Preta Quita
Tinham uma única filha. Tinham recursos financeiros. Donos da fazenda Pedr’Águas, abarrotada de mananciais, estavam numa riqueza que Deus benza. Gado nagrejava no pasto e no curral. Nos pomares, se não tivessem diligência, as frutas se perdiam apodrecidas.
Como se não bastasse, eram donos de mais duas fazendas maiores e melhores do que Pedr’Águas. Elas ficavam mais longe do comércio e moravam na Pedr’Águas por comodidade. Conheceram sempre a fartura. Comida tinham de sobra e alimentavam muitos pobres com o que sobejava, em troca de pequenos favores.
Uma dessas andarilhas chegou com uma filhinha nos braços e conseguiram salvar a criança, porém a mãe morreu atormentada por muitas doenças. O jeito foi criar a menina, embora não servisse nem para ser considerada como filha, era preta.
Criada solta nos matos, não prestava nem para ser companheira da filha; só gostava de brincar feito moleque macho, pinotando pelas capoeiras, matando passarinho de badogue, montando em animal bravo. Cresceu jogada num canto, brincando com bonecas de pano e quando ficou maiorzinha achou as brincadeiras de mulher sem graça e, como ninguém lhe dava importância mesmo, pôde brincar de tudo o que quisesse sem ser importunada.
Um dia, D. Arminda a viu amansar um burro bravo e ficou admirada da força e da destreza da moleca. “Tá velho que se vê um vaqueiro com uma força e um jeito de amansar burro como esse trem doido aí, esse diabo é mulher-homem.”
Seu Zefino combinou com a esposa para botar como menino de recados, serviria para comprar as coisas que precisava no arraial da Pontinha. O vaqueiro queria muito bem a Preta Quita e não concordou com essa decisão:
- Não é uma coisa boa, Seu Zefino, deixar uma menina dessa montada num animal sozinha por essas paragens. O siô sabe muito bem que existe gente prá tudo, eles pode pegar ela e fazer uma marvadez.
- Derlandio, esse diabo aí é mais home que nós tudo junto...
- Pode inté tirar as honra dela, patrão...
- E nega tem lá honra, Derlandio, nega tem é tapagem, retrucou D. Arminda.
- A minha muié tinha, D. Arminda, muita honra.
Dia sim, dia não, Quita tinha de ir para o arraial levar coisas e comprar outras. No início chorou muito pelo caminho, ficou com medo e com raiva porque não podia mais brincar todos os dias livremente. No dia que ficava na fazenda já não tinha tanta disposição para as brincadeiras, porém ainda assim brincava.
Coube de sorte que ninguém bolia nela, a nega-macho de Seu Zefino, quem ia lá? Ninguém tinha coragem de encostar um dedo. De azar lhe veio o sangueiro melando a carroça - “Deus do céu, o que é isso? E agora que eu tou com a peste, que eu vou morrer!”. Na venda de Seu Fuloriano foi atendida e limpada por D. Maricota: “Tu tá é com a doença das muié”. “E isto mata, D. Maricota?” “Não, minha filha, a gente diz doença, mas de certeza é saúde. Agora tu não tem é que deixar home encostar em tu, senão bota fio.”
Um dia sentiu uma forte cólica e quase desmaiou de dor, caiu no choro no meio da estrada. Foi consolada por um cavaleiro passante, levada com muito cuidado para o vilarejo e medicada na farmácia de Seu Toinho.
Jonas viu a menina chorando e pensou que fora abandonada com a carroça e estava sem saber o que fazer. Ficou horrorizado ao saber que era obrigada a ir para o arraial vender as coisas e fazer as compras para o patrão. "Nesta fazenda não tem nenhum moleque macho para fazer essas coisas? Seus pais não reclamam?" "Não, eu não tenho pai nem mãe, fui criada por eles e tenho de fazer o que eles quer."
O cabra pegou amor pela danada; idas dela para Pontinha encontravam-se e às escondidas, viam-se, amavam-se. Ela nunca esperava encontrar, justamente no seu suplício, o homem alento de sua vida. Já não era tão triste fazer sua obrigação quase diária e agora ansiava alegre pelas compras para ver Jonas.
Em uma das voltas, um reboliço estranho em Pedr’Águas. Jamais tinha visto a fazenda assim em polvorosa. O que teria acontecido? Teria morrido alguém? Tomara que pelo menos D. Arminda tenha se findado. A diaba da velha é mais ruim que a peste! Ou então Mariana, já tinha maltratado tanto ela! E se fosse Seu Zefino também não fazia falta. Parecia que prestavam um favor lhe dando comida e abrigo. Eram todos maus e miseráveis, se consideravam os melhores do mundo.
Antes de chegar à casa, Tininha, uma tarefeira da fazenda, contou-lhe o sucedido. Desvirginaram Mariana, deixaram perdida e caíram no mundo. Quem terá sido? O filho de Murilo Bezerra, ninguém sabe onde está agora. Fugiu, só queria o prazer, responsabilidade, que é bom, nada! Os velhos estão desesperados, Seu Zefino quase mata todo mundo, tá em tempo de pôr fogo na fazenda, bateu tanto em Mariana, tá toda arrebentada, xingou de todo nome conhecido e desconhecido, disse que desgraçou a família. E agora? E agora, muié dama como qualquer uma outra, ou os velhos aceitam uma desonrada dentro de casa e ficam sendo coiteiros ou põem fora e mandam pro diabo que a carregue.
Quita chegou, pôs a carroça e foi entregar as compras para Derlândio. Soube que Seu Zefino ia mandar a filha para Salvador, Rio de Janeiro ou São Paulo; por muito pedir de D. Arminda, que não queria ficar longe da filha, resolveu o velho dar uma fazenda de presente a quem se casasse com ela. Rapaz pobre que quisesse se fazer na vida, era esta a vez.
Outra ida na cidade, já tinha matutado tudo. Contou a Jonas as novidades da fazenda e propôs-lhe casar-se com Mariana. Arquitetariam um plano para tomar uma fazenda dos velhos, ela não se importaria de ficar como rapariga dele. A ideia agradou o rapaz e concordaram que se apresentaria em breve aos fazendeiros.
Júlio Batista já havia chegado na frente. Prometeu que seu filho Celino se casaria com a desvirginada e firmou acordo com Seu Zefino. Porém Celino encrespou e não quis aceitar o contrato do pai, dizia não ser pedreiro para tapar buraco dos outros e lá não apareceu para tratar do casamento. Júlio ficou quase louco, onde já se viu? O homem vai dar uma fazenda cheia de gado e a melhor fazenda, qualquer um fica rico com uma proposta desta.
Caminho aberto para Jonas, aceita a proposta, feito o casamento. Assumiu a fazenda, administrou como ninguém imaginaria que fosse administrar, ganhou a confiança dos velhos e continuou encontrando-se com Quita, amenizou seu sofrimento, pôs como cozinheira da sua fazenda.
Quando D. Arminda adoeceu, ajeitou para ir toda a família promover o tratamento em Salvador, conseguiu que Seu Zefino e D. Arminda assinasse uma procuração dando plenos poderes sobre todas as suas propriedades. Na ausência dos donos, doou as fazendas para Preta Quita, inclusive a que administrava, pois esta ainda estava no nome dos velhos. Estes só não ficaram totalmente pobres porque Jonas, por piedade, depositou um dinheiro suficiente para viverem em Salvador, que ele dizia que correspondia ao pagamento das fazendas.
Continuou o administrador de Preta Quita, não poderia partilhar com ela a posse das fazendas, pois seu casamento anterior o impedia de ser seu marido oficial. A riqueza multiplicou e já corria longe a fama da fazendeira.
Depois de muito tempo a morte de Jonas consolidou a fama e o poder de D. Quita. Seus dois filhos não necessitaram passar o que ela passou, o filho homem continuou a administração dos bens e a mulher tornou-se advogada, estudou em Salvador e todos respeitavam Dra. Solange, filha da maior fazendeira, a Preta Quita.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, nos idos de 2002