PONTO DE INFLEXÃO NO TRABALHO

Boiadeiro fez parte daquela migração em massa, que nos anos 70 atraiu nordestinos com o sonho de prosperar, no então denominado sul maravilha.

No caso dele então, um dos poucos privilegiados, que chegou à cidade com emprego, casa e comida. No alto dos seus vinte anos, veio morar na zona sul carioca, no ainda pouco ocupado bairro de São Conrado, com direito a vista para a Rocinha, uma favela com barracos de no máximo dois pavimentos.

Village São Conrado era um terreno generoso, onde mais tarde, cresceria um dos maiores condomínios verticalizados da cidade naquele momento. Como servente, viu e ajudou a levantar o primeiro prédio, atento a cada passo do mestre de obras, logo assumiu o posto de ajudante de obras, e passou na prática a saber preparar a base da estrutura que suportará vinte andares.

Como boa parte dos serventes, morava na vizinha Rocinha, era para lá que se dirigia no dia de folga, e encontrava seus colegas de trabalho, para se divertir, e que farra faziam nos forrós e barzinhos da localidade, aquilo lembrava sua terra natal, até no sotaque dos habituais frequentadores.

De vez em quando, toda paz era interrompida por alguma ação desastrada dos despreparados e bem armados policiais militares.

Quando começaram a levantar o terceiro prédio, boiadeiro teve uma sacação, com o conhecimento adquirido ao longo dos dois prédios levantados anteriormente, já adquirira competência para levantar quatro andares com certa tranquilidade.

A dúvida seria por onde conseguir verba para adquirir um terreno, ou mesmo um barraco para posteriormente ser posto abaixo. Todos no canteiro conheciam Peixinho, um vaporzinho que municiava de droga a turma do canteiro. E foi através dele, que conseguiu uma audiência com Marmota, o poderoso manda chuva do tráfico.

A conversa com Marmota foi marcada para o próximo sábado à noite, numa pizzaria da Via Ápia, localidade na Rocinha aonde jovens se reuniam em lojas de games, ouvindo música noite adentro.

Chegou à pizzaria no horário marcado, logo dois seguranças se aproximaram para lhe dar boas vindas, claro, à moda do morro, quase viraram o coitado pelo lado do avesso, procurando algum tipo de armamento.

Liberado, indicaram que deveria caminhar até o fundo do estabelecimento, e aguardar um tempo, até que a porta se abrisse. Logo, estava numa sala com outros três homens, todos com vistosos adereços de ouro, armados, numa das mãos um copo de uísque, na outro cigarro, o que deixava enfumaçado o ambiente.

Boiadeiro ainda inseguro com a situação permaneceu estático como um poste, tentando adivinhar a quem dirigir a palavra. Esperou que alguém quebrasse o gelo, mas aqueles segundos passaram em câmara lenta, nada acontecia, sentiu o suor descer pela têmpora, enquanto permanecia aquele incômodo silêncio. Pensou consigo mesmo, onde fui amarrar minha égua, finalmente Marmota discretamente se apresentou

O chefe do tráfico abriu um sorriso e se levantou para dar mais atenção ao Boiadeiro. Então solicitou que fosse breve e objetivo na explanação da sua proposta. Então, Marmota e seus assessores permaneceram atentos aos planos que boiadeiro propunha. Ele emprestaria o dinheiro para compra do terreno, material de construção e mão de obra, à medida que o prédio fosse crescendo, e ao final da obra teria direito a três andares, restando um para o empreiteiro.

Marmota tinha capital parado, e apenas parte do movimento deveria estar disponível em espécie, para pagar nova carga de armas ou drogas. O chefe do tráfico quis saber qual o salário de boiadeiro no emprego atual. Fez uma proposta de pagar o dobro para que trabalhasse exclusivamente para o tráfico. Boiadeiro ficou bastante nervoso com a proposta, mas acabou aceitando essa oferta especial.

Saíram da reunião como velhos amigos, e com um futuro que se desenhava promissor. Um terreno disponível no alto da favela seria o balão de ensaio do projeto inicial.

Na segunda-feira pediu demissão do emprego, se despediu da equipe, e para alguns colegas fez o convite para se juntar a ele, pagaria 50% a mais do salário atual. No dia seguinte, dez colegas de canteiro se apresentaram para trabalhar.

Embora Marmota não exigisse prestação de contas, ele controlava os pagamentos, até para ganhar maior noção da composição dos custos envolvidos na construção de um prédio de quatro pavimentos, com também quatro apartamentos de quarto e sala por andar.

Passados oito meses, a favela ganhava seu primeiro empreendimento de quatro andares, agora o tráfico pela primeira vez diversificava seus negócios, e a lucratividade auferida na obra permitiria ao tráfico ampliar sem precedentes suas receitas.

Outras obras vieram em sequência, e Boiadeiro passou a ter um prestígio inusitado, para quem não se envolvia com drogas, e com armas, sua vida continuava baseada na construção, voltada para casas populares, coisa que o governo sempre propalou, mas nunca conseguiu produzir e financiar.

O tempo passou, como passou também o tempo de Marmota na chefia do tráfico, e seus sucessores, seus mandatos se caracterizam pelo curto período de validade, mas Boiadeiro persiste investindo em moradia popular na favela.

Da cobertura do Village São Conrado, assiste de forma privilegiada a expansão de seus lucrativos negócios imobiliários.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 13/07/2024
Código do texto: T8106340
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