Padre Fernando - O primeiro papa brasileiro
O ano era algum da década de quarenta do último século. O pequeno vilarejo ficava no interior da cidade menos povoada do estado, em um vale entre dois montes que ainda estava muito longe de ter casas na sua encosta, diferentemente das grandes metrópoles que viriam a ter o país na época na qual agora nos encontramos. Devido a sua modesta população de pouco mais de mil habitantes, quem chegasse ao pacato lugar e visse seus habitantes, com seus modos um tanto rudes, acharia que o lugar havia parado no tempo, quem sabe em meados do século XIX, tamanho as peculiaridades que caracterizam uma província que não se atualizou muito em questões urbanísticas ou tecnológicas.
Padre Fernando, um jovem clérigo recém saído do seminário sacerdotal, havia sido designado, há poucos meses, como capelão da igrejinha do centro do vilarejo. Um homem distinto o padre Fernando, com seus pouco mais de vinte e cinco anos de idade, mas que parecia já ter quase cinquenta. Sua cabeça pequena e redonda, não muito abastada de cabelos, apenas com alguns chumaços aqui e ali; baixinho, roliço e de pele branca; era chamado de leitãozinho pelos seus antigos colegas de seminário quando não estava por perto. Fazia algum tempo que algo vinha preocupando o reverendo, e o motivo era que precisava fazer algo para aumentar a participação dos jovens às missas dominicais, tendo em vista a quantidade enorme de velinhas, algumas com bengalas, mas todas com o terço nas mãos, que enchiam o átrio da casa de Deus, como gostava de chamar a construção levantada com a ajuda dos antigos fiéis.
Certa manhã de sábado, após se levantar de sua cama um pouco mais tarde que o habitual, como sempre acontecia após tomar uns goles a mais de vinho nas noites de sexta-feira, viu uma barata no chão do seu casebre de alvenaria, que ficava no pátio ao fundo da capela, e sem pestanejar, esmagou-a com o pé direito, descalço mesmo, fazendo a coitada ficar ali, meio amassada. Padre Fernando, pensando que a havia levado à morte, pegou-a pelas anteninhas e a jogou pela janela que estava entreaberta. A hóspede indesejada, para a surpresa do clérigo, logo após cair na grama verde e molhada do sereno, saiu em disparada para longe do seu algoz. Padre Fernando lastimou-se por não ter pisado com mais força no inseto, ou que deveria ter colocado suas sandálias abertas antes de pisar no bichinho marrom e imundo. Quando se dirigiu a geladeira para pegar uma jarra de água para amenizar sua dor de cabeça devido à bebedeira da noite anterior, em um lampejo instantâneo, surgiu-lhe uma ideia genial: e se em uma das missas de domingo houvesse um milagre na capela, uma ressurreição! Com toda certeza um fato desses deixaria os encontros dominicais com uma quantidade maior de pessoas da tenra idade, fazendo assim com que os senis não tomassem conta do recinto, fazendo a fé católica ser renovado com sangue novo. A pauta dentro das discussões canônicas para angariar mais jovens para o seio da igreja já estava a muito sendo discutida sob os tetos do Vaticano. A possibilidade de subir de posto na hierarquia da igreja lhe veio à mente, dando-lhe, imediatamente, uma grande euforia. Tornar-se bispo episcopal era um sonho que ainda estava muito distante, mas nada era impossível para quem tem uma mente brilhante, como achava que tinha o padre Fernando. Mas qual seria o primeiro passo? Padre Fernando era um homem que não acreditava em milagres, muito menos em Deus, como a maioria dos integrantes do corpo sacerdotal da igreja. Sabia que essas crenças tinham que ser cridas pelo povo humilde, pelo rebanho. A sua imaginação no momento chegou a tal ponto que já estava se vendo Papa, peregrinando pelos países mais pobres do mundo, abençoando os fiéis de dentro de uma liteira a prova de balas, ou firmando compromissos com os maiores chefes de estado ou ditadores dos quatro cantos do mundo. Depois de divagar sobre seu futuro, voltou à realidade presente e começou a elaborar seu plano, que teria que ser nada menos que infalível.
Padre Fernando estava sorvendo alguns goles da fresca água quando ouviu três batidas na porta e supôs ser Carlos, o único mendigo da cidade, que quase todo sábado pela manhã ia ao encontro do padre em busca de algum pão velho e talvez um tantinho do vinho, caso padre Fernando não houvesse bebido todo galão na noite anterior; esse era um segredo que ficava apenas entre os dois. Padre Fernando dirigiu-se à porta.
- Muito bom dia, santíssimo padre, por acaso sobrou algo de ontem para esse miserável filho de Deus?
Padre Fernando não tinha nada de comida no seu aposento, apenas a metade de uma cebola sobre a mesa. Com ternura nos olhos, o padre respondeu ao mendigo:
- Que Deus, cuja graça é abundante, abençoe esta refeição simples e a transforme em um banquete para sua alma faminta, meu filho.
Enquanto segurava a cebola nas mãos, Carlos disse:
- É humilde, mas é um gesto de alguém que se importa. No calor dessa cebola, encontro um sabor de calor que aquece meu coração mais do que qualquer refeição. Ela irá ressuscitar meu ânimo, amado padre.
Após a fala serviçal do indigente, padre Fernando teve uma visão, como as do apóstolo João, e na figura maltrapilha de Carlos, que estava mais do que nunca, neste momento, muito parecido com Jesus, viu toda a cena, nitidamente diante de seus olhos, da ressurreição do mendigo dentro capela e a sua apoteose dentro da igreja apostólica romana.
- Carlos, entre, rápido! Preciso que você me ajude em um plano que irá mudar nossas vidas.
O pobre homem coçou a cabeça e fez uma careta como se não tivesse ouvido direito as palavras do padre.
- Hein, homem de Deus, vai ficar aí com essa cara ou vai entrar para que eu te conte tudo nos mínimos detalhes?!
Antes de Carlos responder à pergunta do padre Fernando, este já estava puxando o mendigo pela manga da camisa para dentro do aposento.
- Sente aqui. O plano é o seguinte...
Após cerca de vinte minutos ouvindo todos os detalhes da armação do padre Fernando, Carlos o indagou:
- Desculpe a pergunta, reverendíssimo padre Fernando, mas o que é que eu vou ganhar com isso tudo?
- Como o que vai ganhar?! Já não basta a comida e bebida que eu te dou toda vez que vem bater aqui na minha porta. Mas está bem, eu já sabia que você seria um tanto ingrato e pensei em alguma coisa pra ti. O que você acha de ficar sob a tutela do meu sucessor? Você ficará responsável pelos pequenos trabalhos em torno da igreja, como limpeza e essas coisinhas bobas, além de ter comida e bebida de graça e um lugar para morar para o resto da vida, que será aqui mesmo onde estamos, já que eu, como um eminente futuro bispo, mandarei aumentar esse muquifo, havendo assim um cantinho para você dentro das dependências da igreja. Para o meu sucessor, farei um aposento muito maior e mais confortável.
Após a anuência do mendigo, os dois homens apertaram-se as mãos e combinaram os últimos detalhes da “grande ressurreição”.
. . .
A morte de Carlos foi anunciada pelo filho do padeiro, o qual entregava os pãezinhos, todo dia bem cedinho, à porta do padre Fernando. A missão incumbida ao menino era levar a notícia aos ouvidos de dona Eulália, a viúva do finado coronel Ribamar, antigo prefeito da cidade. A fama dessa velinha não era nada pouca, devido muito ao prestígio que seu falecido marido tinha no vilarejo, como pela capacidade que tinha de espalhar uma notícia; fofoca para os mais simplistas. As crianças do lugar a chamavam pelo apelido de “Boca de sacola”. Certa vez um dos meninos havia escutado da boca de sua mãe, quando conversava com uma vizinha, essa alcunha dirigida à dona Eulália. Antes do meio-dia todos já sabiam da morte do mendigo Carlos.
O velório foi marcado para o mesmo dia, às dezoito horas. Para que a cerimônia fúnebre tivesse o maior número possível de testemunhas da ressurreição, já que Carlos não era muito benquisto pelos moradores da cidadezinha, padre Fernando procurou deixar o evento o mais chamativo possível; encomendou, na confeitaria do pai do seu pequeno mensageiro, diversos quitutes, nos seus mais variados tamanhos e gostos, além de chás e cafezinhos.
Quando os dois homens se encontraram à noite, nos fundos da igreja, para ensaiarem o plano, padre Fernando pensou, primeiramente, que a maior dificuldade seria fazer o pobre homem ficar deitado, totalmente inerte dentro caixão, durante as duas horas, nas contas do padre, entre o momento em que seria aberta a capela até o momento da ressurreição, mas Carlos se mostrou um excelente aprendiz de morto. No ensaio, após Carlos ter bebido uns goles de cachaça e ter deitado no caixão coberto de flores por cima de seu corpo, ele ficou cerca de uma hora e meia completamente parado. A principal dificuldade foi convencer o mendigo a tomar um banho.
-Mas eu tenho mesmo que tomar banho, Santíssimo padre Fernando?! Eu não posso apenas passar um pano molhado debaixo do braço?
- Homem de Deus! Você tem que estar na condição de um morto em recente estado de óbito e não parecer que já está morto e putrefando há dias. Além do mais que é um sinal de uma vida de muitos pecados o fato de o corpo começar a feder muito antes do enterro. Como que a um corpo com o fedor de uma vida cheia de perversões e heresias seria concedido o milagre da ressurreição?
Com muito esforço padre Fernando conseguiu convencer Carlos a pelo menos jogar uma caneca de água fria em seu corpo antes de deitar dentro do paletó de madeira.
A cerimônia havia começado. Padre Fernando subiu ao púlpito e proferiu algumas breves palavras em memória do pobre homem que estava ali deitado, prestes a ter sua alma em contato com o divino, não sem antes velar o corpo na língua original de Deus, o hebraico, que as velhinhas não entendiam, contudo, justamente por isso é que mais o veneravam.
Com a capela cheia de curiosos e uma nuvem de murmúrios enchendo o ar, o padre Fernando começou a oração que antecederia o grande momento. Ele olhou para o caixão, onde Carlos, coberto de flores, jazia imóvel. Tudo estava indo conforme o plano.
-Oremos para que a graça do Altíssimo se manifeste entre nós nesta noite sagrada!, disse o padre, elevando os braços dramaticamente. Os fiéis repetiram em coro, alguns enxugando lágrimas com lenços bordados. De repente, no meio da oração, a barriga de Carlos emitiu um ruidoso ronco, audível por toda a capela. Os murmúrios cessaram instantaneamente, substituídos por olhares perplexos e alguns risos abafados. Padre Fernando engoliu seco e tentou manter a compostura.
-E agora, continuou ele, que o milagre da ressurreição se realize diante de nossos olhos!
Ele fez um sinal combinado para que Carlos se levantasse, mas nada aconteceu. Padre Fernando repetiu o sinal, desta vez com mais vigor. Carlos continuava imóvel.
Um leve pânico começou a tomar conta do padre, que se aproximou do caixão e sussurrou, tentando não ser ouvido pelos fiéis: "Carlos, é agora! Levante-se!" Ainda nada. Desesperado, o padre resolveu improvisar e empurrou discretamente o caixão com o pé. Carlos rolou levemente para o lado, mas continuava inerte.
Foi então que a pequena Mariazinha, a neta de dona Eulália, decidiu que era hora de agir. Ela correu até o caixão, enfiou a mão por entre as flores e beliscou o nariz de Carlos com toda a força de seus dedinhos. O mendigo pulou do caixão, gritando: "AI, QUE DOR!" A capela explodiu com gritos de espanto. As velhinhas que seguravam os terços se abanavam, chorando até as lágrimas. Padre Fernando, tentando salvar a situação, disse:
-Vejam! Ele está vivo! É um milagre!
Carlos, ainda meio zonzo, olhou ao redor e, percebendo a situação, entrou no jogo.
-Eu... Eu vi a luz! disse ele, com a voz trêmula, mas seus olhos brilhando de malícia, e continuou:
- E Deus me disse para voltar e avisar que... que precisamos de mais doações para a igreja!
A notícia da "ressurreição" se espalhou rapidamente pelo vilarejo, e a capela de padre Fernando começou a atrair uma quantidade enorme de pessoas, todas querendo ver o mendigo ressuscitado. Embora não exatamente como planejado, o evento cumpriu seu propósito: a igreja estava cheia e a fé (ou pelo menos a curiosidade) estava renovada.
Após a "ressurreição" de Carlos, a fama de Padre Fernando começou a se espalhar rapidamente. A pequena capela do vilarejo se transformou em um ponto de peregrinação, atraindo fiéis de todos os cantos. As doações aumentaram significativamente, permitindo melhorias substanciais na igreja e nas instalações ao seu redor. Carlos, agora o "ressuscitado", foi promovido a zelador-chefe, mantendo sua promessa de lealdade ao padre.
Com o aumento da popularidade, o bispo local notou o trabalho "milagroso" de Padre Fernando e decidiu promovê-lo a Monsenhor. Esse foi apenas o primeiro degrau de sua rápida ascensão na hierarquia da Igreja. Em poucos anos, devido ao seu "milagre" e ao seu carisma com os fiéis, Padre Fernando foi transferido para a catedral da capital do estado, onde continuou a atrair multidões com suas histórias inspiradoras e sermões apaixonados.
Não demorou muito para que as notícias chegassem ao Vaticano. Impressionados com a habilidade de Padre Fernando de renovar a fé e atrair jovens para a Igreja, o Cardeal Arcebispo de sua região recomendou sua promoção a Arcebispo. Em Roma, seus talentos foram reconhecidos, e ele foi convidado a participar de diversos sínodos e conferências importantes.
Sua inteligência astuta e capacidade de entender e manipular as massas não passaram despercebidas entre os cardeais. Ele foi nomeado cardeal e, em uma surpreendente reviravolta do destino, se viu no Conclave papal após a morte do Papa. As histórias de seus "milagres" e sua habilidade política dentro da Igreja tornaram-no um candidato popular.
Durante o Conclave, enquanto os cardeais discutiam e rezavam pela orientação divina, Padre Fernando usou sua sagacidade e charme para conquistar apoio. E então, em uma decisão histórica, ele foi eleito Papa, adotando o nome de Papa Innocenzo XIII.
Como Papa, Fernando implementou várias reformas que aumentaram o poder e a dominação ao redor do mundo da Igreja católica, embora sua trajetória tivesse sempre um toque de teatralidade e espetáculo. Ele usou sua história de "milagre" para promover a renovação da fé e conseguiu atrair mais jovens para a Igreja, exatamente como planejara no início de sua carreira.
E quanto a Carlos? Bem, ele permaneceu em seu papel de zelador-chefe, vivendo confortavelmente nas dependências da capelo do pequeno vilarejo, embora quisesse estar com o padre Fernando no Vaticano, desfrutando de todas benesses de tal situação. Mas, mesmo assim, sempre estava pronto para contar a história da "ressurreição" para quem quisesse ouvir, mantendo vivo o legado cômico e milagroso de seu amigo e agora Papa Fernando.
A história de Padre Fernando, o "Leitãozinho" que virou Papa, se tornou uma lenda viva, lembrada não apenas pela sua ascensão meteórica, mas também pelo riso e a humanidade que trouxe à Igreja Católica. Já faz alguns anos que nosso herói faleceu, mas ainda hoje é conhecido como o primeiro papa brasileiro.