A hóspede de Catarina
Passava de meia-noite e o casal estava extremamente aflito.
- Se esse cidadão tiver feito alguma coisa com a minha filha, sabe o que eu vou fazer?
- Que é isso Diogo. Ele é um rapaz tão educado...
- Isso eu sei, mas pode ser tudo fingimento. Eles deviam estar de volta há três horas...
Totó compartilhava do nervosismo. De vez em quando chegava na porta que nunca se abria, choramingava e deitava com o olhar muito triste, pouco depois afastava-se, olhava os donos e tornava ao mesmo lugar. Em cima as crianças dormiam, sem suspeitar do drama.
O relógio cuco marcava meia noite e dezesseis minutos quando Helena finalmente avistou da janelinha o familiar corcel de Jairo, estacionando junto da cerca. Diogo ampliou a luminosidade do "dimer" e logo os passos de Catarina e Jairo se aproximaram, rápidos.
A porta se abriu.
Foi uma cena patética. A rapariga tinha arranhões no rosto, a blusa rasgada e um curativo no braço esquerdo. O rapaz não estava em melhores condições, com hematomas no rosto e a camisa suja e amarfanhada.
Às perguntas histéricas eles fizeram o possível para explicar:
CATARINA - Se me deixarem falar, mas não fiquem nervosos, bolas!
HELENA - Mas vocês foram assaltados?
- Não é bem isso, mamãe. Eu saltei do carro para salvar uma coisa linda que eles iam matar!
- Eles quem?
- Uns pivetes.
-Meu Deus, você se meteu com pivetes?
- É, e fomos parar na polícia.
DIOGO - Sua mãe e eu estamos quase malucos, imaginando porque a demora...
JAIRO - Seu Diogo, está tudo bem. Nós passamos por maus momentos...
- Mas o que...
CATARINA - Tudo bem, pai. Vamos contar tudo, mas PRIMEIRO eu vou trazer a coisa linda que ficou no carro. Ela está apavorada.
A moça abriu a porta e saiu correndo sem responder mais perguntas.
DIOGO - Será que ela ficou maluca de vez?
HELENA - Não me diga que vocês encontraram uma criança abandonada!
JAIRO - Bem, na verdade... ora, já vão ver!
Logo Catarina veio vindo, carregando nos braços um grande volume de 25 quilos prováveis!
- Mas o que é isso? - perguntaram Diogo e Helena.
Totó começou a latir e Catarina colocou o volume no chão. Este começou a se mover, fugindo ao cachorro.
HELENA - Que é isso afinal, Catarina?.Uma paca?
- Que paca, mamãe! Não está vendo? É uma capivara!
DIOGO - E como é que você descobriu esse bicho? Não pense que ele vai ficar aqui dentro!
- Mas pai, eu arrisquei minha vida para salvar a Princesa!
- A que?
- Princesa. É o nome que dei a ela. Tive que brigar com os moleques e garanto que foi briga de soco.
Diogo dirigiu-se a Jairo que estava um pouco na moita:
- Minha filha briga com marginais e você não faz nada?
- Não faço nada? E como é que arranjei essas equimoses?
- Mas então...
A cena foi interrompida por vozes alegres e infantis aos gritos. Sandra, de onze anos, Marcelo, de dez, de pijama e pés descalços desciam lepidamente a escada, na maior animação. Ficaram malucos ao ver o bicho, que já confraternizava com Totó - felizmente um cachorro de muito boa índole.
AMBOS - Uma capivara!!!
CATARINA - Viu, mãe? Todo mundo sabe o que é uma capivara!
- Está muito bem, mas conte logo o que aconteceu!
Catarina contou. Voltamdo do cinema viram uma agitação numa viela e perceberam que um grupo de moleques, armados de paus, acuavam o que em princípio parecia ser um cachorro gordo. Haviam adultos espiando de longe, mas sem tomar qualquer atitude.
Catarina logo ordenou a Jairo que aproximasse o carro e sem esperar a opinião dele pulou fora.
- Bem, eu vi logo o que era. A maior covardia, imaginem! Estavam simplesmente trucidando a coitadinha! Não estão vendo como ela está toda machucada e assustada? Ah, eu vou dar um bom banho nela, botar curativo e dar comida. Ela vai ficar linda!
- Mas como foi...
- Ora, mãe, não está vendo que nós ganhamos? O Jairo foi um verdadeiro herói, eu garanto.
DIOGO - E foram parar na polícia?
- Ah, fomos. Levei até uma paulada aqui no ombro, estão vendo? Mas o Jairo tomou o cacete e meteu no bandidinho. Eu fui dando pontapé como pude, foi uma briga daquelas! Ah, depois na delegacia o delegado ainda não queria nos liberar. Não sei se estava com medo dos pais deles...
JAIRO - Tenho certeza de que nós saímos logo e com a capivara porque eu sou advogado e tenho conhecimentos. Nessa terra é assim.
Após mais alguns detalhes veio a pergunta fatal, feita por Diogo:
- Está muito bem, mas amanhã vamos avisar o zoológico, não é?
Marcelo e Sandra pularam:
- Isso é que não! Ela vai ficar conosco!
- Ela tem que ficar! Ela é adorável!
CATARINA - E tem mais! Se ela não ficar eu também não fico!
HELENA - Mas ela deve ser de alguém, puxa!
- Veremos. Vamos chamar a tv e fazer um apelo: se houver dono que apareça, mas vai ter que provar cem por cento senão nós não entregamos. Não mesmo!
Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Certamente a Princesa dificilmente teria conhecido lar melhor. Não apareceu dono: aparentemente quem a possuía, simplesmente jogara-a na rua - como é triste, infame hábito de tantos cariocas.
Passou-se o tempo. Princesa, grata como toda boa capivara, agarrara-se à dona e benfeitora com um apego comovente. Nesse ínterim Catarina casou-se com Jairo, indo ambos morar perto dos pais para que as crianças não se separassem da roedora, que queriam ver todo dia.
E na noite de núpcias o complacente Jairo observou pacientemente:
- Querida, eu também adoro a Princesa. Só que pelo menos a gente pode pedir que ela se acostume a dormir na sala, não acha?
Rio de Janeiro, 21 e 22 de junho de 1984.
Nota: esta história foi escrita antes que existisse o celular.
imagens freepik e pinterest