A Viagem
José Firmino era um senhor bem apessoado, sistemático, apreciava uma boa conversa, não gostava de brincadeiras. Fugindo da seca, sai do sertão baiano rumo ao centro oeste goiano ainda moço, sozinho, sem família. A vida ali já não era possível, precisava buscar novos caminhos. Decidido, deixa para trás os pais e os irmãos, sertanejos arraigados na terra sofrida do nordeste brasileiro. Como um passarinho que sai do ninho, alça voo e ganha as alturas, José Firmino bate suas asas e, fortuitamente, vai de encontro ao desconhecido. Na mala pequena, além de uns pares de roupas, leva também seus sonhos e sua coragem.
Enquanto caminha em direção à estação, o filme de sua vida vai passando diante de seus olhos: a infância quase sem escola (tinha pouca leitura); os amores e desamores que tivera; os amigos que ficaram; o difícil trabalho no campo; o sol ardente; a lida com o gado; a pele queimada; a vida dura. Já na estação, o trem não demora a chegar. No vagão, José Firmino se aconchega numa poltrona junto à janela. Um apito estridente anuncia o início da viagem. Lentamente, o trem se afasta e, aos poucos, a cidade de Juazeiro se apequena no horizonte até se perder de vista, numa curva da estrada. A viagem segue tranquila. Da janela, José Firmino observa a paisagem que, aos poucos, vai mudando, ganhando uma nova roupagem. A caatinga do sertão vai ficando para trás, dando lugar, agora, ao cerrado mineiro. Árvores de pequeno porte, com seus galhos retorcidos, se espalham pelas campinas. A vegetação ressequida e rasteira é abundante e, mesmo com o calor intenso, ainda se pode ver flores aqui e ali, à espera das chuvas. Apesar das adversidades do clima, a vida se faz presente. Há muito tempo não se via um verão assim, tão prolongado! De mansinho, a tarde vai caindo e o sol, sem pressa, aos poucos, vai se pondo por detrás da colina. No balanço do trem, José Firmino é acolhido pelo cansaço e adormece.
No clarão da aurora, o trem viajante chega à estação de Belo Horizonte. Parada obrigatória! Aos poucos, as luzes da cidade se apagam, dando lugar a um sol abrasador, imponente, prenúncio de mais um caloroso dia! José Firmino é despertado pelo zum zum zum do vai e vem de pés arrastando-se pelo vagão. Nesse intervalo, meio assustado, José Firmino desembarca e caminha pela estação. Para ele, tudo é novidade! Nunca tinha visto tanta gente assim, reunida num só lugar! Pessoas diferentes, com jeitos diferentes de falar, educadas e acolhedoras, parecia um sonho! Num canto ali da estação, enquanto toma um fumegante café, José Firmino observa as pessoas se aglomerando diante do balcão da lanchonete, ávidas pela primeira refeição do dia. A parada é curta e o trem está prestes a partir. Absorto, por um instante, seus pensamentos vagueiam e o levam à fazenda em Santana dos Brejos, onde fizera grandes amizades e vivera aventuras surpreendentes. Nunca se esquecera do encontro que tivera com o Caipora, numa mata fechada. Naquele tempo, até então, acreditava que esse ser não passava de crendices folclóricas, fruto da imaginação humana. Mas não! Ele estava ali, diante dos seus olhos, no meio do caminho exigindo um pedaço de fumo! Sua carabina vinte e oito dois canos era uma amiga inseparável. Sem ter outra saída, resolve matar a fera. Sabia, de acordo com as crenças populares, que o Caipora era um ser encantado e que nada podia abatê-lo. Decide pôr isso à prova e empunha sua carabina reluzente, bem lustrada. Acalma sua montaria, uma mula preta de pelo brilhoso que, assustada, tenta fugir da situação. Oferece ao bicho bruto uma tragada de seu cachimbo, único fumo que carrega. Desconfiado, o Caipora aceita a oferta e José Firmino encosta os canos da arma na boca do tal. Puxa os dois pinguelos de uma só vez, causando um estrondoso tiro:--- Cabruuummm... Quando a fumaça se dissipa, o Caipora está ali, ileso, sem um arranhão. Fixa o olhar nos olhos de José Firmino e, com um ar de satisfação, diz que o fumo é fraco, mas é bom! Salta para o lado e desaparece mata a dentro. Meu Deus, que aventura! Um longo apito avisa aos passageiros a iminência da retomada da viagem. Apressados, todos retornam aos seus lugares. Em seguida, "Piuiiii, piuiiii, piuiiii"... e o cavalo de ferro segue seu rumo, com destino à capital goiana.
Finalmente, José Firmino chega a Goiânia, coração do Brasil! Como um cão que caiu da mudança, ele olha para todos os lados e não consegue enxergar um rumo, uma direção a seguir! Ele sabe que não vai ser fácil, mas como todo bom sertanejo, resiliente, sempre soube enfrentar as adversidades da vida e fazer das pedras do caminho alicerce para edificar o seu castelo. Nesse patamar, José Firmino viu-se permitindo adaptar-se à nova situação: fez amizades; conseguiu trabalho; constituiu família... fixou raízes e fez desse novo mundo o seu sonho encantado! Hoje, já com a idade avançada, José Firmino traz, pendurada na parede da sala, sua carabina vinte e oito, lembrança do passado. Vez ou outra, quando se encontra sozinho, seu olhar perdido fixa-se num ponto qualquer e sua mente vagueia pelo solo agreste do nordeste, terra que o viu nascer. Enquanto a saudade norteia seus pensamentos, uma voz martela em sua cabeça: --- Oh, Senhor, meu Deus, por mais que a saudade me aperte no peito, voltar para o sertão já não dá mais! Sem arrependimentos, agradeço ao Senhor por ter me guiado até esta nova terra de um povo acolhedor, onde finquei raízes e plantei meus sonhos! Obrigado por tudo, querido chão de Goiás!
Ranon Machado