ABORTO, E AS MUITAS PEDRAS NO CAMINHO
Guilherme viera ao mundo por um descaso com sua genitora, a Maria das Dores.
A vida de doméstica nunca foi fácil, mas Maria, uma mulata de seus 35 anos nunca passou despercebida, sua presença chamava atenção, graças às formas bem delineadas e o natural rebolado tirava muita gente do sério. Impossível cruzar com ela, e não virar a cabeça para concluir aquela visão de beleza.
Quando precisava trocar de emprego, e olha que isso acontecia com certa frequência, por motivos que você leitor pode até imaginar. Ela então passou a preconizar casa de idosos, pois assim, pelo menos a princípio, seria menor a chance de assédio, tanto pelo patrão, como pela explosão de hormônios de algum adolescente da casa.
Quando os primeiros olhares insinuosos começavam a partir dos adultos, ou mesmo de adolescentes, soava o alarme, indicando faltar muito pouco para uma abordagem mais direta, e toda futura confusão pode causar no que deveria ser apenas um ambiente de trabalho.
Essa foi sempre sua sina, e alguns ainda insistem em continuar a dizer, que beleza não põe a mesa, ainda mais num país que exige boa aparência, como fator preponderante em qualquer entrevista de emprego, mas quando alguém extrapola esse conceito, passa ser um estorvo na vida da pessoa.
E Maria teve que aprender a conviver com essa falsa impressão de sentimento, ela atraía homens onde estivesse, exclusivamente por suas privilegiadas formas, e olha que nunca botara os pés numa academia de ginástica.
No transporte casa/trabalho/casa, mesmo em ônibus com poucos passageiros em pé, invariavelmente alguém se aproximava na tentativa de tirar um sarro. Foi assim que passou a usar uma estratégia inibidora, sabe aquele alfinete que se usava para prender fralda de pano no passado, pois bem, era um desses que ela usava com maestria para afastar incautos.
Por não dormir no trabalho, se livrava do momento mais propício às abordagens sexuais no trabalho doméstico, o noturno, quando pretensamente todos estão dormindo, e, portanto, a ocasião mais propícia ao bote.
Não adiantou seus muitos anos de experiência, um dia para não ser mais lembrado, acabou caindo numa armadilha. O casal de idosos da casa onde trabalhava precisou passar uma semana na casa da filha, que acabara de trazer ao mundo seu primeiro neto na distante Floripa.
Iriam aproveitar as duas semanas fora, para realizar uma modernização no banheiro da casa, adequando o espaço às necessidades que a idade impõe. E assim, solicitaram a permanência de Maria no apartamento nesse período, para que tivessem mais segurança de que a obra seria efetivamente tocada.
Sua obrigação seria evitar que a poeira se alastrasse por outros cômodos, e ao final do dia documentar com fotos a evolução dos trabalhos. Antes de voltar para casa, Maria aproveitando o WIFI do apartamento enviava as fotos registradas no dia.
Seu Manoel, o pedreiro de meia idade, alegou gostar de trabalhar tomando café, e logo que chegou a casa, solicitou à Maria permissão para usar a cozinha, pois traria marmita todo dia, que precisava ser esquentada, trouxe também um quilo de café de sua marca preferida, e disse que prepararia.
Maria, com ciúme de sua cozinha, mantida sempre limpa e organizada, não queria saber de homem por lá, e se ofereceu, ela mesma prepararia as demandas do pedreiro.
Nesse tempo sem patrões em casa, e para ocupar seu tempo, Maria resolveu passar um pente fino em pontos da casa, onde devido à escassez de tempo acabava não indo aos detalhes. Trouxe também algumas roupas para fazer reparos, tinha intimidade com a máquina de costura, pois Dona Dolores sempre pedia sua colaboração na hora de ajustar alguma peça do vestuário, tanto dela, como de seu Áureo, o marido.
E assim as duas semanas de muita tranquilidade praticamente voaram. A obra foi concluída até antes do prazo, e seu Manoel retornaria no sábado com um amigo, apenas para transportar os sacos de lixo estocados na garagem do prédio e acabar de recolher suas ferramentas que tinham ficado no apartamento.
Para comemorar o fim da obra, Maria preparou uma surpresa para o pedreiro, um bolo de cenoura com chocolate, sua especialidade, acompanhado de café quentinho.
Eles já tinham carregado tudo na camionete e vieram se despedir. Maria serviu o lanche e foi atender ao telefone, seus patrões comunicavam que chegariam à noite daquele mesmo sábado.
A tentação pela carne falou mais alto, diluíram um pozinho no café da Maria, enquanto os três conversavam veio aquele sono inadiável.
Maria só foi acordada horas depois por Dona Dolores, tinha sido estuprada provavelmente por seu Manoel e seu amigo, e depois largada no chão da sala nua e desacordada.
Enquanto tomava banho acompanhada de perto pela patroa, seu Áureo foi até a delegacia registrar a ocorrência, e solicitar uma diligência para acompanhamento do caso.
Os dois policiais que chegaram para fazer a inspeção não acreditaram na versão dos fatos relatada por Maria. Seu Áureo, já consternado exigiu a análise de corpo delito e que incorporassem uma amostra da bebida, que restou na xícara para análise.
Em nenhum momento perguntaram o paradeiro dos supostos meliantes. A indicação dos rapazes partira do porteiro da noite do prédio, que tinha algum grau de parentesco com Seu Manoel, todos moravam na Rocinha, aquela mega favela encravada na Zona Sul carioca.
Ambos os indivíduos foram chamados a depor, e então criaram uma nova versão para o fato, alegando que ela os enfeitiçou, ao transitar pelo apartamento com roupas íntimas sensuais, deixando ambos alucinados com todas aquelas curvas.
Como não foi encontrado indícios de droga na amostra da xícara, aliada ao relato supostamente convincente de seu Manoel e do auxiliar, a polícia deu o caso por encerrado dois meses depois, sem condenações, abrindo assim precedentes para novas aventuras que ludibriam a lei.
Agora sobrou para Maria uma luta contra o tempo, buscando uma forma de exercer o seu direito ao aborto. Não tinha grana para bancar uma conhecida clínica em Botafogo, que fazia abortos relativamente seguros, e não queria se arriscar com métodos alternativos de eliminação do feto.
Maria perambulou pelos hospitais de referência da cidade em busca de uma solução para o impasse, mas sempre encontrou portas fechadas. Mesmo definido pela Constituição, que mulheres que passaram por estupro têm direito ao aborto, ela viu os meses correrem sem vislumbrar uma luz ao final do túnel.
Um amigo advogado tentou impetrar um mandado, exigindo o cumprimento desse direito constitucional, tudo em vão. E claro, a gravidez prosseguia, sem se importar com pedras burocráticas que foram sendo colocadas propositalmente no meio do caminho.
E foi assim que Guilherme acabou vindo ao mundo.