Os filhos de Tia Júlia
Meu pai tinha seis irmãos, com ele sete. Três mulheres e quatro homens. Uma dessas irmãs se chamava Júlia, tia Júlia. Ela se casou bem jovem, acho que estava no auge de seus 16 anos. E tinha um sonho de ter dois filhos, um menino e uma menina. E desses filhos os dois fossem santos. Tia Júlia queria que seus filhos fossem noivos de Jesus Cristo. O menino, padre; a menina, freira.
E na ventura da vida nasceu de seu ventre um casal de gêmeos: Carmelito e Lanarose. E a católica mãe costurando o destino dos dois desde criança.
Eu ia sempre com minha mãe visitar a tia Júlia, já estava viúva, ficara aos 26 anos, só teve o amor marital durante dez anos de sua vida. O jovem Abílio morrera de infarto aos 32 anos quando trabalhava na usina de açúcar de sua família.
Tia Júlia não teve muito problema em cuidar das crianças, era fazendeira, recebeu uma herança boa do falecido e ficou a viver de rendas do engenho e das duas fazendas de soja e café. Nunca se casou. Viveu para os filhos e para vê-los entregues aos braços de Cristo sendo missionários de sua palavra aqui na Terra.
Carmelito foi para o seminário aos 12 anos, Lanarose jamais aprovou essa ordem maternal e foi morar com sua avó paterna nas Minas Gerais. Lá estudou e se formou no magistério, se tornando professora e depois professora de futuros professores nas universidades do estado e federal. Minha prima era mesmo uma mulher decidida, forte e muito inteligente, escrevia até livros didáticos.
O jovem Carmelito desistiu do celibato.
Certa madrugada a porta da casa de tia Júlia fora surpreendida com batidas fortes e um dos seus empregados assustado abrira com uma 38 nas mãos. Era o Cardeal Dom Pedro Felisberto trazendo o então padre Carmelito para a sua residência. Fora expulso do seminário.
Na sala de jantar o Cardeal indignado desfiava as ações nefastas do jovem Carmelito à sua mãe que com olhos marejados e as mãos trêmulas segurava um rosário de madrepérola branca presenteada pelo Bispo da cidade, decepcionada por saber do que o filho se tornou.
Eu era adolescente e via a tia Júlia já idosa, sentada em sua cadeira de balanço em frente ao rádio escutando a voz Mariana e rezando o terço, na parede uma foto de Carmelito no semiário vestido de noviço. E lembro dele meio gordo, careca, bêbado deitado no seu quarto de solteiro, já com seus 40 anos ou mais e sempre ouvia lá em casa que alguém encontrava o pobre Carmelito jogado pela sarjeta das ruas completamente embriagado.
Nunca se casou, nunca vi com alguma namorada. Mas, soube que o motivo de sua expulsão no seminário foi que ele estava com outro noviço aos beijos atrás da sacristia de uma das capelas. Carmelito era homossexual e essa situação ainda é proibida na doutrina cristã.
Tia Júlia tentara esconder essa verdade da família, sempre dizia que havia outros motivos. Mas meu pai, tio de Carmelito, o encontrava nos bares bebendo e acompanhado por gays e lésbicas. Era os anos 80, era outros tempos. Creio que o alcoolismo de meu primo fora o efeito da desastrosa vida que tiraram dele, fazendo ser uma pessoa amarga, triste, distante.
Ele nunca entrou mais numa igreja. Sempre que via aquela foto quando era noviço tinha vontade de destruí-la.
Tia Júlia envelheceu e enterrou seus dois filhos. Lanarose retornou para a casa materna e já estava em estado avançado de câncer de mama e Carmelito anos depois morreu de cirrose. Tia Júlia nunca teve a sorte de ser avó. Seus filhos nunca se casaram.
E quando eu estava de férias na capital recebi a mensagem de que tia Júlia havia falecido aos 96 anos. Não morreu de velhice apenas, morreu de tristeza, saudades e de amargura. Deixou o que tinha para um sobrinho que cuidava de suas coisas por muitos anos e merecidamente ele recebeu o que tanto almejava.
Encontraram dentro de uma de suas bíblias um pequeno papel, pedaço de algum bilhete rasgado e estava escrito: “ Meus filhos, perdoem sua mãe”.