De quando vi o lobisomem do brejo

É que você sempre pede pra contar a história, daí não atino esquecer. Foi a tanto tempo, outra vida! Na época que fui agrimensor pro Estado da Guanabara. Fui e não fui, posso dizer. Não faço ideia, até hoje, de como se faz uma marcação, topografia. Confiaram em mim, tá feito. Lá nos idos de 1972, lembro bem: Santo Expedito da Viração, o nome da vila. Foi de lá que me ajeitei: ganhei dinheiro, conheci a tua avó, troquei a botina pela alpercata e montei comércio. O mercado que teu pai trabalha, coisa minha, mas a história que tu quer ouvir não é essa. Desde moleque que você se interessa por histórias impossíveis e, sei bem que tu acha que essa também não é verdade, mas pode ter certeza que é, vi com meus próprios olhos, estes que a terra há de comer.

Ouça então:

Nessa vila tinha um lugarejo, canto de mundo, ainda mais afastado, longe toda a vida. Estive lá fazendo marcação de terra, confirmando piquete, dando credibilidade a cerca. Apertando mão de fazendeiro, assinando sem ler, coisas de cidade de interior, não acontece por aqui. Voltando: Tudo se passou no córrego do Açucena, nascente gorda que desemboca em um lago que, por fim, se derrama no Paraíba do Sul. As margens d’agua eram as divisas entre a fazenda Pantaneira e o sitio do finado Zé do Brejo. Picada miúda, dois alqueires, alagadiço e lamacento, que o fazendeiro queria por que queria anexar aos seus registros. — Capinheira muita pra coisa pouca, dizia ele.

Ali que vivia dona Julieta, quase só, com seu filho metido a doido, meio brigão, Pedro Barreira. Conheci eles fazendo uma visita de medição, gente boa, tomei café, bença e conselho. Sem querer, contei dos interesses do fazendeiro. Fiz muita coisa errada naquele tempo, mas bulir com os piquetes daquela gente, pode ter certeza que não fiz: tenho meus princípios. Gente pobre toda a vida, miserê danado... Dona Julieta, mãe de oito homens, devota que era, pôs nome de santo em todos, mas nenhum prestava: — deram pro lado do pai, era o que contava. Foram embora, restando apenas o menino desajuizado, a salvação e a tormenta da pobre mulher, coitada... Cuidavam um do outro: ele, na força bruta, um animal cavando e plantando o que dava: banana, inhame, angolão . Ela, o esteio da casa, segurando tudo na base da reza, do oculto, da crença no divino.

Contava-se que a vida daquela gente mudara com o fim do Zé do Brejo. Não, não vou abreviar nada pra você não. Não pediu a história? Agora ouça. Vou te contar ela do jeito certo, como nunca contei pra ninguém, do mais, lembrar dos pormenores é bom pra minha memória, me faz saber que ainda não tô caduco. Como dizia, Zé do brejo era quem mantinha a família no eixo, todo mundo trabalhando, plantação de arroz, o sitio todo verde debaixo d’agua. Imagina: cantoria sapo, limpa-campo para dar em doido?! Você nem sabe o que é limpa-campo. Não falei? É cobra.

Dona Julieta, com seus filhos, todos adultos, homens feitos, deu de esperar mais um. Seu marido, antes de morrer, tossia feito cachorro velho, pondo os bofes pra fora. Então fez promessa: salvo o pobre Zé da maldição tisica, daria a criança em batismo para a sua tia avó com quem mantinha rixa, Deus não aceitou a barganha, o levou mesmo assim. Quando findou-se o velho, antecipou-se o parto. Como já sabe, nasceu Pedro. Sabendo das obrigações para o oitavo filho homem, fez vista grossa: queria pagar a promessa mesmo sem milagre. Passou anos dizendo que iria descer o mapa, achar a casa da velha e obriga-la batizar o menino, nunca aconteceu. O temporão, pagão a vida inteira.

Um a um foram todos embora, caçar mundo, ninguém voltou pra ver a mãe. Arrozal virou capim, brejo tomou conta. Passou fome, passou raiva, encrustou, olhou pra dentro, virou bruxa. Rezando, benzendo, fazendo mandinga, receitando ervas, banhos e orações pra todo aquele que batesse em sua porta. Até eu recebi a minha prescrição: me bateu com arruda, fez cruz na minha cabeça, baforou cachimbo no meu ouvido. Minha vida mudou, que Deus a tenha. Só não sabia resolver a situação do filho, talvez não quisesse resolver.

Acontece que o rapagão, dava, de vez em quando, de ser o que não era. Todo o mês, com a viração, mudava o gênio: sumia, se engalfinhava nos matos, na mata, dois, três dias, uma semana sem aparecer. Quando voltava, tímido e conturbado, cabisbaixo toda a vida, lanhado dos pés à cabeça, quase sempre nu e descalço, era acudido pela mãe. Que, fazendo vista grossa, fingia não saber das histórias assombrosas de criatura maligna rondando a região, sempre na lua cheia, devorando os bichos de terreiro, deixando rastro de pegada, estourando boiada, apavorando o consciente de toda gente. Nas noites enluaradas não se fazia seresta, não se acendia fogueira, não se seguia novena.

Agora que peguei tua atenção, vou contar o que vi:

Lembro-me como tivesse sido ontem: lua cheia, enorme moeda de prata clareando o vale. Dirigia uma caminhonete amarela igual a cara que tu tá fazendo. Estava em direção da fazenda Pantaneira, convidado pra jantar: falar qualquer assunto da capital, negócios futuros, divisa das coisas. Calor dos infernos, véspera de dezembro, seguia de janela aberta, me lembro: cheiro de mato, de pau-d’alho, de floração noturna, noite agradável em estrada pedregosa, exatamente isso.

Depois da ponte, uma curva para direita ficava a porteira. Estava aberta, achei que era para mim. Parei de frente, desci. Era uma casarão alto, branco, coisa linda de se ver. Todo aberto. Silêncio do cabrunco! Nem cachorro latia. Fiquei receoso... de repente, uma sombra passou pelo vão da janela, silhueta grotesca! Pensei ter visto um bode andando em duas patas minh’alma gelou! Um grunhido alto rasgando meus ouvidos: —AIHHHHHHH!!! Tendi a correr, não consegui. Minhas pernas travaram e, desprendidas do meu desejo, adentraram a porta da sala. Fui carregado pela curiosidade, não a coragem. Quase que borrei nas calças, talvez tenha, confesso.

Pra mim, histórias de lobisomem, curupira, vampiro era tudo bobagem do povo, crendice besta, coisa de assustar criança. É nada... Era pedaço de gente pra todo lado, sangue espirrado na parede, troço rasgado, tudo revirado, cheiro de morte, um inferno! Cenário de terror, creio em Deus Pai! O chão, assoalho de madeira, tremia e eu lá, congelado, era o bicho se aproximando. Olhou bem pra minha cara, coisa assustadora...todo peludo, encurvado, com os dentes pra fora. Parecia um cão, feitinho! Ficamos os dois, olho no olho, de repente, coisa mais estranha, esticou o braço pro meu lado, garras enormes... E, sem pensar direito, estiquei o meu também. A gente se cumprimentou: aperto de mão! E ele foi embora. Corri até a caminhonete e sumi na estrada. Nunca mais voltei lá. Coisa do cão, Deus que me perdoe, nunca mais entrei nos matos, nunca mais quis saber disso.

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 22/07/2024
Reeditado em 22/07/2024
Código do texto: T8111986
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