Um dia de sol - Parte I


    Zilma desembarcou do ônibus suburbano e na tentativa de escapar da chuva, correu até a pequena aba que, à guisa de abrigo, marcava o última parada da linha. Porém o aguaceiro, que vinha impulsionado pelo forte vento, deixava o abrigo alagado. Com a roupa toda molhada, por um momento ela ficou sem saber o que fazer. Fazia este trajeto diariamente, desde o centro da cidade, onde trabalhava como faxineira na residência de um casal de aposentados. A casinha onde morava, junto com sua irmã Florides, mais velha, casada com Zé Pequeno, ajudante de pedreiro, pais de dois meninos, ficava na Vila do Papelão, a vinte minutos de boa caminhada dali. E com chuva o trajeto se tornava ainda pior, já que as ruas não pavimentadas se transformavam em um lamaçal. Permanecer ali, esperar que a chuva amainasse lhe parecia uma burrice. Sair correndo, enfrentar a chuva, atravessar a rua, que naquela altura estava toda alagada, e procurar abrigar-se no boteco de Toinzim Maneta, seu conhecido, a garota Zilma raciocinava que seria o único jeito de sair daquela situação. Lá talvez conseguisse com dona Anja, a mulher de Maneta, roupas secas para trocar, pois a sua já grudava no corpo de tão molhada.
    Permaneceu por uns momentos encolhida a um canto onde a chuva batia com menor intensidade, esperando que pelo menos o vento acalmasse. Enquanto isso pensava nas dificuldades que enfrentara desde que saíra da casa de seus pais, no Cabaçal, para vir morar em Barreiras.
    Filha de um pequeno sitiante, ao completar os dezoito anos, Zilma compreendeu que permanecer na roça, trabalhando duro nos eitos junto com os oito irmãos menores, não teria futuro. Nem para ela nem para o restante da família. Por isso esperou o momento oportuno para achegar-se ao velho e, com jeito, falar-lhe sobre sua vontade de ir para a cidade morar com a irmã Florides.
    – Lá eu posso arranjar emprego, meu pai, e ajudar vocês com algum dinheirinho – argumentava a garota ao falar com o pai sobre este propósito.
     No princípio houve certa resistência do velho pai, mas após consular a esposa, concluíram juntos que a filha estava com razão. Na cidade ela poderia se empregar, terminar de estudar, e talvez, com ajuda de Deus, casar-se com um homem rico. Beleza lhe sobrava. E no futuro poderia ajudá-los com alguma coisa. Um dinheirinho, talvez. E pelo fato de ir morar na casa da irmã, eles ficariam tranqüilos quanto a segurança da filha na cidade. E por outro lado era uma boca a menos para alimentar do pouco, muito pouco, que o sítio produzia.
    Como a chuva não dava sinais de amainar, Zilma encheu-se de coragem e saiu correndo atravessando a rua rumo ao boteco de Toinzim Maneta. Com a visibilidade era precária e ela vinha cabisbaixa esbarrou num carrão de luxo que, estranhamente, estava estacionado frente àquele boteco de fim de linha. Quase caiu, mas conseguiu equilibrar-se a tempo e adentrar, meio atabalhoada, respingando água para todos os lados.
     Naquele fim de tarde, vários homens pobremente vestidos estavam ali a bebericar e a conversar sobre o dia-a-dia do bairro. O recinto recendia a cachaça, lingüiça frita e corpos suados. Com a entrada daquela morena vistosa, molhada da cabeça aos pés, com o vestidinho colado ao corpo, desenhando assim os seios fartos e acentuando-lhe as curvas, os homens pararam de conversar e o silêncio tomou conta do ambiente. Alguns se viraram e ficaram a observar com olhares de cobiça aquela garota bonita recém chegada.
     Um pouco encabulada devido ao silêncio que se fez no ambiente com sua chegada, Zilma permaneceu parada a dois passos da porta, sem cumprimentar ninguém. E ao ver-se cercada por dúzias de olhos esbugalhados e bocas entreabertas, lábios úmidos de saliva e cachaça, sentiu um arrepio de medo. Já ia dar meia volta e sair, quando Toinzim adiantou-se aos fregueses e veio até ela.
    - Zilma, minha flor mimosa. Você vai ficar doente, molhada deste jeito. Vem cá, passa pra dentro – e enquanto, a conduzia por entre aquela malta de homens mal encarados, gritou para a mulher:
- Anja, olha quem chegou. Arrume roupas seca pra Zilma. Ela está tremendo de frio – entregou-a aos cuidados da mulher.
     E a seguir ele fez um sinal sutil e disfarçado a duas figuras que, alheios ao estado precário do recinto, estavam em mesa separada, a um canto do bar. Ali estava um homem já madurão acompanhado de um rapaz moreno, vestindo boas roupas, barbas bem feitas e transpirando perfumes importados. Atendendo ao sinal do bodegueiro, o rapaz foi ter com ele e retornou com um recado ao senhor idoso que ficara sentado à mesa, para quem sussurrou: “É essa.”
    Lá na cozinha, onde dona Anja caprichava nas frituras de lingüiças para servir como tira-gosto, já reconfortada com as roupas secas, Zilma preocupava-se agora como faria para chegar a casa, pois a chuva não dava sinal de parar. E a noite se aproximava enfarruscada. E, ir a pé, por tudo e por todos, a garota não encontrava coragem. Posar ali deixaria a irmã preocupada, e nervosa como é, seria até capaz de mandar o marido avisar a polícia. “O quê que eu faço, meu Deus? E essa chuva não pára.” - raciocinava a moça quando o Maneta chegou à cozinha trazendo pratos vazios e pedindo reforço no tira-gosto. E enquanto a mulher preparava os salgados, ele chamou a garota a um lado lhe segredou, sem que a mulher pudesse ouvir, que estava ali no bar um senhor que queria lhe falar.
    - Comigo? – estranhou a garota - O que ele quer?
    - Sei não. Parece ser um homem de negócios dizendo que tem uma proposta de emprego a você. Ouvi dizer. Não sei bem. Quem sabe você mesmo fala com ele. Simbora lá? Ou quer que ele venha aqui?
    Naquela altura, em sua ingenuidade de menina saída lá da roça, ela estava achando tudo muito estranho. “Um homem que eu nunca vi e que nem sabe quem eu sou, chega assim de repente me prometendo emprego?” – indagava-se em pensamento. E ela sabia o quanto fora difícil arrumar este emprego de faxineira na casa de seu Prudente e dona Alberta. Ganhando salário mínimo, com sábados e domingos livres, e já com promessa de aumento para o ano próximo, com isso ela esperava poder mandar algum dinheirinho para mãe e até estudar à noite. Estava satisfeita.
    - Sei não, seu Toinzim. Acho que não quero falar com ele, não – disse a moça após de uns instantes em silêncio.
     Mas o bodegueiro insistiu dizendo que não custava nada falar com o homem, pois, afinal, era só uma conversa. E se ela não quisesse mesmo, era só falar, não vou, e pronto. Mas aí teve uma idéia:
   - Olha. Não quer que ele te leve pra casa, de carro? A chuva ainda está forte, e não faz menção de parar. Já se faz noite. Não custa nada, minha flor mimosa. No trajeto ele pode ir te explicando melhor como é que a coisa funciona e sobre o emprego. Vam’bora lá, menina Zilma.
Foi o jeito que o bodegueiro encontrou para convencer a garota a ir conversar com o estranho homem de negócios.
    – Bom. Desse jeito até que dá. Eu quero mais é chegar em casa de uma vez. Flora deve estar preocupada e pensando: “Onde é que se meteu esta menina?” Vamo simbora, seu Toinzinho Maneta – e saiu, com uma sacola plástica com suas roupas molhada, rumo ao carrão.
     No início da travessia o silêncio predominou entre os três. No banco de trás iam a garota e o tal homem de negócios, enquanto o rapaz moreno dirigia o carrão através de ruas enlameadas e derrapantes, com Zilma servindo de guia. Seguiram um bom trecho através de ruelas estreitas e tortuosas, sem iluminação pública, derrapando aqui, espadanando água acolá, rumo a casa de Florides que ficava na última rua da vila.
     Quem rompeu o silêncio foi o tal homem de negócios que se identificou com o nome de Vicente. Após perguntar à garota qual era seu nome, que tipo de emprego e quanto ganhava, ele começou a falar se apresentando como representante de uma grande organização de lojas, onde só trabalhavam mulheres bonitas, e onde se vendia produtos femininos, importados, para atender a alta sociedade de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais. – E os salários, oh... você poderá ganhar dez, vinte, ou mais vezes do que você ganha aqui. Já pensou, poder comprar um carro como este. Eu lhe garanto que não demora um ano para ter um só para você. A empresa só exige que você concorde em ir com a gente a Brasília, para um período de aprendizagem e adaptação.
    – Feito? – concluiu o homem de negócio, respirando fundo, após este longo relatório sobre a empresa, sobre a organização e sobre as possibilidades futuras de Zilma.
      Feito, nada! Na cabecinha da garota as idéias fervilhavam. Parecia febril. Latejam-lhe as têmporas. Ganhar dinheiro. Poder ajudar pai e mãe e os meninos a saírem daquela miséria. E também a Florides que está passando por dificuldades com o marido desempregado. “Isto seria apenas um sonho? Ou seria verdadeiro?” – duvidava. “Acho que primeiro eu tenho que falar com a Flora, com pai, com mãe. Mas que tudo seria muito bom, lá isso, seria.” Assim pensava quando viu surgir iluminado pelos faróis do carro, o beco onde moravam.
      – É aqui. Vai devagar, estamos chegando. É ali naquela casinha de madeira onde tem aquele pé de pau na frente – anunciou a garota aliviada, pois vira uma luz filtrada pelas frestas da parede de tábuas sinalizando que Flora estava a lhe esperar. Antes do desembarque seu Vicente voltou à carga mais uma vez:
    – E daí? O que digo a meus patrões? Você aceita ou não? Preciso de algo positivo. É jogo limpo. Olha, amanhã é sábado, quem sabe você quer jantar com a gente? Eu mando o carro te pegar aqui, lá pelas sete horas. Tá bom?
      Zilma demorou um pouco a responder, olhou no rumo da casa, onde viu a porta abrir-se e a figura da irmã aparecendo a ver o que era - e só ai a garota respondeu, já abrindo a maçaneta da porta do carro para sair:
    – Tá bom. Então mande me pegar às sete horas. Té amanhã, Seu Vicente – e saiu, recebendo ainda mais uma respingada forte no rosto, pois a chuva ainda não cessara.

                                                  (Continua)




Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 11/01/2008
Reeditado em 02/04/2008
Código do texto: T812330