, com cada parágrafo contando um pedaço da minha memória que nunca se apaga.

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A Sales
Enviado por A Sales em 24/11/2024
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