O enterro do João - parte 1

Deu-se que morreu João. Vinha pela estradinha de terra, magoando a precata velha e remendada de arame, teimando a perna na contrapedal verdona, de selim de franjas coloridas. Naquele aclive indecoroso largou meio pedaço do baço, e se atreveu na falha da corrente que tava afrouxada na vinculação. No sufocamento do bafo de meio dia, se arruinou no barranco de peito e tudo, engolindo bem uma resma de terra. Não foi da queda que morreu. Não. Nem era caso. Naquela esfalfação de perecimento, se viu aluindo as obtenções de cor e de ar. Deu-se a primeira biloura.

Nem uma viv’alma lhe acudia na precisão. Naquela gleba ausente, só se via a interrupção do tempo, na síncope do existir faltado. Era um vazião de tudo, nem uma pobre árvore velha a lhe fazer sombra. Nem uma poça de lama para lhe alentar a sede. Nada. No céu pálido um sol colérico se vingava de João. Era dia de não ter nuvem. “Nem nuvem! Valha-me, Deus!” Nem passarinho para lhe cantar a modulação da vida ao passamento.

Deu-se a segunda biloura. Deu-se perdurável. Uma dor no espinhaço lhe queimou inteiro. Foi fulminado de dor. Morreu, talvez. Morreu, eu acho. Só foi achado três horas mais tarde por um palmilhador qualquer que, na misericórdia dos propícios, logrou valência em outros cantos, a deslocarem o corpo recém falido do de cujus.

Sem tardança alguma, a viúva encheu a casa de escabiosas. E demandou que se rompesse com aquilo para um pronto. Enfeitado de gente no caixão, chegou João. Numa exsudação abundante, o morto tinha conjuntamente umas tremuras, que foram assumidas de naturais. Para refrescar defunto, supriram o recinto de uma giroeta.

Nem bem velaram por duas horas o pobre do João e a viúva quis saber da inumação. Tinha um formigueiro na alma que não aprazava delongas. Então romperam sem nem o padre chegar.

Segue o corpo no caixão. Mortinho da Silva! O tal do João. As pegas de bronze coruscando ao sol gordo da rua quente. Meio-dia do outro dia. Seis desassombrados fulanos da vizinhança carregaram o morto. Solenes. Eram os únicos suficientemente parrudos, para arrostarem o peso de defunto misturado à quentura do inferno poeirento da rua.

Meninos alheios soltavam raia, favoráveis na esquina. Por um transitório deixaram o divertimento oscilando no vento, enquanto bisbilhotavam o cortejo fúnebre.

As velhas desdentadas entoavam o "a nós descei divina luz", quase em forma de canto chão. A viúva deu por si que enviuvara e, num choro convulsivo, foi aguentada por um filho adulto. O catarrentinho menor decorreu no colo da mais moça. Um gaiato, esfolando um paletó branco de sedução, usufruiu de enlaçar a jovem órfã sob seus braços peludos e empoeirados.

Num ambívio, um carro de som anunciava: "galinhas gordas, galinhas sadias, dez reais, promoção do dia".

Uma velha rechonchuda e de voz robusta começou um canto diferente, quase arrulhou ao tirar da goela o "avé-avé-avé-maria..." e foi seguida por um sanfoneiro embatucado e careca que chegava esbaforido ao cortejo. Mais adiante o padre anuiu no entramento naquela batelada e foi benzendo o povo com rezas de muita fé.

Já no cemitério o padre sacolejou umas águas bentas no caixão. Naquela gemência de agrura a viúva requisitou uma derradeira espiadela no marido, tão bonito, tão predisposto e agora tão miseravelmente morto. Já aberto o ataúde, o padre encomenda-lhe a alma, e depois joga as águas no morto e também no povo que o assiste. O morto tremia e suava, mas era tão aprimorada a demanda, que olho nenhum se advertiu.

A moça mais moça despejou o catarrentinho no chão e se jogou sobre o pai esmarrido gritando: "Levanta, pai!"

O povo se comoveu exorbitante e o choro era entoado cada vez mais soberbo. A cantoria cessa e uma melodia de soluços impera no cemitério. Só a rechonchuda da vozona não chorou, mas parecia que estava com um engasgo mortal dentro dela.

O catarrentinho abrangeu a perna da mãe e, no berro do improrrogável, pediu para mijar. A bulha era tão venerável que nenhuma viv’alma, nem mort’alma, era capaz de escutar a requisição do menino.

O caixão foi abotoado. Agora, na fidúcia do inevitável, a viúva grita e desmaia. Foi especada pelo filho mais velho e ventilada por uns gentis confrades. No socorrimento da mulher, ninguém deu parte do menino esbravejante: “quero mijar, quero mijar!”

O caixão desceu à cova pelos braços dos desconhecidos mais altruístas. A filha, na agonia dos iniciados na morte, jogou um punhado de terra. Depois, aloucada, enfiou a cara no monte de terra que ficou no chão. Desgrenhada e com a boca espumando, gritava cada vez mais alto: "Levanta, pai!" Mas o defunto fez ouvidos moucos.

A primeira pá de terra foi aventurada. Escalou um poeirão avermelhado. A velha adiposa da voz cavernosa espirrou. A escanzelada, que usava dentatura com muita gengiva, lacrimejou.

A segunda pá de terra foi disparada sob protestos da filha histérica. A mãe continuava desconsiderada. O afligimento entabulava mais uma vez gerenciar o lugar. A gente toda tinha pena da filha despovoada de alegria. Havia auras de clemência. E algum silêncio cortado por ganidos. O mancebo em linho branco, principiado na seducência, tentava enfiar os dedos nos cabelos da moça chorosa para alisar sua derrota.

Então, antes que se empenhasse a terceira pá de terra, um ímpeto aquoso abandonou o corpo do menino. O catarrentinho desavergonhado, situou o pinto pra fora do calção de brim, e mijou no caixão do pai.

O lugar, de um arroubo, emudeceu.

O petiz, no executável de sua inocência, sacudiu a cabeça olhando nos olhos murchos da irmã chorosa, e se atreveu ridente e muito arrazoado: eu avisei!