Sertão é onde o tempo anda manso
Sertão é onde o tempo anda manso, acompanhando o vai e vem dos homens e o murmúrio da terra. Aqui, tudo se desdobra como as folhas de uma velha palmeira — de manhãzinha, a primeira revoada de passarinhos avisa que é hora de acordar. O sol desponta lá atrás das serras, tingindo o céu com tons alaranjados e dourados, e, junto com ele, renasce o mundo.
No sítio, o galo canta, chama cada um para a lida. As mulheres, ainda com os olhos sonolentos, já preparam o café. O cheiro forte do café torrado enche a cozinha, onde o fogão a lenha estala, aquecendo o corpo e a alma. Pedro Preguiçoso, na sua conhecida luta contra o trabalho, arrasta os pés, enquanto as crianças correm atrás de um cachorro magricelo, que ladra alegremente pelo quintal.
Lá fora, o sertão acordado devagar. Os bois seguem o som dos carros de boi, que avançam pelas trilhas poeirentas; como roças, verdes e fartas, enchem-se de vida com a primeira luz. As mulheres vão à beira do riacho, suas bacias cheias de roupas para lavar, e as crianças correm soltas, gritando de alegria. Aqui, o rio não serve apenas para lavar roupas; ele é o centro da vida. No riacho, todos brincam, lavam a alma e se refrescam das horas quentes do meio-dia.
Ao entardecer, quando o céu já se cobre com o tom vermelho das despedidas, o terreiro vira palco de histórias antigas. Dona Maria, a avó da casa, ajeita sua cadeira perto da fogueira e conta os causos que conheceram quando era menina. Fala de um lobisomem que aparece quando a lua é cheia e brilha forte sobre o sertão. As crianças ouvem, meio assustadas, enquanto o cachorro olha atento para a escuridão, como se ele também soubesse que ali moram mistérios e segredos.
Os homens, de riso fácil, brincam com Pedro Preguiçoso, perguntando se ele vai correr se o lobisomem vier. Mas ele só sorri e diz que, se o bicho vier, vai puxar um banquinho para um dedo de prosa. A risada ecoa pela noite, como um coro que agradece à vida pelo dia, pelos sorrisos, pelas histórias. Os vagalumes piscam na escuridão, enfeitando a noite sertaneja com sua pequena luz, como se fossem pequenas estrelas dançando no terreiro.
Quando a noite chega de vez, o sertão se cala. Tudo silencioso, menos o farfalhar das folhas ao vento e o som distante de um carro de boi que volta para casa. As estrelas brilham no céu, imensas e perto, como que observar o sono tranquilo dos que vivem em paz com o tempo e a terra.
E assim, no sertão, cada dia começa com um sorriso e termina com um suspiro de gratidão. Porque, aqui, o amor está nas pequenas coisas: no cheiro do café, no canto dos grilos, no abraço do pôr do sol e na promessa de que amanhã será outro dia.
Sertão é onde o tempo anda manso, acompanhando o vai e vem dos homens e o murmúrio da terra. Aqui, tudo se desdobra como as folhas de uma velha palmeira — de manhãzinha, a primeira revoada de passarinhos avisa que é hora de acordar. O sol desponta lá atrás das serras, tingindo o céu com tons alaranjados e dourados e, junto com ele, renasce.
O galo já canta, avisando a todos que é hora de abrir os olhos. Nos primeiros raios do sol, a casa do sítio se ilumina aos poucos, com um brilho suave que entra pelas frestas de madeira, revelando o contorno dos móveis antigos, cheios de histórias de tempos que ninguém mais sabe dizer se aconteceram mesmo ou só nas lembranças dos mais velhos. O cheiro de café fresco e forte invade o ar — é o café que as mãos de Dona Maria preparam com paciência, coado no pano que ela mesma ferveu e passou para tirar qualquer gosto que não fosse o de café puro.
Pedro Preguiçoso, enrolado nos panos da cama, ainda luta contra o trabalho. É conhecido por ali como o homem que promete trabalhar “amanhã”. Era sempre “amanhã” que ia plantar, “amanhã” que ia reformar o curral, “amanhã” que ia limpar o terreiro. “Preguiça desse jeito até lobisomem respeita”, diziam os outros, rindo. Mas naquele dia, entre um bocejo e outro, Pedro resolve que vai se levantar e anuncia para quem quiser ouvir: “Hoje, sim, é dia de trabalho, vou dar conta do que prometi!” As crianças param e olham para ele com admiração.
— Será que hoje sai uma alma do purgatório? — brinca João, o primo mais velho, rindo
Pedro só revira os olhos, lançando um olhar preguiçoso para o céu, como se estivesse medindo a força da promessa. “Vai chover, acho eu. Hoje não é dia de suar na roça”, murmura para si mesmo, voltando à sua posição favorita: deitado. Mas o sol já está alto, e não dá pra dormir mais. Então, ele se levanta, lentamente, e se junta aos outros no terreiro, onde as atividades do dia começam.
As crianças correm soltas pelo quintal, perseguindo um cachorro magricelo, que tarde de alegria. Suas risadas enchem o ar de vida, e o som delas se mistura ao movimento dos animais — o mugido do gado ao longe, o piado das galinhas, que se espalham pelo terreiro, bicando o chão. As mulheres do sítio, ainda com os olhos sonolentos, mas já de avental, se entreolham em cumplicidade. Dona Maria pega sua bacia e caminha até o riacho, onde as outras mulheres vão se juntando para lavar as roupas do dia. É uma rotina antiga, passada de mãe para filha, que parece nunca mudar. Ali, à beira do riacho, enquanto esfregavam as roupas com sabão caseiro, elas também esfregavam as preocupações, desabafam e riem de histórias que só ali podia desabafa.
O riacho não é só lugar de lavar roupas; é também o centro de muitas alegrias. Quando o sol se firma alto no céu e o calor aperta, as crianças largam tudo e correm para as margens, pulando na água fresca. O riso se espalha pelo campo e chega até onde os homens estão trabalhando na roça. Até Pedro, conhecido por sua falta de pressa, aproveita para molhar os pés no riacho, observando os peixinhos que nadam rápidos.
O calor vai subindo, e as mulheres chamam as crianças para o almoço. Na cozinha do sítio, o cheiro do feijão com alho e toucinho, cozido devagar no fogão a lenha, domina tudo. A fumaça do fogão escapa pela chaminé e se mistura ao ar do campo, trazendo uma sensação de casa, de família, de fartura. A mesa de madeira antiga está posta, e todos se reúnem ao redor dela, em um ritual que se repete todos os dias, mas que nunca perde o gosto. Cada um toma seu lugar e agradeça em silêncio pela comida, pela saúde e pela simplicidade que sustenta suas vidas. E mesmo que seja um almoço simples, ele é completo — com arroz, feijão, carne de porco e abóbora refogada, colhida da horta que as mãos das mulheres cuidam com tanto amor.
Quando o sol já vai se despedindo, o trabalho na roça termina, e o terreiro começa a ganhar vida novamente. As crianças, que já descansam e recarregam as energias, inventam novas brincadeiras, correm e pulam, enquanto os adultos se reúnem ao redor da fogueira que começa a ser acesa. É ali que a magia do sertão acontece de verdade. Com o céu escurecendo aos poucos e as primeiras estrelas aparecendo, Dona Maria se ajeita em sua cadeira, com um olhar que mistura carinho e experiência. As crianças se aproximam curiosas, esperando as histórias que só ela sabe contar.
Dona Maria começa com uma voz suave, quase sussurrando, e fala de tempos antigos, de histórias que ouviram quando era menina. Conta sobre um lobisomem que aparecia em noites de lua cheia e vagava pelas estradas desertas, assustando os viajantes. As crianças ouvem com os olhos arregalados, olhando para o escuro ao redor, como se a qualquer momento algo pudesse sair dali. O cachorro da fazenda, que estava tranquilo ao lado de Pedro Preguiçoso, começa a latir para a noite, como se entendesse que havia segredos escondidos.
— Pedro, se o lobisomem aparecer hoje, você corre ou fica? — provoca João, tentando aliviar o clima.
Pedro Preguiçoso sorri, aquele sorriso meio torto, e responde: “Ah, eu vou é convidar o lobisomem para um café! Quem sabe ele se sente e a gente conversa de igual para igual.” As risadas se espalham, ecoando na noite calma, enquanto as crianças riem, entre colapso e mim
A fogueira ilumina o rosto de cada um, e o brilho dos olhos de Dona Maria reflete a paz de quem vive em harmonia com o tempo. A noite vai avançando devagar, e todos sabem que, no sertão, cada momento importante. A simplicidade da vida no campo revela sua profundidade em pequenos gestos — no olhar tranquilo, nas mãos que se unem para contar causos, nas risadas que ressoam entre os filhos da natureza.
Os vagalumes começam a piscar ao redor, dançando na escuridão como estrelas próximas. Para eles, a noite é como um palco, onde se mostrar, iluminando o terreiro com um brilho suave e intermitente. Ao longe, o som dos grilos, o coaxar dos sapos e o zumbido dos insetos formam uma melodia única, que só se escuta no sertão. A vida se revela devagar, sem pressa, e cada respiração parece uma oração de gratidão à terra que sustenta que acolhe e que guarda.
Mais tarde, quando a fogueira já se apaga aos poucos e o sono começa a pesar nos olhos de cada um, as crianças se aninham no colo das mães, embaladas pela tranquilidade do lugar. Os homens começam a se levantar, ajeitando as cadeiras, e as mulheres recolhem as panelas e os copos, guardando tudo para o dia seguinte. O terreiro fica em silêncio, iluminado apenas pelo brilho da lua e pelo rastro.
O sertão adormecido, mas é como se cada coisa ali estivesse apenas em pausa, esperando pelo próximo amanhecer para retomar sua rotina. É um ciclo que se repete, sempre igual e sempre novo. No dia seguinte, o sol nascerá de novo, vermelho, forte, trazendo o calor e a vida. E o sertão, com toda a sua calma e toda a sua força, estará lá, lembrando a todos que, na vida, o mais importante é não correr, mas caminhar lado a lado com o tempo, com a terra e com o som do amor que ecoa em cada pequeno detalhe da existência.