MUITA FORÇA DE VONTADE
Essa história começa ali em Ramos, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, numa típica família de classe média, o pai, um senhor austero, mais conhecido como pastor Gumercindo, que do alto dos seus 50 anos, conduz com mão firme seu rebanho de fies.
Por outro lado, a mãe Dona Amélia, 48 anos, professora do primeiro segmento do ensino fundamental, leciona numa escola a três quadras de casa, e também goza de grande popularidade no bairro, quase todos moradores das adjacências, foram alfabetizados por ela.
Maria Clara, 18 anos, filha única do casal, sempre uma estudante focada, conseguiu passar na UERJ para Letras, e que não escondia de ninguém o sonho de ser professora universitária.
Em casa sempre relevou a devoção dos pais a religião, estudou no Colégio Pedro II, em São Cristóvão, adquirindo uma visão crítica de mundo, se divertia esnobando os pais, citando frases daquele pensador barbudo, o Karl Marx que não escondia de ninguém sua repulsa por religiões, e citava: “religião é o ópio do povo” que mexia nos brios do pastor, acostumado a basear seus sermões em outros pensadores mais tradicionais.
Não tem jeito, as pessoas entram na universidade e se transformam, às vezes para melhor, outras vezes nem tanto. Clarinha, assim ele era chamada pelas pessoas mais próximas, se encantou pelas liberalidades típicas de uma grande e diversificada instituição acadêmica.
Gradativamente foi se integrando a várias tribos, de cara começou teatro experimental, foi convidada para o coral e prontamente soltou sua bela voz de soprano. O time de vôlei corria atrás de uma levantadora, e ela apresentou suas credenciais de atleta no ensino médio.
Bastaram alguns meses para que Clarinha vivenciasse tudo que uma universidade grande propicia a seus alunos mais engajados.
Em casa, seus pais notaram aquela devoção acadêmica, que pediam por tanto tempo em prece acontecesse para a religião. A pergunta que não queria calar era: como pode a filha do pastor nunca comparecer a um culto sequer?
Seu Gumercindo ainda nutria esperança de que em algum momento brotasse em Clarinha a devoção a Deus, mas o tempo passava, e sentia ela cada vez mais distante dos princípios que ele tanto pregava na igreja. É aquela coisa, “casa de ferreiro, espeto de pau”.
Com a aproximação das festas de virada do ano, Clarinha precisava dar uma notícia aos pais, e imaginava qual seria a reação, pelo menos num primeiro momento. Para uma pessoa magrinha como ela, a gravidez fica ainda mais em evidência, ela não podia mais esconder o fato, e resolveu assumir a responsabilidade pelo seu destino.
A reação dos pais surpreendeu a jovem, depois de um silêncio perturbador, em conjunto rejeitaram a filha, dando ordem para se retirar de casa até o início da noite. Para finalizar, repetiram aqueles jargões embebidos de raiva, já sabiam que isso ia acontecer, o que os fieis vão pensar e dizer de um pastor, que nem em casa tem poder de convencimento. Chocada com tanta baixaria se trancou em seu quarto e chorou muito, antes de começar a juntar pertences. Em seguida, ligou para amigos em busca de pelo menos uma residência temporária, e acabou conseguindo uma cama para os próximos dias.
Na Universidade, saiu comentando com todo mundo sua situação, e a falta de perspectiva no curto prazo.
Entre as muitas pessoas que se solidarizaram estava Maria, moradora do Complexo do Jacarezinho, estava envolvida na invasão de área ao lado da Favela Mandela, na manhã seguinte. Se ela topasse, ficaria a seu lado até conseguir um lote na nova comunidade, que terá como limites o fétido Rio Faria Timbó, um depósito dos Correios e a favela que sua amiga reside.
Na manhã seguinte as duas se juntaram ao grupo invasor, que por incrível que possa parecer contava inclusive com alguns servidores do tráfico.
No início da tarde com duas vias delimitadas e o conjunto de lotes definidos, começou a chegar material para iniciar as precárias construções. A turma do tráfico saiu na frente, e um exército de pessoas contratadas, rapidamente levantou paredes enquanto começaram a chegar pias e vasos sanitários.
Nos outros lotes, a pobreza impunha apenas restos de materiais e placas de madeira para servirem de delimitadores de limites do lote. Clarinha ainda dispunha de uma pequena poupança, feita pelos pais anos atrás. Com isso conseguiu contratar um pedreiro para montar a estrutura básica da sua futura casa.
Maria conseguiu espalhar entre os colegas de Clarinha sua precária situação de vida, houve então um movimento solidário de arrecadação de dinheiro, que em menos de uma semana juntou montante suficiente para a finalização das obras da casa.
Quem teve a oportunidade de circular pela Mandela de Pedra pode assistir a um fenômeno de harmonia, sua casa lembra aquelas de conto de fadas, pintada de rosa claro, com janelas e portas brancas e jardineiras em flores que decoram a parte inferior das janelas, enquanto um estreito e florido canteiro decora a fachada da casa.
No último mês da gravidez Clarinha perdeu o bebê, ficando dois dias inteiros no mais profundo silêncio, meditando, no intuito de tentar entender o porquê de tantas situações adversas acontecerem, e assim nos revelarem o real caráter de pessoas que orbitam a nossa volta.
à sua volta prevalecem construções precárias, poucas têm janela, e o mais comum são portas com grandes dimensões, que se fecham apenas à noite.
Na outra via prevalece a turma do tráfico, com moradias simples e uma lona daquelas pretas presa no telhado das casas, de ambos os lados da rua, para que nos vôos de helicóptero, nada seja identificado.
Impressiona essa capacidade de adaptação do ser humano, mesmo em situações de miséria extrema. Clarinha ainda não terminou seu curso de Letras, quem sabe depois de formada consiga retornar ao asfalto.