Um dia de sol - Parte II
Nem bem pusera os pés no piso de terra batida da casinha, ainda ouvindo as arengas da irmã perguntando-lhe: “Que carro era este? De onde você vem? Quem é essa gente? Você se molhou?” – Zilma sentiu um arrepio de frio no corpo. Sentou-se, pediu água e, nervosa com o desconforto que sentia, foi respondendo com meias palavras, que não sabia quem eram, encontrara-os por acaso na bodega de Toinzim.
– Eles que me ofereceram carona, tava chovendo, eu aceitei. Só isso. Tem um de comer aí? – foi só o que ela pode falar à irmã, pois já sentia os primeiros tremores da febre. Pegara um resfriado.
Como em casa não havia sequer uma aspirina, Florides preparou um chá de limão com alho e açúcar queimado e mandou a irmã imediatamente para cama, pois notou que ela estava febril.
– Toma um suador, que isso passa – recomendava Florides, pondo a irmã a dormir, enquanto os dois meninos filhos do casal perguntavam curiosos:
– O quê é que tia Zilma tem maínha?
– Tem nada. Só tá com febre. E agora não façam zoadas.
Sob as cobertas Zilma tiritava. O chá que Flora lhe preparara fizera-a suar. Não conseguira dormir direito embora tivesse sonolenta. Passou uma noite de cão. Estivera em torpor, ardendo em febre, num sono cheio de pesadelos. Em sonho via-se numa casa enorme, cheia de conforto, onde ela morava mais pai, mãe e os meninos. Florides reformara a casinha. E o trabalho... mas que tipo de trabalho? Onde é que era mesmo? Os irmãos brincavam em um imenso jardim todo gramado. A cidade seria Brasília? São Paulo? Acordou com os ruídos dos meninos da casa, sem ter noção de que passara mais de doze horas naquele estado. Já era sábado à tarde. A cabeça latejava. Uma quebradeira no corpo. Doíam-lhe as carnes. Um gosto amargo na boca. Chamou pela irmã e através de quem soube que os homens haviam estado ali querendo falar-lhe.
– De novo? O que eles queriam? O que você disse? – indagou Zilma com raciocínio ainda meio embotado pela febre alta.
– Zilma, sua malandrinha. Como é que você chega e não me conta nada? Arruma um emprego destes e fica na moita. Sua ingrata – falou Florides, entre risonha e despeitada ao mesmo tempo.
– Eu!? Que história é esta Flora? Não tô sabendo – Zilma estava realmente surpresa.
Foi então que a irmã começou a contar que o tal Vicente estivera ali indagando, querendo saber o que o pai faz, como vive. E mais uma porção de perguntas, reafirmando que o emprego em Brasília estava garantido.
– Só que você não queira. Eu até disse que podia contar como certo, pois você está precisando de um bom emprego. Não é mesmo?.
– Emprego, mana? Mas eu nem sei que emprego é esse. Tem que ver primeiro. Não sei – defendia-se a garota entre um acesso de tosse e outro.
– E olha aqui. Quando ele soube que você estava de cama, gripada, ele deixou dinheiro pra comprar remédios e também um vidro de perfume para você. Ô Zilma... Ele me pareceu ser um homem tão bom, distinto e agradável, que não tive dúvidas: Está aí a oportunidade de você se encaminhar na vida. Graças a Deus – argumentava a irmã.
Aquela conversa entre as duas não parou por aí. Mesmo recostada, porém mais aliviada após tomar alguns remedinhos que a irmã conseguira receitados pelo dono da farmácia, Zilma continuava dizendo estar em dúvidas. Mas Florides, decidida, argumentava.
– Menina, você não pode deixar escapar esta oportunidade - e ao mesmo tempo tentava entusiasmar a irmã, contando que seu Vicente trouxera para lhe mostrar um álbum de fotografias com as instalações da empresa, no Rio, São Paulo, Brasília, Salvador. E das funcionárias, então.
– Você precisa ver, mana. Uma porção de moças bonitas. É coisa séria. Seu Vicente é homem direito. O negócio é grande. Eu não tenho dúvidas.
A partir dos argumentos da irmã Zilma acabou se convencendo que deveria ter um conversa com seu Vicente. Mas isso teria que se feito em outro dia, depois que melhorasse da gripe. Contudo, intimamente já se convencera que deveria ir com eles até Brasília. “Se não der certo, nada feito. Só perco a viagem. Porém se é como eles dizem e o emprego for bom mesmo, tudo bem. Será bom pra todo mundo” - refletia a menina Zilma naquela noite de sábado ao se recolher à cama, ouvindo o pipocar da chuva que diminuíra de intensidade, mas não havia parado de um todo.
Os dias que se seguiram foram de tratativas finais para a garota viajar com seu Vicente. Os pais não foram consultados uma vez que a irmã Florides - sob a responsabilidade de quem a garota estava entregue - era a maior incentivadora. E os velhos seriam avisados depois, na primeira oportunidade.
Seu Prudente e dona Alberta, os patrões, ficaram surpresos com a decisão repentina da moça. Estranharam a forma com que a proposta de emprego foi colocada. Brasília, São Paulo. Mas como sabiam de outros exemplos de moças que seguiram o mesmo caminho antes, conformaram-se.
– Que seja feliz – comentaram quando receberam a notícia de ficariam sem a empregada.
Depois de comprar algumas roupas novas, financiadas por Vicente, a data da viagem foi marcada para a madrugada do sábado seguinte. Tempo suficiente para Zilma sarar daquele resfriado, munir-se dos documentos pessoais, fazer as malas e assistir o tempo passar vagarosamente, enquanto uma chuvinha miúda e persistente deixava-a ainda mais ansiosa. “Meu Deus! Brasília. Um emprego de gente rica. Vou ser rica também” – comemorava a moça já sonhando alto.
Na manhã daquela sexta-feira, vésperas do dia marcado para a viagem, ela acordou com um raio de sol a bater-lhe no rosto. “Graças a Deus a chuva foi embora” - festejou espreguiçando-se ao sentir-se bastante aliviada do resfriado. Mas permaneceu na cama a pensar no que os velhos pais diriam ao saber desta viagem. “Eles entenderão” – refletia – “quando souberem que também é para ajudá-los a saírem da miséria, entenderão sim.” E estava em meio a estes pensamentos quando lhe pareceu ouvir Zé Pequeno, que acaba de chegar da rua, dizer a Flora:
- Foi a polícia federal. Toinzim tá preso, também.
Levantou-se rápido, ainda meio zonsa, quando viu Flora ponto a cabeça no vão da porta e dizer, nervosa.
– A Polícia Federal prendeu Toinzim Maneta. Zé chegou inda agorinha e disse que viu tudo. Ele estava lá.
– Meu Deus! – exclamou Zilma estupefata – que foi que ele fez? Liga o rádio aí. Deve dar notícia. Meu Deus do céu!
Não demorou muito e a voz do locutor noticiarista da Rádio Alvorada, abria o programa Plantão de Notícias com a manchete: Polícia Federal prende traficantes de escravas. E em seguida noticiava:
"Na noite desta quinta-feira a Polícia Federal desbaratou um quadrilha de traficantes de escravas brancas que vinha agindo impunemente na cidade de Barreiras. Estão detidos na delegacia, Bernardino Noro, que atende pelo codinome de Vicente (64 anos), seu motorista Pedrinho de Tal (27 anos) e o comerciante Antonio Marambaia, mais conhecido como Toinzim Maneta, estabelecido à rua do Arame, na vila Aurora. Segundo informações prestadas pelo Inspetor Ventura, da Policia Federal, Toinzim Maneta era um dos olheiros que tinha a função de indicar as possíveis candidatas a vítimas do tráfico, assim como quatro outros elementos que atuavam em diversos pontos da cidade, que estão ainda sob investigação. Estes meliantes faziam parte de uma grande organização criminosa com sede na Capital Federal, que vinha atuando em cidades de porte médio, do interior, aliciando mulheres para suprir prostíbulos de Brasília, São Paulo e outras capitais do País e até do exterior. Seus métodos – que vinham sendo investigados há alguns meses pela PF – consistiam em atrair moças pobres, bonitas, com promessa de grandes empregos e grandes salários e que, uma vez conduzidas até Brasília, eram obrigadas a se prostituírem transformando-se em verdadeiras escravas brancas. Comenta-se que algumas dessas moças ingênuas foram parar na Europa, especialmente, na Espanha, onde esta organização possui ramificações. Mais informações em nossos próximos programas, ou a qualquer momento quando se justificar uma extraordinária."
E enquanto os meninos traquinavam lá fora e as duas mulheres permaneciam em silêncio junto ao radinho de pilha aguardando por novas notícias, um dos garotos, com um safanão de fora para dentro, escancarou a janelinha da frente, expondo o interior da habitação aos raios de um sol radiante que engolfou o ambiente com luz e calor. E, após uma semana inteira de chuvas e chuviscos, nada melhor que um dia como este para colocar as coisas do mundo em seus devidos lugares. E o radinho sonorizava o ambiente tocando apenas músicas sertanejas.
FIM
Nem bem pusera os pés no piso de terra batida da casinha, ainda ouvindo as arengas da irmã perguntando-lhe: “Que carro era este? De onde você vem? Quem é essa gente? Você se molhou?” – Zilma sentiu um arrepio de frio no corpo. Sentou-se, pediu água e, nervosa com o desconforto que sentia, foi respondendo com meias palavras, que não sabia quem eram, encontrara-os por acaso na bodega de Toinzim.
– Eles que me ofereceram carona, tava chovendo, eu aceitei. Só isso. Tem um de comer aí? – foi só o que ela pode falar à irmã, pois já sentia os primeiros tremores da febre. Pegara um resfriado.
Como em casa não havia sequer uma aspirina, Florides preparou um chá de limão com alho e açúcar queimado e mandou a irmã imediatamente para cama, pois notou que ela estava febril.
– Toma um suador, que isso passa – recomendava Florides, pondo a irmã a dormir, enquanto os dois meninos filhos do casal perguntavam curiosos:
– O quê é que tia Zilma tem maínha?
– Tem nada. Só tá com febre. E agora não façam zoadas.
Sob as cobertas Zilma tiritava. O chá que Flora lhe preparara fizera-a suar. Não conseguira dormir direito embora tivesse sonolenta. Passou uma noite de cão. Estivera em torpor, ardendo em febre, num sono cheio de pesadelos. Em sonho via-se numa casa enorme, cheia de conforto, onde ela morava mais pai, mãe e os meninos. Florides reformara a casinha. E o trabalho... mas que tipo de trabalho? Onde é que era mesmo? Os irmãos brincavam em um imenso jardim todo gramado. A cidade seria Brasília? São Paulo? Acordou com os ruídos dos meninos da casa, sem ter noção de que passara mais de doze horas naquele estado. Já era sábado à tarde. A cabeça latejava. Uma quebradeira no corpo. Doíam-lhe as carnes. Um gosto amargo na boca. Chamou pela irmã e através de quem soube que os homens haviam estado ali querendo falar-lhe.
– De novo? O que eles queriam? O que você disse? – indagou Zilma com raciocínio ainda meio embotado pela febre alta.
– Zilma, sua malandrinha. Como é que você chega e não me conta nada? Arruma um emprego destes e fica na moita. Sua ingrata – falou Florides, entre risonha e despeitada ao mesmo tempo.
– Eu!? Que história é esta Flora? Não tô sabendo – Zilma estava realmente surpresa.
Foi então que a irmã começou a contar que o tal Vicente estivera ali indagando, querendo saber o que o pai faz, como vive. E mais uma porção de perguntas, reafirmando que o emprego em Brasília estava garantido.
– Só que você não queira. Eu até disse que podia contar como certo, pois você está precisando de um bom emprego. Não é mesmo?.
– Emprego, mana? Mas eu nem sei que emprego é esse. Tem que ver primeiro. Não sei – defendia-se a garota entre um acesso de tosse e outro.
– E olha aqui. Quando ele soube que você estava de cama, gripada, ele deixou dinheiro pra comprar remédios e também um vidro de perfume para você. Ô Zilma... Ele me pareceu ser um homem tão bom, distinto e agradável, que não tive dúvidas: Está aí a oportunidade de você se encaminhar na vida. Graças a Deus – argumentava a irmã.
Aquela conversa entre as duas não parou por aí. Mesmo recostada, porém mais aliviada após tomar alguns remedinhos que a irmã conseguira receitados pelo dono da farmácia, Zilma continuava dizendo estar em dúvidas. Mas Florides, decidida, argumentava.
– Menina, você não pode deixar escapar esta oportunidade - e ao mesmo tempo tentava entusiasmar a irmã, contando que seu Vicente trouxera para lhe mostrar um álbum de fotografias com as instalações da empresa, no Rio, São Paulo, Brasília, Salvador. E das funcionárias, então.
– Você precisa ver, mana. Uma porção de moças bonitas. É coisa séria. Seu Vicente é homem direito. O negócio é grande. Eu não tenho dúvidas.
A partir dos argumentos da irmã Zilma acabou se convencendo que deveria ter um conversa com seu Vicente. Mas isso teria que se feito em outro dia, depois que melhorasse da gripe. Contudo, intimamente já se convencera que deveria ir com eles até Brasília. “Se não der certo, nada feito. Só perco a viagem. Porém se é como eles dizem e o emprego for bom mesmo, tudo bem. Será bom pra todo mundo” - refletia a menina Zilma naquela noite de sábado ao se recolher à cama, ouvindo o pipocar da chuva que diminuíra de intensidade, mas não havia parado de um todo.
Os dias que se seguiram foram de tratativas finais para a garota viajar com seu Vicente. Os pais não foram consultados uma vez que a irmã Florides - sob a responsabilidade de quem a garota estava entregue - era a maior incentivadora. E os velhos seriam avisados depois, na primeira oportunidade.
Seu Prudente e dona Alberta, os patrões, ficaram surpresos com a decisão repentina da moça. Estranharam a forma com que a proposta de emprego foi colocada. Brasília, São Paulo. Mas como sabiam de outros exemplos de moças que seguiram o mesmo caminho antes, conformaram-se.
– Que seja feliz – comentaram quando receberam a notícia de ficariam sem a empregada.
Depois de comprar algumas roupas novas, financiadas por Vicente, a data da viagem foi marcada para a madrugada do sábado seguinte. Tempo suficiente para Zilma sarar daquele resfriado, munir-se dos documentos pessoais, fazer as malas e assistir o tempo passar vagarosamente, enquanto uma chuvinha miúda e persistente deixava-a ainda mais ansiosa. “Meu Deus! Brasília. Um emprego de gente rica. Vou ser rica também” – comemorava a moça já sonhando alto.
Na manhã daquela sexta-feira, vésperas do dia marcado para a viagem, ela acordou com um raio de sol a bater-lhe no rosto. “Graças a Deus a chuva foi embora” - festejou espreguiçando-se ao sentir-se bastante aliviada do resfriado. Mas permaneceu na cama a pensar no que os velhos pais diriam ao saber desta viagem. “Eles entenderão” – refletia – “quando souberem que também é para ajudá-los a saírem da miséria, entenderão sim.” E estava em meio a estes pensamentos quando lhe pareceu ouvir Zé Pequeno, que acaba de chegar da rua, dizer a Flora:
- Foi a polícia federal. Toinzim tá preso, também.
Levantou-se rápido, ainda meio zonsa, quando viu Flora ponto a cabeça no vão da porta e dizer, nervosa.
– A Polícia Federal prendeu Toinzim Maneta. Zé chegou inda agorinha e disse que viu tudo. Ele estava lá.
– Meu Deus! – exclamou Zilma estupefata – que foi que ele fez? Liga o rádio aí. Deve dar notícia. Meu Deus do céu!
Não demorou muito e a voz do locutor noticiarista da Rádio Alvorada, abria o programa Plantão de Notícias com a manchete: Polícia Federal prende traficantes de escravas. E em seguida noticiava:
"Na noite desta quinta-feira a Polícia Federal desbaratou um quadrilha de traficantes de escravas brancas que vinha agindo impunemente na cidade de Barreiras. Estão detidos na delegacia, Bernardino Noro, que atende pelo codinome de Vicente (64 anos), seu motorista Pedrinho de Tal (27 anos) e o comerciante Antonio Marambaia, mais conhecido como Toinzim Maneta, estabelecido à rua do Arame, na vila Aurora. Segundo informações prestadas pelo Inspetor Ventura, da Policia Federal, Toinzim Maneta era um dos olheiros que tinha a função de indicar as possíveis candidatas a vítimas do tráfico, assim como quatro outros elementos que atuavam em diversos pontos da cidade, que estão ainda sob investigação. Estes meliantes faziam parte de uma grande organização criminosa com sede na Capital Federal, que vinha atuando em cidades de porte médio, do interior, aliciando mulheres para suprir prostíbulos de Brasília, São Paulo e outras capitais do País e até do exterior. Seus métodos – que vinham sendo investigados há alguns meses pela PF – consistiam em atrair moças pobres, bonitas, com promessa de grandes empregos e grandes salários e que, uma vez conduzidas até Brasília, eram obrigadas a se prostituírem transformando-se em verdadeiras escravas brancas. Comenta-se que algumas dessas moças ingênuas foram parar na Europa, especialmente, na Espanha, onde esta organização possui ramificações. Mais informações em nossos próximos programas, ou a qualquer momento quando se justificar uma extraordinária."
E enquanto os meninos traquinavam lá fora e as duas mulheres permaneciam em silêncio junto ao radinho de pilha aguardando por novas notícias, um dos garotos, com um safanão de fora para dentro, escancarou a janelinha da frente, expondo o interior da habitação aos raios de um sol radiante que engolfou o ambiente com luz e calor. E, após uma semana inteira de chuvas e chuviscos, nada melhor que um dia como este para colocar as coisas do mundo em seus devidos lugares. E o radinho sonorizava o ambiente tocando apenas músicas sertanejas.
FIM