PASSAGEIROS DA AGONIA
Abraão era um velho morador do Morro da Providência, um dos muitos que cresceram entre as vielas estreitas e os sussurros de histórias não contadas. Filho de uma empregada doméstica e o mais velho de seis irmãos, aprendeu cedo o peso da responsabilidade. Seu pai, um homem de promessas quebradas, abandonara a família quando sua mãe ainda carregava o irmão mais novo, deixando um buraco profundo que a criança teve que aprender a preencher.
Desde pequeno, Abraão se viu obrigado a contribuir para a renda familiar. Começou vendendo picolés nas praias, balas e pipocas em festas de rua, até que, em um momento de desespero e necessidade, percebeu que a "muamba" era uma alternativa mais lucrativa. O comércio ilícito se tornou um meio de sobrevivência ao redor da Igreja da Concordância, onde os ecos de risos e orações se misturavam com os sons do dia a dia do morro.
A vida, no entanto, não foi generosa. Sobreviveu a uma chacina que deixou cicatrizes na comunidade e na alma. Com o tempo, Abraão encontrou um novo caminho. Começou a trabalhar como carregador em uma empresa, onde aprendeu a dirigir. Sua determinação o levou a conquistar a habilitação de categoria E, e logo arranjou um emprego em uma empresa de ônibus. Ele dirigia a linha Rio-Niterói, saindo do bairro Estácio, um trajeto que se tornaria um ritual diário.
Ao longo dos anos, Abraão se tornou um profissional respeitado, conhecido por sua educação e bom humor, mesmo quando os passageiros se mostravam mal-humorados e rancorosos. Ele conhecia muitos deles, compartilhando histórias de vida em meio ao vaivém das viagens. Contudo, por trás de sua fachada alegre, a vida não era fácil. Separado da primeira esposa e atormentado pela culpa de não ter conseguido manter a família unida, ele se via como um reflexo do pai ausente. O novo casamento, embora repleto de amor, trazia suas próprias dificuldades, especialmente financeiras. A pressão constante das dívidas e os agiotas se tornaram parte de sua rotina.
Abraão frequentemente se lembrava da infância, desejando para seus filhos um futuro diferente. Ele via os filhos dos médicos e professores se transformando em profissionais respeitados, enquanto seu próprio filho, fruto do primeiro casamento, se contentava em não ser um "nóia". A dor de não ver o sucesso do filho o consumia, e a sombra da pobreza ameaçava sua nova família, que também não tinha plano de saúde, enfrentando as mesmas dificuldades que ele conhecera na juventude.
Em um dia como qualquer outro, após uma jornada de trabalho, Abraão decidiu que era hora de fazer algo drástico. Ele se despediu de seu filho e da ex-esposa de maneira especial, fazendo o mesmo com seus irmãos e a nova esposa. O abraço mais apertado foi para sua filha, a única que carregava um pouco de sua esperança. Ele sussurrou que a amava muito, como se aquele fosse o último momento de felicidade que poderia proporcionar.
Ao chegar ao terminal, ele subiu no ônibus para mais uma viagem a Niterói. Abraão estava, aparentemente, alegre, trocando palavras com os passageiros, mas dentro de si, um turbilhão de emoções o consumia. Ao retornar, olhou nos olhos de cada um deles e, com uma calma assustadora, proferiu sua última frase: "Hoje, muitos acabarão com seus sofrimentos, e os que estão alegres permanecerão felizes até o final de suas vidas."
Com essas palavras, ele jogou o ônibus da ponte Rio-Niterói, selando o destino de todos a bordo. A tragédia foi imensurável, e embora as autoridades tentassem resgatar vidas, não havia como reverter o que já estava escrito. A escuridão que o envolveu não encontrou saída, e a vida que ele tanto lutou para mudar se tornara um eco distante, perdido nas águas profundas da Baía de Guanabara.
A história de Abraão é um retrato cruel da luta humana, uma lembrança de que, por trás de cada sorriso, pode haver uma dor que ninguém vê.