Lampião, Coroné Corró, Serapião e Joana
- Dia, Coroné Mané Corró. Ô de casa!
- Dia, Capitão Lampião. Ô de fora! Desapeie do cavalo, vosmincê e sua tropa! Venha tomar um gole d’água.
- Pois não, Coroné! Peço permissão a vosmincê para me arranchar uns dia no seu terreno. Eu, meus cumpanheiro e minhas cumpanheira.
- Pois se arranche, Capitão. Monte seu acampamento onde achar mió lugar pro sinhô e seus acumpanhante.
- Se o Coroné me permite, montamos acampamento aqui entre o pé de manga, a jaqueira e o pé de caju. Aqui faz boas sombra e tamo cansado de enfrentar esse solão danado desse sertão seco, fugindo dos macaco do governo, que querem nos matar, aqueles cão danado.
- Pois sim, Capitão. Vou mandar meus home dar água pr’os seus e prá seus animá e levar eles prá pastar em boas pastagem nas minhas terras.
- Gradicido, Coroné. Tamo mesmo com muita fome e sede nem se fala. Num é fáci penar por aí, Coroné, fugindo de gente matreira, se agachando pelas capeira, se furano nos ispinho, suando mais que a peste com fome e sede.
- Pois se avexe não, Capitão. Aqui seu povo tá guardado. Não há cristão que se atreva a atravessar minha cancela.
- Prometo, Coroné. Ninguém mexe um fio de cabelo do sinhô, nem de sua famia, nem de sua gente, seus animá e suas terras. Quem se atrever nóis pica fogo.
- Gradicido, por sua proteção, Capitão. Agora venha comer aqui um bode assado com feijão de corda e arroz vermeio que minha muié fez. Ela já aumentou a quantidade prá dar de sobra prá todo mundo.
- Coroné, peço também sua licença pra mode nóis de noite fazer aqui uma fogueira, pôr nossas sanfona, nossos tambor, nossos triango e nossas maraca prá tocar e fazer aqui um arrasta-pé, um xaxado e um xote.
- Pois tem toda, Capitão. Mando sirvir a todos umas pingas das boa que tenho por aqui. E se o sinhô permitir, meu povo vai se juntar cum sua tropa para apreciar vossa festa.
- Gradicido, Coroné. O sinhô sabe, meus home pricisa se adivirtir um pouco. Nossa vida é muito penosa, Coroné.
- De certo, Capitão. Esteja à vontade.
- Tamo vindo de munta matança, Coroné. Nossa gente necessita passa um pouco de mel na boca pra ispantar um pouco o amargor dessa vida de losma.
- Apóis vou mandar tirar mel de abelha de verdade da mió espécie que tenho aqui na minha fazenda. Abelha de flor cheirosa, Capitão, flor de maracujá.
À noite no xote e no xaxado, Serapião, rapaz novo do bando, cobriu de olhares a filha mais nova do Coroné e ela muito que bem correspondeu, fez discretamente uma graça e por mensagens corporais mostrou onde iria se esconder. O rapaz, com todo os fogo das venta, soube logo tudo que ela quis mostrar e dizer. Pouco tivera com mulher e já há algum tempo não se regalava como o corpo pedia constantemente. É certo que algumas vezes fizera de mulher um cangaceiro, que mesmo tendo sua companheira, gostava de servir assim a alguns companheiros, quando era seguro ninguém saber e não haver escândalo nem o castigo do Capitão.
Depois de serenado os ânimos, todos a dormir pela cachaça boa e farta, ele havia sorvido poucos goles para não ser traído pelo sono porque o cansaço era demasiado, pois bem, quando a lua se escondeu de vez e a escuridão era boa cúmplice, se esgueirou para o esconderijo de Joana, Serapião. Mesmo no escuro seus olhos ávidos viram a moça bela deitada num giral amaciado por almofadas grandes. Deitou-se por sobre ela, beijando sua boca e logo após seu corpo. O regalo com a moça o surpreendeu pois pensava ainda ser donzela.
- Pensei que vosmincê nunca tivesse conhecido home.
- Me deito com aquele que vai ser meu marido.
- E com quem de seu agrado lhe aparece.
- Não, sinhô. Só me deitei com vosmincê porque não me aguentei de sua formosura e da matreirice de seu olhar.
- Vosmincê não tem mede do pegar fio?
- Já lavei as parte com ervas de não pegar minino, já tomei umas beberagens, quando vosmincê sair vou lavar de novo minhas parte com as ervas e, se sentir que as regras estão demorando, tomo uma misturada de ervas. Tudo isso Mãe Sonzinha me ensinou e me deu. Ela tem um terreiro aqui perto, é protegida de meu pai e vamos lá nas suas cerimônias sempre que somos convidados, o que acontece sempre.
- Pois sim, vosmincê é muito esperta.
- Pois vou dar pr’ôcê os sinais de quando pode vim me encontrar aqui, todo o tempo que vosso bando se arranchar por aqui.
- Vosmincê quer acompanhar o nosso bando?
- Não, sinhô. Num vou deixar meu conforto para sair por aí por esse mundo de meu Deus me arriscando a levar bala e morrer.
- Está certa, vosmincê. Matutando bem não é direito fazer isso com vosmincê. Eu não devo levar vosmincê para essa desgraça de vida.
- Para manter meu conforto é que sigo os remédios de Mãe Sonzinha. Não me aguento de vontade de me deitar com os home, mas não quero perder meu conforto. Assim, sem engravidar, meu pai e minha mãe não vão me arrenegar e eu tou perto de me casar com meu noivo. Ele tá mais interessado na nossa riqueza do que mais em mim. É um agregado do meu pai. Eu acho bom assim porque com matreirice eu posso, assim que quiser, me deitar com um homem bonito ou outro de boa vista pra regalo.
- Apois, se eu pudesse eu queria ter conforto como vosmincê.
- Vosmincê é moço novo e bonito. Pode procurar outra vida.
- Posso não. De onde vim não tem trabalho, mataram meus pais e tomaram as nossas terras e não tive o que fazer senão me juntar ao bando de Lampião.
- Pois eu tenho uma solução para vosmincê.
- Uma solução? Ser empregado de seu pai?
- Mió ainda. Vosmincê viu minha irmã Luísa?
-Vi sim, mas quase não enxerguei pois tu já mostrou logo que queria chamego comigo e eu não podia deixar passar a oportunidade de me chamegar com uma muié.
- Tu achou ela bonita?
- É sim, muito bonita. Igual que vosmincê.
- Pois ela tá muito triste porque eu e Zelia, minha irmã do meio, vamos nos casar no mesmo dia, mas ela num acertou um noivo que preste pra ela. Se tu quiser eu ajeito pra tu casar com ela no mesmo dia que nós.
- Mas seu pai num vai permitir, sou cangaceiro.
- Se importe por isso não. Meu pai num tem disso não. Se vosmincê quiser ficar na fazenda fazendo os trabaio da fazendo como um fio, igual os outros dois vão fazer, vosmincê sai do cangaço e casa com minha irmã. Meu pai só não deixa casar se tu for levar minha irmã pro cangaço. Mas eu penso que tu quer sair do cangaço e ficar na fazenda.
- Mas o Capitão num vai permitir.
- Num vai permitir o quê? Meu pai é coiteiro dele e se fica aqui na fazenda um dos home do cangaço como um dos herdeiros de meu pai é bom prá Lampião pois vai ter sempre onde se acoitar e procurar refúgio.
- Mas cumo vamo arranjar isso?
- Primeiro vou saber de Luísa se ela faz gosto em se casar com tu. Se ela fizer vamo falar com nossa mãe e nossa mãe ajeita tudo cum meu pai. E se meu pai se agradar, ajeita tudo com Lampião.
- Tenho medo de dar probrema com sua famia e cum Lampião.
- Num vai dar confusão ninhuma não. Quer arriscar nesse negócio?
- Apois se não quero? Quero sim, sinhora. Isso para mim é um pomar cheio de frutas maduras no pé e com um enxame de abelhas com muito mel por perto.
Na família, o arranjo ocorreu como Joana planejou. E após as concordâncias de todos, chegou a hora de falar com Lampião.
- Apois, sim, Coroné, esse muleque teve o topete de se engraçar cum uma sua fia? O sinhô sabe que a lei do meu bando é para que ninguém bula com a famia de meu protetor. Quem protege a nois, é protegido também.
- Pois, Capitão, ele não buliu com minha família. Ele quer se casar com minha filha mais velha que tava aí triste porque as mais novas ia se casar e ela ia ficar no caritó. O sinhô sabe a tristeza de uma moça e de seus pais por ficar no caritó, Capitão? Pois intão, esse franguinho prometeu se casar com ela e alegrou as faces de minha filha. Olha aí, ó, tá até corada! Voltou até a se alimentar.
- Mas, Coroné, cuma é que o senhor vai permitir que sua fia saia do conforto de sua fazenda para se embandeirar por essas caatinga no cangaço? Isso é desgraceira, Coroné, para uma moça criada com tanto mimo e luxo.
- É esse a questão, Capitão. O rapaz quer ficar na fazenda e trabaiá com a gente, quer se agregar à família e aos cuidados de tudo por aqui, como os outros que vão ser meus genro.
- Mas esse caburé tá me saindo mais matreiro do que eu pensava. Diabo de moleque mais esperto! Coroné, eu tinha dito que quem entrasse no meu bando só saia morto, Coroné.
- Mas, Capitão, repense essa tenção. Eu tou véio, Capitão, tou meio doente. Se a fazenda fica também aos cuidados desse rapaz, vosmincê terá sempre acoitamento e vai ficar mais tranquilo de não ser denunciado pras volante.
- É mesmo, Coroné, o sinhô tem razão. Malditos macacos. Tamo sempre fugino deles.
- E então, o sinhô vai permitir que o rapaz se case com minha filha e fique morando aqui cum nossa família?
- Só com uma condição, Coroné.
- Pode falar, Capitão. Se tiver a nosso alcance a gente aceita.
- Eu sei que vai ter uma festança para toda a região com matança de bois, bodes, galinhas, perus e muita bebidas, licores, cachaças, vinhos e até cerveja que o sinhô vai mandar vim da capitá. Sei que esse povo todo num quer se juntar a nois do nosso bando. Pois vai ter duas festas. Quando acabar a festa dos outros povo, nós chega, se arrancha de novo e faz também nossa festa para se alegrar com o caburé e depois levanta acampamento e vamos embora de novo. Tudo às suas custas, Coroné Corró. Se for assim, deixo o caburé aí já com o sinhô.
- Apois tá feito o trato. Vou casar minhas três filhas no mesmo dia daqui a um mês. Intão, vamos fazer logo a festa de hoje para comemorar o noivado. Esse atrevido vai ter que me pedir a mão de minha filha em casamento como manda o figurino. Ele que vai se lavar e botar água de cheiro, pois não quero genro catinguento aqui na minha casa não.
- Sanfoneiro e gente das tocanças! Prepare os instrumento que vai ter xaxado hoje aqui no noivado do caburé que vai ficar rico, o destinado.
Só quem ficou triste com o acontecimento foi João Tigre, o cangaceiro que se entregava para Serapião sempre que todos estavam adormecidos, depois de alguma festança e estavam todos os outros fartos da cachaça. Além disso, João Tigre fazia uns encantamentos, aprendidos com a avó, para ninguém acordar. Ele já tinha se acostumado com as cheganças do danado e às vezes até se fantasiavam de marido e mulher, com Tigre usando roupa de baixo de Dandara, sua companheira, e mais que inventava sua imaginação. O coração de Tigre ficaria com Serapião na fazenda quando tivesse que partir com o bando. E teria o trabalho, a matreirice e o jogo de encantar outro cabra com muito cuidado para a coisa não desandar e não correr o perigo do sujeito se encrespar, ao perceber as intenções, e denunciar a Lampião e a toda a tropa e aí a vergonharia seria tanta e muito provavelmente passiva de morte. Mas a vida é assim arriscada e ter ajojamento é muito bom, apesar do risco. Decerto que faria todos os ritos para encantar o sujeito e reencantar a todos na dormideira. Tigre foi para atrás de uma moita um momento de noite para chorar copiosamente a perda do parceiro de deitação, rapaz muito bem apessoado e muito vigoroso nos chamegos. Chorava se lembrando dos bons momentos de deleites.
E deu-se o caso muito raro de, ao invés da moça ser raptada e deixar as casas dos pais para ir para o cangaço, o rapaz ficou na fazenda para se casar com a moça, deixando o bando de Lampião.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 15 de janeiro de 2024.