Marcião tinha razão
Depois de mais uma rodada de carnes na churrascaria, Aldo olhou para os três amigos reunidos à volta da mesa e comentou:
- Vocês já pararam pra pensar que, numa outra realidade, nós quatro já estaríamos condenados ao inferno?
Juca riu. Pedro e Fábio o encararam surpresos.
- Que crimes terríveis teríamos nós cometido, para nos desejar tal sina? - Indagou Juca em tom farsesco, mão no coração.
- Lembre-se que ele se incluiu, portanto iria nos fazer companhia - advertiu Pedro, indicador erguido.
- Você, Juca - prosseguiu Aldo. - Vejo que cortou o cabelo esta semana e barbeou-se hoje de manhã. Isso é um pecado sério, está lá, no Levítico.
- Com exceção do Pedro, todos nós nos barbeamos - observou Fábio. - Mais três para descer.
- Eu gosto da minha barba de sindicalista - declarou o citado, cofiando a dita cuja.
- E você, Fábio - Aldo apontou-lhe o dedo. - Está de calça jeans e camisa de poliéster... nem sei se poliéster conta como tecido ou plástico, mas não poderia usar roupas feitas com tecidos diferentes. Vai pro inferno também!
- Certo, quatro pra descer - corrigiu-se Fábio. - Duvido que alguém aqui use somente roupas de algodão.
- Quem aí gosta de camarão? - Questionou Aldo.
Os três amigos ergueram as mãos. Aldo também levantou a sua.
- Levítico, já sabem... - Fábio apontou para baixo, fazendo uma careta.
- Isso mesmo. Uma costelinha de porco, um bacon, presunto... quem se habilita? - Prosseguiu Aldo.
- Não escapa ninguém - admitiu Pedro.
O garçom aproximou-se com um espeto de picanha.
- Quem vai? - Indagou.
- Mal passada e gordurosa - avaliou Juca. - Do jeitinho que eu gosto!
- Levítico! - Exclamaram os outros três.
- Alguma restrição religiosa, cavalheiros? - Indagou preocupado o garçom.
- Não, pode servir - tranquilizou-o Aldo. - Eu só estava lembrando aos meus amigos que, se Marcião não tivesse rompido os vínculos com a Bíblia Hebraica, nós ainda hoje estaríamos cumprindo as proibições sem sentido dos antigos israelitas.
O garçom começou a cortar generosos pedaços sangrentos de carne em cada prato, enquanto Fábio concluía com ar satisfeito:
- Marcião tinha razão!