Eu tenho medo
Detrás da escrivaninha, o censor bateu o cigarro no cinzeiro antes de se dignar a indicar a cadeira vazia à frente dele.
- Do que o senhor tem medo? - Indagou então, à queima-roupa.
O interpelado encarou o censor com curiosidade.
- Tenho medo de muitas coisas... eu deveria ter medo por ter sido chamado aqui?
O censor deu de ombros.
- O senhor me diz. Cometeu algum crime?
O interpelado ergueu os sobrolhos.
- Ao que me lembre, nenhum. Do que estou sendo acusado?
O censor apanhou uma folha datilografada sobre a escrivaninha, e franziu a testa, como se estivesse tendo dificuldades em ler o conteúdo à luz da lâmpada amarelada que pairava acima deles. Finalmente, virou-a para que ele a pudesse ver.
- Escreveu isso?
Teve que inclinar o corpo para a frente, para examinar o documento. Balançou a cabeça afirmativamente.
- Sim, o texto é meu.
- É uma poesia?
Ele fez um gesto negativo.
- É uma letra de música.
- Medo - disse o censor. - Você escreveu essa palavra 36 vezes no texto.
Ele balançou a cabeça.
- É pertinente para o tema da letra. Falo do medo em várias situações.
O censor apanhou o cigarro e deu uma tragada antes de responder, com uma baforada para o lado:
- O senhor não fala apenas do medo em situações, como afirma, mas em lugares. Lugares bem específicos. Capitais de estado, cidades importantes... está querendo insinuar que vivemos uma situação de insegurança generalizada?
Ele recostou-se na cadeira, mãos no colo.
- Penso que nunca houve tanta segurança quanto agora. E ela está por toda parte.
Uma expressão de triunfo surgiu no rosto do censor.
- Então, por que o medo?
Ele parou para pensar um momento, numa resposta que soasse convincente.
- Nosso país é grande. Para ir de um estado a outro, é preciso viajar de avião. E eu tenho fobia de avião.
Agora, o censor pareceu estar decepcionado.
- Não é uma crítica ao regime? Às pessoas que se exilaram e partiram para outros países?
Ele abriu as mãos.
- Em alguma parte da letra está escrito que tenho medo de Londres, Paris, Bagdá?
- Não - admitiu o censor.
- Pois então - ele abriu as mãos.
O censor balançou vagarosamente a cabeça e deu outra tragada no cigarro.
- Então, o senhor escreveu uma letra sobre aerofobia?
- Medo de avião - respondeu ele. - Sim, eu sofro deste mal.
O censor apanhou um carimbo de um suporte, e pressionou-o contra a folha datilografada. Depois, garatujou algo por cima.
- Muito bem. Vou aceitar suas explicações desta vez... e tenho uma recomendação a lhe fazer.
- Pois não - respondeu de forma polida, aguardando por um sermão edificante.
- Um gole de conhaque - disse o censor, entrelaçando os dedos sobre a escrivaninha. - Pode resolver o seu problema. Eu mesmo, sempre levo minha frasqueira quando viajo de avião.
- Um gole de conhaque - repetiu ele, um tanto surpreso.
- Não precisa agradecer - declarou o censor, antes de dar a entrevista por encerrada com um aceno de mão.
- [1º-04-2024]