Misteriosa Noite

O ocaso trazia consigo a sombra noturna, quando três figuras (Tiê, Gibão e Saca-Pinga, também apelidado por "Milive") desciam a rua Josefina Ludovico. Os três discutiam os planos daquela noite. Somando o dinheiro que tinham nos bolsos, não chegava a cinco reais. Tinham que encontrar uma maneira de fazer aquele dinheiro render, senão teriam que voltar para casa muito cedo. A noite ia se acentuando quando se aproximaram do bar do Penteado. Decidiram tomar uma talagada de pinga para animar. Ficaram por ali algum tempo, assistindo à dança dos jogadores em volta da mesa de sinuca. Tiê era um exímio jogador, pensou em entrar no jogo. Mas, era pouca a grana que restou, apenas dois reais. Se perdesse a primeira partida, teriam que voltar para casa. As pessoas dali eram desconhecidas e ninguém oferecia sequer uma pinga. Gibão perdeu a paciência e chamou os amigos para ir embora. Já passava da meia-noite quando decidiram ir para o bar do Liolino, lá na rua Getulino Artiaga. Ali era o "point" dos jogos de sinuca da cidade, corria um bom dinheiro.

Liolino (Lió) era um comerciante de bebidas muito conhecido e o seu bar era o palco de grandes partidas de sinuca. Naquela noite, o movimento era intenso, pois estava presente o menino Edvaldo Xavier, melhor jogador da região. Tiê e seus amigos chegam e encostam num canto, só observando. O jogo valia dinheiro e o vai e vem de pernas, tacos e braços não parava. As pessoas se amontoavam querendo ver as jogadas. Umas torciam, outras esperavam o momento para entrar na partida. Os jogadores se revezavam a cada rodada, olhares tensos, firmes, concentrados. O menino Edvaldo brilhava com suas tacadas insólitas. Como num liso tapete, a cada tacada sua, a bola branca rolava no pano verde e raramente errava o alvo. Mais uma partida vencida. Quinze partidas seguidas, sem perder. O menino estava inspirado. Ao final de cada partida, as bolas eram repostas na mesa e o vencedor realizava a tacada inicial. Nesse instante, Donizete, um dos jogadores, resolve desistir do jogo. Era a oportunidade que Tiê esperava para entrar no jogo. Quando vê uma meia dúzia de pessoas se levantarem para entrar no seu lugar, Donizete recolhe o taco e decide jogar mais uma partida. Então, algo inesperado acontece. Ao realizar a jogada inicial, o menino Edvaldo desfere uma forte tacada e, por incrível que pareça, caem todas as suas bolas, num único movimento. Sem dinheiro, Donizete diz que não vai pagar e o jogo termina em briga. Desanimados, Tiê e seus amigos saem do bar e se dirigem ao centro de Nerópolis. De início, Saca-Pinga não concorda, dizendo que os bares dali só eram frequentados pela elite da cidade, que iriam se sentir como peixes fora d'água. Gibão também não acha certo. Tiê os convence, dizendo que lá havia muitos bares e que os caras da elite eram patos, não sabiam jogar sinuca. Podiam aumentar aqueles dois reais que restavam. Já era madrugada quando desceram a Josefina Ludovico rumo ao centro.

O centro da cidade apresentava um estilo padrão de cidade do interior: uma igreja, uma praça, uma delegacia, alguns bares e casas noturnas onde se podia beber e dançar... Os três chegaram e ficaram observando o movimento das mesas de sinuca. Esperaram um tempo até que Tiê achou que era o momento de entrar no jogo. Era tudo ou nada, a rodada valia dois reais por jogador. Tiê realmente era muito bom e com poucas tacadas, ganhou a primeira partida. Agora, com dez reais na mão, podia jogar mais tranquilo, sem medo de errar. Depois de algumas partidas, entre perde e ganha, Tiê tinha vinte e seis reais no bolso. Era hora de parar. Dividiram a grana e foram tomar cerveja. Empolgados com o sucesso de Tiê na sinuca, nem perceberam que haviam se excedido na bebida e o dinheiro mal deu para pagar as cervejas que tomaram. Pagaram a conta e sobrou apenas um real. Estavam na lona novamente. Resolveram voltar para o bar do Penteado. Já era tarde e os frequentadores eram escassos, tudo quieto. Para quebrar o marasmo, alguém convida Tiê para uma partida. Com um real no bolso, Tiê olha para os amigos e um brilho aparece em seus olhos: era a chance de fechar a noite com chave de ouro. Bora lá. O jogo se desenrola com jogadas bonitas e certeiras, o cara também jogava bem. Numa tacada de mestre, o adversário de Tiê mata a bola, mas suicida o bolão. Restam duas bolas no jogo, penduradas na boca da caçapa, uma de cada um. A vez é de Tiê, não tem como errar. Tiê prepara a tacada quando uma voz rouca e forte diz: --- Você não mata essa bola! Todos se voltam para a direção de onde veio a voz e se deparam com um sujeito mal encarado, olhar gelado e penetrante. Ninguém diz nada. Tiê dá uma risada sarcástica e diz:--- Nunca errei. Se prepara novamente e desfere a tacada. Nesse instante, a voz ecoa quase que num estrondo:--- São Cipriano!!! O bolão percorre rapidamente o pano e bate na bola que baila nos bicos da caçapa e volta para o meio da mesa. Um frio intenso percorre a espinha de cada um ali presente e, assombrados, vão saindo cabisbaixos, sem dizer nada. O sujeito desaparece na noite e Penteado fecha o bar.

Subindo a Josefina Ludovico, três almas desoladas seguem, caladas. De repente, Tiê quebra o silêncio: --- vocês viram aquilo?

Gibão:--- Cruz credo!!!

Saca-Pinga:--- Milive!!!

Novo silêncio... E as três figuras seguem o rumo de casa. Enquanto isso, no horizonte, o clarão da aurora anuncia a chegada de mais um dia, radiante, cheio de vida.

Ranon Amorim
Enviado por Ranon Amorim em 09/11/2024
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