O filho, a mãinha, Jaçanã e o trem das onze

- Meu filho, não volte tarde. Tu sabe que eu não durmo enquanto tu não chega em casa.

- Não se preocupe comigo, mãinha. Quando der sono vá dormir. Eu tou com meus amigos.

- Amigos só? Tu tá é com namoradas, não é?

- É, mãe. A senhora sabe que sempre aparece umas cabrochas bonitas.

- Mas não se distraia por aí e não volte para casa. Pense na sua mãe que já tá velha, cansada de tanto trabaiá, adoentada e não pode perder noite de sono. Tu perde noite na farra e eu perco aqui no travesseiro, virando na cama para um canto e para outro. Preocupada! Meu filho. Rezando a noite toda para Deus e Nossa Senhora te proteger de todo mal.

- Oxente, mãinha. Tu sabe que eu sempre gostei da noite. Lá na nossa terra eu ia pros forró nas roças. Tu lembra?

- Lembro! Teu pai brigava com tu para não farrear demais porque de manhã tinha que ir pegar no pesado e tu aguentava passar a noite em claro e trabaiá o dia todo.

- É, mãinha! Depois que aquela cobra mordeu ele e ele morreu todo inchado, nossa vida mudou demais.

- Tivemo que vim para São Paulo para não passar fome e morar na casa de seu tio Joaquim aqui em Jaçanã. Me dá tanta saudade de Caém, a terra onde nasci, me criei, me casei e tu nasceu. Agora tamo aqui na nossa casinha no fundo da casa de seu tio.

- Já tenho que ir, mãinha. Depois a gente conversa e lembra dessas coisas.

- Leve os documentos.

- Tou levando, mãinha. Aqui tá minha identidade...

- A identidade só, não. Tu é preto! Leve a carteira de trabaio também. Tu sabe que quando a polícia revista preto ela exige carteira de trabaio para comprovar que não é vagabundo.

- Carteira de trabalho é um trambolho pra levar, mãinha. E eu tenho medo de chover, molhar e de perder também.

- Leve a carteira de trabaio. A polícia pegou o filho de D. Madalena sem carteira de trabaio, bateu nele e prendeu dizendo que é vagabundo. Para D. Madalena sortar ele, ela teve que levar a carteira na delegacia. E ainda ouviu desaforo do delegado, dizeno que se tem carteira de trabaio tem de sair com ela e que mãe é essa que não instrui o filho? Até a coitada de D. Madalena ouviu léra. Eu até disse a ela que ela desse graças a Deus que a polícia não matou ele e não deu fim no corpo ou inventou arguma coisa para dizer que não foi eles que matou.

- Tá certo, mãinha. Vou levar também minha carteira de trabalho, aqui, ó, registradinha da silva. Se vierem com coisa, esfrego na cara deles pra eles ver que não sou vagabundo não, sou trabalhador, só tava me divertindo um pouco. Não posso não? Também sou filho de Deus.

- Espie bem, viu. O último trem para Jaçanã é às onze da noite em pino. Não esqueça de pegar ele, senão tu fica na rua e aí é uma noite de desassossego para mim.

- Não se preocupe, mãinha. Vou para a Barra Funda, lá tem a estação de trem bem perto. E tem um samba do bom.

- Dizem que até Adoniran Barbosa aparece por lá. (Riu) Eu gosto de Adoniran Barbosa. Esse é um artista do bom. Inventa cada música! Oiço o programa dele no rádio todo santo dia.

- Sua bênção, mãinha. E não esqueça de tomar seu remédio, viu.

- Não me lembre não, meu filho. Dá até agonia de tomar esse remédio. Isso amarga que só losna e fel. Affemaria. De amarga já basta a vida. Mas pode ir sossegado, eu tomo essa trepeça ruim. E tome cuidado, meu filho. Agora só tenho tu na vida. Tu é toda a riqueza que tenho. Já tava na hora de tu arrumar uma muié boa para casar e não ficar aí com umas e outras de farra. Deus te abençoe, meu filho. Vai com Deus e Nossa Senhora e volte com eles.

(Minha mãe só dorme quando eu chegar. Toda a farra tem que acabar antes das onze horas para eu pegar esse trem da última hora para Jaçanã).

(Em homenagem a Adoniran Barbosa, esse poeta e artista nem só do povo de São Paulo, mas do povo de todo nosso Brasil)

Rodison Roberto Santos

São Paulo, 04 de fevereiro de 2024.

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 30/07/2024
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