Assim como o tempo passa para todos nós, assim também um dia passou para o José Pitangueira que, de repente, se viu completamente só dentro de uma casa enorme e cheia de quartos com janelas grandes que se abriam para todos os lados, parecendo querer desesperadamente mostrar o que se passava lá fora, meio que como uma agenda avisando sobre os vários serviços demandados na propriedade que se estendia ao redor do casarão. Bem, tinha ele uma linda esposa que lhe deu sete filhos e apenas uma filha caçula . Mas num dia de infortúnio, sua esposa veio a falecer, e depois os filhos, a medida que o tempo foi passando, um a um foram se casando e, apesar de tanta gente, tanta vida vivida, tantas emoções sentidas dentro daquela casa, não teve jeito: Ficou morando sozinho no bairro do Cuiabá, bem ao pé de quem já começa a caminhar para os lados do bairro da penha.. Mas ele conseguiu se adaptar á nova realidade e levava a vida do jeito que a vida permitisse que ele a levasse. Não reclamava de nada e quem o visse naqueles dias, seria como se o tivesse visto há muito tempo atrás, com exceção das marcas do tempo em seu corpo, é claro. No mais, tocava sua vida no ritmo de sempre. Tirava uns litros de leite, criava uns porcos, umas galinhas e também cuidava do cafezal. De tardezinha passava uma água no corpo, vestia uma camisa branca de algodão, uma calça de tergal cuja barra era dobrada até o meio da canela, engolia um esquentado de arroz, feijão e um pedaço de carne de panela, montava em seu cavalo e corria para o Barro Preto. Corria é modo de dizer, na verdade, sua jornada era interrompida algumas vezes durante o trajeto, pois sempre encontrava algum conhecido para bater um papo; perguntar pelos familiares e tocar em assuntos corriqueiros. Às vezes a conversa se estendia tanto que começavam a se contorcer em cima do animal, devido a posição incomoda no arreio; o mesmo acontecia com os cavalos que reclamavam e ficavam alternando o peso dos cavaleiros, ora numa perna, ora noutra, num desejo enorme de se livrar daquele incômodo. Depois de longas despedidas e recomendações aos familiares, lá ia ele morro acima, descalço, um chapéu de abas largas e no canto da boca um cigarro de palha enorme que de tempos em tempos soltava uma golfada, lembrando uma Maria fumaça..

Quando chegava na cidade, para não acontecer de se esquecer, passava logo na venda do José da Costa e normalmente enchia alguns embornais de doces, pão são José um pouco de salame e coisas outras para suprir suas necessidades. Depois parava aqui e ali e sempre tinha algum conhecido disposto a contar caso, jogar conversa fora. Gostava de falar sobre tudo que fosse relacionado a lavoura do café, clamava do governo e dos juros absurdos que os bancos cobravam no financiamento das lavouras. Passava horas e horas proseando e quando caia em si, já era alta noite. Então montava em seu cavalo, soltava as rédeas e seu animal pegava uma macha repicada e, num instante, já estava a beira da porteira do seu curral. Foi numa dessas idas e vindas que, num dia de noite escura, se viu em apuros nunca antes experimentado, pois, ao chegar à porta de sua casa, procurou o isqueiro em todos os bolsos e não o encontrou. Também não se lembrava de ter deixado próximo à porta uma lamparina ao alcance de sua mão, muito menos uma caixa de fósforos. Não teve outra escolha senão avançar para dentro de casa, mesmo no escuro, mirando a porta da cozinha, de onde pretendia alcançar o fogão, revirar as brasas e acender o fogo , acender uma lamparina, e com a lamparina chegar até seu quarto e se jogar em cima da cama. Mas quando já se encontrava no meio da sala e mergulhado na escuridão, ouviu um barulho de móveis caindo em algum cômodo que ele não conseguia identificar qual seria. Ficou assustado: - Creio em Deus pai! O que será isso uai? O pior é que ficou desorientado com aquele barulho estranho e já agora não conseguia nem voltar para a porta da sala, nem prosseguir rumo à cozinha. Deu então alguns passos e parou. Respirou fundo e mais alguns passos. Quando deu por si, percebeu que havia entrado no quarto mais distante da cozinha. Bem agora é só abrir uma das janelas para clarear um pouco, pensou, mas quando foi tateando os móveis do quarto, eis que algo estranho veio com tudo pra cima dele e o jogou de costas num lugar vazio dentro da casa, deixando-o no estagio anterior, sem nenhum progresso no entendimento do que se passava lá dentro. “ Meu Deus! Que diacho será isso sô?” Ficou a pensar sobre como sair daquela situação e então concluiu que o melhor a fazer seria sair se arrastando feito os filhos quando gatinhavam, para não acontecer de topar com a criatura que estava dentro de sua casa.. E assim ele fez . Saiu rastejando pela casa depois de puxar na memoria os jeitos dos cômodos, a posição dos bancos de madeira e, sempre que tocava em algum objeto, decidia para onde deveria prosseguir. Para não espichar o caso, depois de um bom tempo naquele movimento frenético, conseguiu descer as escadas que dava acesso à cozinha. E quando pensou que tudo tinha terminado, ao avançar, deu de cara com um bolo enorme de cocô de animal e por pouco não sujou o bigode com aquela massa fedorenta. Com as mãos encharcadas do estrume do animal, e o corpo todo dolorido, chegou até ao fogão, ajeitou uns restos de tições e soprou com toda a força de seus pulmões. Acendeu uma lamparina e então pode ver a bagunça que estava sua casa. Viu também que tinha esquecido a porta da cozinha aberta. Caminhou pelos cômodos e fez uma leitura da bagunça e do prejuízo causado pelo invasor. Foi quando encontrou um bezerro preto em um deles. Furioso, pegou um chicote e foi com tudo pra cima do pobre animal que, assustado, corria pela casa toda , passando de um cômodo a outro, quebrando objetos, derrubando móveis, sem conseguir enxergar as portas abertas disponíveis para sua saída. José Pitangueira só sossegou depois de vê-lo fora de sua casa. Exausto, colocou uma água para esquentar, despejou-a numa bacia e se apressou a tirar o mau cheiro de seu corpo. Foi até seu quarto, ajeitou a bagunça causada pelo bezerro e se jogou em cima da cama. Logo pegou no sono, e, do mesmo lado que deitou, amanheceu no dia seguinte.

José Pitangueira ficou com tanta raiva do animal que o vendeu para o primeiro comprador que apareceu à sua frente. Apesar da esfrega, sua vida continuou no ritmo de sempre e por muitos anos lá se via ele montado em seu cavalo indo para a cidade. Até que num dia, deixaram de vê-lo subindo o morro da cava funda.....

Fiquei sabendo desse causo lá no Barro Preto, mas não me lembro se realmente o personagem se chamava José Pitangueira. De qualquer forma, isso não importa. Importa o fato de que ele representa em parte, a vida cotidiana de muitos que viveram no famoso e histórico bairro do Cuiabá, daqueles que inúmeras vezes subiram e desceram o morro da cava funda, que levava a todos para a cidade do Barro Preto.

 

 

 

Samuel araujo
Enviado por Samuel araujo em 19/08/2024
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