ESTA CASA TEM DONO
“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode sonhar nossa vã filosofia”
(W. Shakespeare)
- Junte as suas coisas e saia da minha casa, eu não gosto de estranhos se metendo onde não deve.
Assim. Direta e sem rodeios, foi a ordem que madrinha Hilária recebeu ao entrar na sala de visitas da casa recém alugada, naquele amanhecer radiante, mas muito frio como sempre foram as primeiras horas dos dias do mês de Santana. Mas isso só acontecia na época em que o tempo ainda não estava louco como atualmente.
As janelas precisavam ser abertas para a luz do sol nascente e o vento fresco dissiparem aquele odor de canto velho que se instalara na casa, por anos, desabitada.
Apesar de muito bem conservada a casa, na rua principal da cidade, onde era arrumada a maior parte da feira semanal, mantinha todas as características das construções do início do século passado. Portas e janelas de madeira maciças, piso de mosaico, paredes grossas inúmeras vezes caiadas com cores berrantes que eram reveladas nos pequenos espaços onde a camada mais nova havia se despregado por choque de vassouras ou quinas de móveis (principalmente encostos de cadeiras), telhas à mostra sobre o madeiramento de ripas justapostas, lâmpadas penduradas por fio no meio dos cômodos, sendo a maioria delas acionadas por interruptores nas pontas dos fios pouco acima da linha dos olhos dos moradores.
O arrepio, desses que desce pelas costas a partir da nuca, fez madrinha Hilária largar os chinelos e sair correndo de volta para a cozinha aonde dona Severina, a lavadeira de roupas da nossa família, já se encontrava tomando o café antes de encarar a faina diária.
Depois do copo d’água com açúcar para acalmar os nervos, madrinha Hilária contou o ocorrido.
- Eu já ouvi falar dessa livusia, comadre. Mas ela é inofensiva, só precisa de umas rezas para acabar de pagar as penas da vida... Dizem que ela era uma pessoa muito orgulhosa. Parece que não tinha amizades e não queria que ninguém viesse na casa dela. Tinha ciúme de tudo, dos móveis, dos enfeites, mas de que que adiantou? Quando ela morreu, os parentes deram fim a tudo e a maior parte das coisas foi jogada no lixo.
Pelo resto do dia não se falava noutra coisa. Causos e mais causos de aparições de almas penadas foram rememorados por todos.
Na segunda-feira, quando se instala a feira grande, dona Severina que morava perto da casa da vendedora de ervas medicinais, trouxe ela para conversar sobre a antiga dona da casa, porque ela tinha ficado com a maior parte dos móveis e das fotografias dos parentes que a defunta colecionava.
Essa mulher, que eu não lembro mais o nome dela, trouxe numa moldura de metal que estava carecendo de polimento, a fotografia da mulher que tinha aparecido para madrinha Hilária e, seguindo os conselhos da feirante, que depois se tornou amiga de madrinha, mandaram rezar nove missas para a defunta entender que devia procurar os caminhos de luz em vez de ficar fazendo assombração para os vivos.
Mas parece que não adiantou muito porque, ela deixou de aparecer para a madrinha, mas de vez em quando alguém via vultos ou ouvia batidas no quarto que tinha por cima da despensa, no fundo da casa, logo depois da cozinha...