Luto empresarial
Nunca mais foi a mesma desde a morte do seu pai. A insônia foi o primeiro indício de que nada seria como antes, tornando longas as noites e escandindo o tempo a cada virar-se na cama. Deitada, de olhos abertos no escuro, podia ouvir o incessante tic-tac que vinha da sala. O relógio não combinava com o restante da decoração, mas foi um presente paterno no aniversário do ano passado.
Ingrid juntou forças para seguir adiante, sabia que era isso o que ele desejaria para ela – que tivesse uma vida plena, realizasse seus sonhos, não gostaria de vê-la assim parada a olhar o horizonte. Foi ao médico, conseguiu receitas de clonazepam. Nunca havia usado esse tipo de medicação, o que a deixou receosa nos primeiros dias, mas logo ficou satisfeita por dormir bem novamente.
Voltou a trabalhar depois de cinco dias. Recebeu as condolências rápidas dos colegas, e sentou-se em sua mesa. Focou na tarefa e esqueceu as imagens dos últimos dias – o velório, as pessoas sentadas, os cumprimentos – meus sentimentos, meus sentimentos - o padre falando, os homens carregando o caixão seguidos pelo cortejo das mulheres chorosas, o padre falando uma língua distante enquanto a terra cobria as paredes de madeira.
- Você consegue entregar esse relatório até amanhã? - perguntou o gerente administrativo.
- Claro - respondeu sem pensar muito, e num relance viu as suas unhas compridas, não pintadas, as cutículas por fazer – enquanto a vida me permitir…
O gerente ficou um pouco confuso, e não sabendo o que responder, voltou para sua mesa.
No dia seguinte, o relatório estava pronto, cruzou o corredor e o entregou em mãos, com um sorriso – trabalho dado é trabalho feito. Quando estava voltando, a colega reparou – amiga, que linda essa cor de esmalte!
- Obrigada! fui ontem na farmácia comprar um remédio, e aproveitei, com tudo que aconteceu tinha desleixado das unhas.
- Ai, nem fala, não posso nem imaginar o que você está passando… você não quer ir comigo depois escolher um vestido, quem sabe te ajuda a se distrair um pouco?
- Sim, acho que vai ser bom para mim.
Na loja, embora tivesse ido apenas com a intenção de acompanhar, acabou experimentando algumas roupas. Levou até o provador um vestido azul, uma saia verde e uma calça jeans estilo wide leg. Enquanto tirava a calça, que não havia servido, um olhar novamente a pegou desprevenida – as pernas flácidas, as varizes que subiam pelos tornozelos. Devolveu as roupas para a atendente.
- Não quis comprar nada? - perguntou Morgana distraída, na fila do caixa.
- Ah, sei lá, não ficaram bem para mim.
- Mas viu, sábado vai ter uma festa, você não quer ir? Estou sem companhia.
- Festa? Será que não pega mal eu já sair? Quer saber, dane-se, se a vida me permitir eu vou contigo.
- Opa, agora sim, gostei.
A música estava animada. Muitos casais dançavam na pista, bem como ela, Morgana e mais outras duas amigas, que estavam sem par e que formaram um círculo ao som de Don’t Stop Me Now.
Queen, pensou Ingrid, e comentou – quem precisa beber quando se tem rock?
- Eu preciso! - Morgana saiu e voltou com um drink.
Um amigo de Morgana de repente apareceu e cumprimentou o grupo. Interessou-se por Ingrid e puxou conversa. Trocaram algumas frases enquanto dançavam, e afastaram-se levemente do resto do grupo.
- Vou ir embora daqui a pouco, mas gostei de ti, o que acha de me passar teu whats e continuarmos a conversa? Quem sabe, marcar de sair um dia?
- Claro, se a vida me permitir…
O rapaz achou a fala um pouco estranha, mas não disse nada. Pegou o número e despediram-se.
Na segunda-feira, as amigas aproveitaram os momentos de folga para fazer comentários sobre a festa.
- Você vai sair com o Hugo, Ingrid? Acho que ele ficou bem interessado em você.
- Percebi. Mas não estou no clima, entende? Com tudo que aconteceu…
- Entendo. É que aquele dia você falou de um jeito que passou alguma esperança.
- Você ouviu o que eu disse?! Não é possível, a música estava muito alta!
- Bem, na verdade ele me contou, porque achou estranho você dizer “se a vida me permitir”, daí eu expliquei que seu pai morreu faz pouco tempo.
- Eu espero que ele entenda que, apesar de eu ter ido na festa, eu estou de luto.
- Claro, amiga, ele vai entender.
Muitos não entenderam, no entanto. O mundo é um lugar de aparências, e o que não aparece é esquecido. É como aquela história da árvore: “se uma árvore cai na floresta, e não há ninguém para ouvir, ela faz barulho?”. É isso o luto: ouvir, sem estar lá. E querer, por vezes, estar lá. E fazer barulho, por quem já não pode.
Logo, a mesa de trabalho de Ingrid voltou a ficar cheia – os colegas e o gerente voltaram a mandar a mesma quantidade de demandas de antes. Seu luto foi sendo como uma tarefa que ficava sempre mais embaixo da pilha de tarefas – exceto, por um detalhe: a fatídica frase, que ela repetia cada vez que lhe pediam algo.
Os colegas começaram primeiro a zombar dela, quando não estava por perto, repetindo a frase com tom jocoso. No entanto, com o passar dos dias, gradativamente começaram a falar menos com Ingrid, e lhe destinar menos tarefas. Quando um ou outro entregava-lhe uma demanda, voltava visivelmente incomodado. No dia que completava dois meses que o pai de Ingrid falecera, um colega foi falar com o gerente, queixou-se dizendo que ela estava deixando o clima muito pesado.
- É insuportável ficar ouvindo ela dizer isso o dia todo, todos os dias da semana!
- Entendo o seu lado, mas o pai dela morreu. Suponho que fossem muito apegados.
- Escuta o que estou lhe dizendo – você acha que é por acaso que esse mês teve dois funcionários que pediram afastamento por ansiedade? Claro que não! Ninguém quer ser lembrado de que todos vamos morrer um dia!
- Acho que não é para tanto. Deixa ela viver o luto dela. Daqui a pouco ela se recupera.
Após três meses de falecimento, ela não havia se recuperado. Mas já contavam três os colegas afastados por ansiedade, e agora mais um acabara de entregar um atestado por “síndrome de burnout”. O gerente começou a ficar preocupado. Olhou para o funcionário que se queixou de Ingrid – da sua mesa, ele encarava como se dissesse “eu te avisei”. Depois olhou para ela, concentrada, a mesa quase vazia, parecia estar bem.
Tamborilou na mesa com os dedos, e pensou: se uma máquina tem uma peça que não está funcionando bem, é preciso substituir, principalmente quando já está afetando as outras. O gerente não era engenheiro ou mecânico, mas recorria às metáforas de equipamento e maquinário em momentos de tensão empresarial. No dia seguinte, Ingrid foi ter uma conversa com o RH. Informaram que daqui a trinta dias estaria desempregada.
A notícia se espalhou rápido. As pessoas mais próximas a Ingrid expressaram espanto, como era esperado. Alguns não fizeram questão de disfarçar que se sentiram felizes com a notícia, embora Ingrid não pareça ter percebido o ânimo geral e como ele estava relacionado a ela. Foram vinte e nove dias bons, de esperança generalizada. Porém, no último dia aconteceu algo que ninguém imaginou: justamente na despedida, Ingrid não apareceu.
Todos continuaram a trabalhar normalmente, embora os olhares constantes para o relógio, uns burburinhos entre alguns colegas, e a agitação do gerente que andava pelos corredores muito mais do que o habitual pudesse revelar que algo estava ocorrendo. Na mesa de Morgana, um presente de despedida comprado pela equipe aguardava.
O discurso habitual – boa sorte e sucesso em sua nova jornada – pode ficar guardado para uma próxima demissão. O presente acabou sendo trocado por uma coroa de flores na loja de variedades: Ingrid havia falecido.
- Atropelada, como a protagonista daquele livro, lembra? Macabéa, da Clarice Lispector – comenta uma colega, ou melhor, ex-colega de trabalho.
- Mas a diferença é que a Ingrid não foi pega de surpresa – respondeu outra.
-É, isso é verdade.
O gerente, em homenagem à colega falecida, decidiu comprar um relógio cuco para a empresa, o qual toca de hora em hora. Até hoje, ninguém demitiu o pássaro. Os protetores auriculares são agora considerados EPIs de segurança, e cada funcionário recebe o seu ao começar a trabalhar na equipe.