ONDA NO AÇUDE
Foi bom o senhor chegar agora seu Olegário, porque eu estou doido para saber como foi essa história do senhor ter feito uma onda com mais de três metros no açude que tinha aqui antes do campo de futebol. Eu nunca tinha ouvido essa história, foi verdade mesmo, foi?.
- Foi, aconteceu.
- Então me conte, seu Olegário. O senhor sabe que eu gosto muito de ouvir as suas aventuras.
- Que realmente aconteceram...
- E quem é que pode duvidar de um homem da categoria do senhor? Quem é doido?
- Olhe Marculino, isso já faz tantos anos que nem mesmo eu me lembrava mais. Foi sim,
Sentado na mesa preferida e com o copo de cerveja diante dos olhos, como se perscrutasse os tempos idos e vividos intensamente, seu Olegário começou a narrativa com a voz grave e pausada dos mais notáveis griôs.
- Olhe meu filho. Não existe dor pior para um pai do que ver um dos seus filhos se acabando com uma doença desgraçada como a tuberculose. A criatura vai sumindo, pálida, sem vontade para nada, incapaz de pegar a vassoura para limpar o terreiro... é uma tristeza... e foi o que aconteceu com Angelina, a filha mais nova de compadre Borges. Moça linda dos cabelos cor de mel com terra, cacheado pelos ombros...
- O senhor namorava com ela, seu Olegário?
- Não menino. Eu era solteiro nessa época e não pretendia me casar tão cedo. Tinha que servir no exército, cuidar do gado do meu pai... não, não dava para pensar em casamento ainda não. Mas voltando à história.
Angelina pediu ao pai para ver uma onda do mar antes de morrer. E foi por isso que compadre Borges, que Deus o tenha, me pediu ajuda para ver o que poderia ser feito para satisfazer a vontade da menina, coitadinha.
Eu cheguei em casa tão impressionado que contei para minha avó o que estava acontecendo. Aí ela se lembrou da comadre que ela tinha que sabia de umas rezas para que as coisas não perdessem a capacidade de fazer as coisas que sempre fizeram quando são tiradas do lugar onde estão e também que uma dessas rezas fortes estava dentro do livro de rezas que ela levava todo domingo para a igreja que era para as orações não perderem as forças e realizassem os desejos das pessoas boas.
Eu sabia das histórias dessa comadre de minha vó, mistura de índio com preto africano, mas nunca tinha lido as tais rezas que ela sabia fazer e que estavam dentro do livrinho de rezas que estava perdido desde que a minha avó ficou muito velha, que passou a rezar o terço, toda tarde, e nunca mais tinha ido para a igreja.
E aja a gente a procurar o livro que ninguém sabia onde estava.
Depois de uns dias procurando, já era de noite, o frio estava de lascar pau seco, aí eu pedi a minha avó outro cobertor para forrar a rede. Ela foi pegar o cobertor e assim, mesmo sem querer, achou o livrinho no fundo do baú de roupa de casa e dentro dele estava o papel com a reza. Muito mal escrita, ruim de ler, mas a intensão é o que vale.
No dia seguinte, eu fui falar com compadre Borges para a gente ir na praia buscar umas jarras com água do mar.
Mas precisava ser jarra das grandes porque para a coisa funcionar, precisava ter bastante material.
Acertamos tudo, colocamos no caminhão da feira seis jarras dessas que cabem cinco latas d’água dentro e fomos buscar a água do mar lá na praia de Sirinhaém que naquela época tinha água limpa com cheiro de maresia.
Saímos de casa antes do sol nascer e durante o percurso eu vim fazendo a reza da índia velha e o compadre Borges rezando o terço, porque era uma missão de muita responsabilidade.
Quando chegamos, o mar estava calmo com o sol nascendo bonito, lá na linha do horizonte. Compadre Borges perguntou se mão era melhor esperar o vento fazer as ondas para pegar a água em movimento forte. Aí eu disse a ele que não. A água devia ser pegada como estava se apresentando naquele momento. Enchemos as jarras até com os pedaços de sargaço que vieram para dentro da lata, assim que nem quem quer dizer, eu tenho que ir também e voltamos em cima dos pés.
De tardezinha, quando chegamos a estrela papa-ceia já tinha se apresentado e enquanto eu levava as jarras para a beira do açude, o compadre Borges foi buscar a filha dele.
Ela veio na rede, carregada pelo pai e o vaqueiro Manoel Gerônimo, que foi o homem mais decente e honesto que eu já conheci na vida. Quando eles chegaram, a menina estava cansada que parecia que tinha passado o dia todo trabalhando na enxada debaixo de sol quente.
Aí posicionaram ela direito e eu despejei as jarras de uma vez só dentro do açude. Olhe. Eu chego a me arrepiar quando lembro do que aconteceu... parecia que não ia acontecer nada.
A água salgada, brilhando por causa da luz da lua, foi se espalhando por cima da água do açude, foi se afastando da beira, quando chegou mais ou menos no meio, o vento começou a soprar, fez-se um redemoinho e de repente, formou-se a onda assim que nem uma parede, veio rolando e se espalhou na beira do açude. Chegou a molhar o fundo da rede aonde Angelina estava deitada com os olhos brilhando de felicidade. Ela pegou um pedaço de sargaço que caiu dentro da rede e eu acho que por causa de tanta felicidade que estava sentindo, morreu nesse mesmo dia.
- Ô seu Olegário, não era mais fácil levar menina para ver o mar?
- Era. Eu sei que era, mas ela não tinha condições nem de sair da cama, quanto mais fazer a viagem até o mar. Eu não tive coragem para dizer um negócio desse a um pai sofrido como compadre Borges não, Marculino... você ainda é muito novo para conhecer as tristezas da vida.