PREDESTINADA
- Dizem que quando a pessoa nasce com uma sina da danação, nada nesse mundo consegue impedir que a maldição se realize...
- O que é isso que a senhora está dizendo aí, dona Maria?
- Estou falando comigo. Coisa de velho...
- Mas quem é que nasceu com a sina de fazer danação?
- É Ivãnia, aquela minha sobrinha sem juízo.
- E o que foi que aconteceu para a senhora dizer que ela tem maldição?
- Não é a primeira que ela apronta até consumir as sete vidas que ela tem direito.
- Óxente, que história é essa de sete vidas? Que eu saiba, a gente só tem uma vida e deve fazer de tudo para que ela seja boa. Tem que engolir muito sapo, levar desaforo para casa e relevar muito desfeita se não quiser morrer de raiva, inchado feito cururu.
- Pois é. Os antigos diziam, e eu acredito neles, que gente como Ivânia, que nasce predestinado a fazer besteiras, tem sete vidas... pode morrer sete vezes. Diferente da maioria dos cristãos.
- Eu não acredito nisso não.
- Pois eu vou lhe contar. Quando Ivânia nasceu, era um bebê mais lindo do mundo, cabelinho cacheado, assim cor de mel com terra, das bochechas rosadas. Com pouco mais de quatro anos, aconteceu a primeira arte do cão.
O trator da fazenda estava sem bateria e o trabalhador deixou ele na ladeira para pegar no tranco quando fosse trabalhar. Para adiantar o serviço, na véspera já tinha deixado o trator pronto para gradear a capineira que precisava ser renovada. Ninguém sabe dizer como nem porquê, Ivânia fez o trator descer a ladeira e só não foi fatiada feito pão de forma, porque caiu da grade dentro de uma valeta e as lâminas passaram por cima, revolvendo tudo, chegou a cortar parte da roupa que ela estava usando, mas não tocou nela.
Antes dela fazer dez anos, estavam construindo o muro do colégio das freiras. Na hora do recreio, Ivânia mais uma colega tão danada quanto ela, foi mexer no carro de boi com a carrada de tijolo. O carro estava penso de um lado, porque a roda tinha caído na valeta cavada para alicerce do muro. Ninguém sabe dizer como foi que Ivânia desfez o laço da corda que estava segurando a amarração e a carrada de tijolo caiu por cima dela. Foi um Deus nos acuda. As freiras quase morrem do coração. Levaram Ivânia para a farmácia, mas graças a Deus, ela não tinha sofrido nada além dos poucos arranhões.
De outra vez, ela já era mocinha, na fazenda de compadre Biu, tinha uma garrota guzerá, braba, dessas que parte para cima da gente, feito a vaca que botou em Mestre Alfredo, e Ivânia, sentada no mourão da porteira, danou-se a futucar e bater na bicha com uma vara de marmelo. A garrota pulou a cerda e danou-se no meio do mato. O cavalo de Zelito, acostumado na pega de boi, estava amarrado na cerca. Pois Ivânia achou que podia ir atrás da garrota e montou no cavalo. Zelito vendo o estrago que ia ser, gritou para ela pular da cela, porque se o cavalo desembestasse por dentro da mata atrás da garrota, Ivânia ia ficar toda lapeada pelos espinhos e gravetos da Caatinga, porque ela estava sem nenhuma roupa de couro.
No dia que foram caçar umbu, ela achou que podia tirar mel no tronco da ingazeira perto do açude. Mexeu no cortiço e as abelhas partiram para cima dela. Quanto mais ela corria, mais abelhas apareciam. A mulher de Zelito gritou para ela pular dentro do açude e Ivânia gritando de dor por conta das ferroadas dizendo que não sabia nadar. Joãozinho gritou que ela pulasse que ele tirava ela da água. Por azar ela se sacudiu dentro da parte mais funda do açude. Joãozinho pulou atrás e trouxe ela para fora puxada pelos cabelos. Como ela tinha bebido muita água, deu um trabalhão para fazer ela vomitar e voltar a respirar normalmente. Tiraram mais de cem abelhas de dentro do vestido e dos cabelos dela. Ficou com febre uns três dias por conta das ferroadas que levou.
No dia do batizado de Maria Leopoldina, a caçula de compadre Biu, foi a vez do portão cair por cima dela. Aquele portão ferro que tem na entrada da fazenda, pesado e grande feito um navio, não estava funcionando direito porque as rodas tinham saído do trilho de fazer ele correr junto ao muro. Pois bem, Ivânia foi se pendurar nele e o portão caiu por cima dela. Só não espragatou ela todinha, porque ficou preso no montinho de brita que tinha sobrado do concreto e ela, presa no vão entre o piso de cimento e o portão, gritava “me acuda, me acuda”. Compadre Biu ouviu os gritos e veio ver o que diabos estava acontecendo. Viu a presepada e chamou mais dois homens para levantar o portão para a infeliz ter espaço para sair. Deviam ter deixado ela dentro da jaula, para aprender a não mexer onde não deve.
Agora, depois que virou protestante dessas novas seitas, vive infernizando a vida de Henrique. Inventou que ele tem uma rapariga, pegou todo que podia da casa deles e levou para a casa do pai. O que não coube naquele jipão que se treme todo feito quem tem mal de Parkinson, que eu nunca me lembro do nome dele...
- Toyota?
- Isso mesmo. Pois, o que ela não levou, quebrou e tocou fogo. Para mim isso é falta de vergonha. Uma mulher com trinta e poucos anos, em vez de cuidar bem do marido já que não tem filhos, se dana a inventar coisa. Henrique é um rapaz tão bom, trabalhador, responsável, é de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Não se vê ele em farras nem com amigos. Todo domingo está na missa das nove. Se eu fosse Henrique, dava parte na polícia para ela ter que pagar todo o prejuízo e me divorciava daquela peste.
- Ôxe, dona Maria. Isso lá é coisa que se diga com um parente? ...