Pingo
Lembrei de uma coisa aqui: já puxei carroça. Qua-dru-pe-de, nem faz
muito tempo. Não sei se fui burro ou cavalo, não entendo dessas diferenças.
Jumento talvez. Lembro e sem bem o que é ser ferrado: quatro argolas de ferro
grampeadas em meus pés.
Se parar pra ver, cavalo só tem quatro dedos, mas não tem desconto na
pedicure. Pensa num trabalho caprichado? Ter suas unhas cortadas à torquês,
destrinchada no formão, cutilada à canivete, acabamento bruto na grosa. —
Pronto pro trabalho! O que o besta-fera dizia sempre. Aquele carroceiro
safado, dizia que me amava, eu, seu sustento. Mas sabia que, se não
estivesse eu, todo amarrado, dava um coice bem no meio da cara dele.
A primeira ferradura que solta te deixa manco. Diz a lenda que dá sorte.
Todo peão que preste sabe que, ferradura boa tem oito furos. Sete? Sorte de
quem? Distração de ferreiro mais burro do que eu quando puxava carroça, isso
sim!
Não nasci pra matungo, pangaré que fui, cai para carroça: puxando
prancha, levando entulho, material de construção, mudança de pobre. Corda no
pescoço, pastando em terreno baldio. Buzina, asfalto quente e relho. Desde cedo
percebi que a vida não seria fácil, aprendi com minha mãe. A seguindo pelas
ruas, estrada de terra, me enfiando entre os travessões da charrete, tralhas de
sua cangalha, sugando o leite de suas tetas salgadas. Vivi essa vida.
Bom mesmo é nascer alazão: tranquilo no pasto, descansar seguro em
estabulo forrado. Cocho farto, agua fresca, lamber sal o dia todo se quiser. Raça
nobre, cuidado com zelo, baia com nome entalhado na madeira. Ter o pelo
escovado, ser casqueado com carinho. Beijo na fronte, foto na parede (Ô vida
boa!). Viver vinte cinco, trinta anos tranquilo, ficar banguela e ainda ser amado.
Sabe quanto tempo vive puxador de carroça como fui? Tu não sabe? Não passa
de quatorze! Eu? Virei charque antes dos dez. Valia mais nada, todo duro,
velho. Sorriso frouxo, faltando dente. Triste fim? Sorte a minha!