O canto da raposa
Mãe Noite saiu da noz de Tucunã e botou sua filha Lua Cheia, redonda, brilhante e amarelinha no céu, entre as estrelas que servem à Lua, para alumiar a mata encantada. Mãe Noite decidiu que a semana seria bem clara. Pai Dia botou seu filho Sol muito quente no seu período e Mãe Noite quis que a escuridão não fosse intensa para que Mãe Terra passasse essa semana bem clareada.
Mãe Noite é rainha dos mistérios, senhora dos espíritos, dona das festas, da bebida forte, amiga do amor e da doença, detentora do sono, da vontade de fazer sexo; ela traz consigo as lembranças, a saudade, o frio; incentiva a traição, proporciona o carinho, o repouso, o esquecimento; gosta do fogo, faz os velhos contarem seus casos; é com ela que os homens preservam suas tradições, lembram-se da sua fragilidade, admiram o infinito; traz o cansaço, o desânimo, o alento, os pensamentos perdidos, o sorriso, a dor, a paz, a loucura. Incentiva os encantamentos, a adivinhação, a violência, a morte, o assassinato. No seio da Mãe Noite pessoas são concebidas e nascem, quando os deuses decidem os seus destinos.
Madrugada, a maior manifestação de Mãe Noite, intensifica sua força na movimentação das coisas ao seu redor: o vento frio na mata balança toda a folhagem, demonstrando a presença dos espíritos vindos no vento; os animais assustam-se e berram; os pássaros noturnos agourentos, como a coruja pia, a avó da lua canta seu canto sinistro e a rasga mortalha passa com seu sonido parecido com uma tesoura rasgando pano; todo esse universo se agita na mata fervilhante de sombras, sons e sonidos os mais diversos. Madrugada é a força jovem de Mãe Noite. É o momento quando um dia morre e outro nasce.
Mãe Noite é completa; começa com o dia vivo, vai até sua morte, quando surge Madrugada e dá origem a outro dia, quando surge Aurora, no momento que Mãe Noite esconde-se.
Lua Cheia obedeceu à Mãe Noite e pairou no céu clareando a terra, as trilhas, os caminhos, as caras, as vidas, as festas dos homens. E clareou tanto que, deu prá ver, em meio à madrugada - quando seria escuridão total - um cipó sobre o chão.
A Lua é filha obediente! Clareia bastante, parcialmente, ou esconde-se de vez, segundo a vontade de sua mãe. Mãe Noite necessita da força da Lua Cheia para influenciar sobre a Terra. É na semana da Lua Cheia que os mistérios invadem a terra com mais poderes. Planta plantada nessa época cresce com mais força, cabelo cortado nesses dias cresce mais rápido e forte, os animais ficam mais bravos e até o mar sente a força da Lua Cheia. Os espíritos flutuam com mais proeminência no ar, a natureza regurgita, as pessoas ficam mais agitadas ou mais alegres.
Caminhando por uma trilha no mato entre licurizeiros, cajueiros, jaqueiras e mangueiras ouvia-se o som da voz humana, já perto da vegetação rasteira como melancia e abóbora e das raízes como batata, aimpim e mandioca. Eram muitas vozes e cantavam um canto diferente e tocavam instrumentos. Havia uma festa no meio da mata e era a tribo indígena dos Paxaguara (Povo da Raposa: Guara-Povo e Paxa-Raposa) festejando a noite do animal doador da vida à tribo, no dia determinado pelo pajé, coincidindo sempre com uma noite de lua cheia. Toda a tribo estava reunida, esperando o espírito do animal; no entanto um outro espírito chegou, antecedendo à Raposa - Mãe da tribo. Era o espírito da que fora escolhida para preservar o seu povo; “o seu povo teria que perpetuar-se, sua nação não poderia morrer, porque Mãe Raposa e Mãe Lua castigariam terrivelmente Mãe Terra”. E quando o espírito da escolhida chegou, encantada pela Mãe Lua, os guerreiros silenciaram e reverenciaram; foi ela a escolhida pelas deusas da tribo para cantar, louvando-as. A escolhida passou entre os guerreiros, postados em círculo, os homens troncudos, nus e pintados; chegou no meio da roda, foi até o cacique, velho índio, exibindo o cocá maior e mais colorido da tribo; eram penas azuis, verdes, vermelhas, cinzas, rosas, amarelas, brancas, pretas, marrom e de várias outras cores; a escolhida então estendeu as mãos, ele as tocou, colocou suas mãos sobre as dela, disse algumas palavras em sua língua e as mulheres aproximaram-se, formaram outro círculo atrás dos guerreiros; após a acomodação das mulheres, a escolhida aproximou-se do pajé e este a saudou com algumas palavras, pegou uma concha de liricurizeiro contendo uma bebida forte de mandioca, ofereceu, ela tomou uns goles, voltou para o meio da roda e o pajé então fez um círculo com umas conchas em volta da escolhida e derramou a bebida nelas. Em seguida, o pajé foi até à escolhida, fumou um cachimbo de bambu e soprou a fumaça na sua face, o que a fez estremecer e cair sobre o chão; quando levantou-se, deixou cair sobre a Mãe Terra o sangue de sua menstruação e soltou o seu canto com os olhos fixos na lua: "Guará, Guará, piau tocó maiavá". A Raposa, então apareceu; veio de dentro da mata, entrou na roda, bebeu o líquido encontrado nas conchas, enquanto a voz encantada continuou o canto e ela começou a andar, girando em círculo sobre si mesma e a rir e riu muito até chegar perto da escolhida e esta desceu, tomou a forma física da raposa, olhou nos olhos dela e silenciou; o animal então, tomou a sua voz e cantou como se fosse ela própria, mirando a lua: "Guará, Guará, piau tocó maiavá" e repetiu uma vez, mirando a escolhida e outra vez, mirando a lua e aí caiu e morreu. O pajé aproximou-se, pegou o animal sagrado, jogou na fogueira já preparada e depois quando transformado em cinzas, jogou o pó sobre a escolhida, que só depois de haver sido tocada pelas cinzas, voltou à sua forma ereta e então Mãe Lua escondeu-se para deixar vir Pai Sol.