Na Marca Do Pênalti
Eu poderia resumir essa história dizendo que se trata apenas daqueles eternos segundos em que um jogador de futebol é atormentado por uma enxurrada de sentimentos antes da cobrança de um pênalti. Você sabe, a noção de tempo é uma experiência muito particular. Aliás, verdade seja dita, um pênalti duvidoso, que seria ainda mais questionado se, algumas semanas depois do jogo, percebessem na conta bancária da esposa do árbitro um misterioso depósito de 1.700 reais em dinheiro.
Tarcísio, apelidado Tatá pelos amigos, estava ansioso com o jogo que decidiria o campeonato. Passara a semana inteira incomodado com a pressão, exercida sobretudo pelos torcedores mais antigos, que rezavam pela bíblia do Deus no céu e Vasquinho na Terra. Sim, apesar do time ser da vila Nhocu-né da zona leste em São Paulo, chamava-se Vasco da Gama, apelidado carinhosamente Vasquinho da Nhoco pelos moradores . E coincidências do destino, o troféu e o prêmio de vinte mil reais seriam disputados com um certo Flamengo, lá da vila São José, da zona norte. Se bem que esse, pelo que me consta, não era tratado como Flamenguinho.
Os torcedores, por assim dizer mais puristas, consideravam Tarcísio um jogador mediano. Nunca chegaria aos pés do Naldo, seu pai, e muito menos do lendário Tuca, seu avô. Jogadores diferenciados que muito colaboraram para história gloriosa do Vasquinho.
Os jogadores receberiam um prêmio de R$ 1.500,00 (na média) pela conquista do título. Valor que seria muito bem vindo para o Tarcísio naquele mês. A mulher desempregada e queixosa, ele se equilibrando na corda bamba do salário de repositor num mega atacadista da região.
- Tarcísio tem um chute forte e preciso... E o que mais? - questionava o seu Maurílio na barbearia do bairro.
Apesar de um ou outro sair em defesa de Tarcísio, a maioria concordava que ele era muito limitado tecnicamente e que à moda de um caolho em Terra de cego, era a opção menos pior que tinham.
- Mas um ponta de lança? Finalizador tem que ser mais técnico... Mais cabeça do que força! Saber prender a bola, fazer a parede, cabecear bem... - ele completava.
- Ó lá... Quem ainda diz "ponta de lança"? - caçoavam os mais novos.
- Eu digo, eu digo! - ralhava o seu Maurílio tornando o estabelecimento um verdadeiro balaio de gatos.
E nessa toada a vila ia se inflamando para a decisão: faixas de incentivo ao redor do campo (a decisão seria ali, em casa) pinturas nos muros; a molecada parando um ou outro jogador na rua, ou no bar do Toninho, querendo discutir táticas, dando pitacos sobre os pontos fracos do time... Ou entoando côros de ordem nas brincadeiras: Saiam do caminho, lá vem Vasquinho! Saiam do caminho, lá vem Vasquinho!
Tarcísio se via dentro desse caldeirão cada vez mais quente, onde todos pareciam cozinhá-lo sem piedade: o orçamento apertado, a esposa que só reclamava, os torcedores mais fanáticos, a história do clube bem como sua importância para a comunidade; a enorme sombra da responsabilidade produzida pelo pai e pelo avô...
As imagens da semifinal, onde a pressão da torcida local se fez mais do que exagerada, ainda o visitavam em pesadelos recorrentes. Outro pênalti - não aquele a que me referi no começo dessa história - colocara o Vasco na final, não custando, por pouco a vida do jogador adversário que o desperdiçou.
De forma que, sem mais delongas, é conveniente resumir boa parte do famigerado domingo da decisão: dois jogadores expulsos no Vasco, um no Flamengo. O jogo que seguia empatado em um a um, já no final da prorrogação, e o pênalti - esse sim, o pênalti que coroava a angústia do atacante e ao qual caberia facilmente a alcunha "sobrenatural de Almeida", criada por Nelson Rodrigues; ou seria pelo árbitro da partida?
Tatá colocou a bola na marca quase imperceptível. A chuva da noite anterior tivera muita influência na péssima qualidade do gramado, que por si só, já era um pasto. Ali, na chamada grande área, a lama imperava. O goleiro, Torres de batismo, mas torre para os colegas, se aproximou do centroavante, mesmo sob ameaças do juiz. Com o dedo indicador, provocou:
- Entre aquela (apontou a baliza esquerda) e aquela (apontou a direita) não passa nada!
Tarcísio permaneceu concentrado, um filme passava em sua cabeça. Nosso protagonista - mesmo sem suspeitar de qualquer premiação cinematográfica - estava entre o Óscar de melhor atuação ou o prêmio Framboesa de Ouro. O juiz apitou; um apito muito distante, como se num sonho ou em câmera lenta. O artilheiro deu um longo suspiro, e naturalmente olhou para a arquibancada onde expremida a torcida adversária o ameaçava de morte (algo um tanto corriqueiro na várzea). Atrás do gol do Flamengo, outra parte da sua torcida, o pessoal da batucada, entre bumbos, repeniques e taróis, e dois senhores, sentados quietinhos, apreensivos. Um, alto, de paletó e chapéu de feltro; o outro, um pouco mais gordinho, de camisa social listrada, desabotoada até o peito. Não podia ser... Eles pareciam ... Não, impossível! Baixou a cabeça e bateu a ponta da chuteira esquerda no barro. Quando levantou a cabeça e olhou novamente para aqueles torcedores, apenas os sambistas estavam lá. O arbítrio fez um sinal, do tipo "vai ou racha?". A torcida adversária vaiando o mais alto possível; na da casa, aqueles que tinham coragem para olhar, tentando um tímido incentivo. Havia gente quase infartando, naquela devoção digna das escolas de samba. Tatá encarou o goleiro:
- Não passa, é? Aposte! - pensou. Mudou de ideia, ambidestro que era, e decidiu usar a perna direita. Seria um chute forte e rasteiro, aberto, à esquerda do goleiro. Só que... Escorregou. O pé de apoio escorregou a menos de um passo da bola. De maneira que o chute saiu muito forte, um verdadeiro canhão, como planejara, mas bem no centro do gol, de onde o goleiro, surpreendido pela troca dos pés, não saiu, totalmente paralisado. O Sobrenatural de Almeida, lembra? Foi assim que a bola o atingiu em cheio, na boca do estômago. O Torres esbugalhou os olhos e arreganhou a boca; e em três segundos, com o estádio tomado por um silêncio sepulcral, a torre desmoronou. Caiu para dentro do gol, abraçado à bola. Gol! Estranho, mas, mesmo assim, Gol! Uma cena tragicômica, que só encerrou sua gravidade na entrada dos paramédicos e na reanimação do goleiro. Felizmente, tudo ficou bem, exceto para o Flamenguinho, que perdeu o campeonato para o rival.
- Pênalti bem batido é aquele em que a bola entra, não é? - argumentavam com o seu Maurílio.
Com a premiação, Tarcísio reequilibrou seu orçamento e caiu nas graças dos torcedores, mesmo afirmando que não voltaria a jogar. Tinha arranjado um segundo emprego e deixaria o seu legado para as novas gerações. Na sala de troféus, uma fotografia emoldurada onde Tuca abraçava o filho Naldo, comemorando uma conquista, foi derrubada por uma bola. Coisa das crianças, brincando ali dentro, onde não deveriam. Ao restituí-la à parede, em alguns segundos de contemplação, Tarcísio nutria um sentimento de gratidão pelos antepassados; mas a verdade é que não demorou se perceber envergonhado, diante daqueles olhos que pareciam condená-lo por um pênalti tão mal batido.