Iaiá e o menino
Maria Joaquina era rezadeira. Preta com seu cachimbo sempre à boca, mais velha que as serras, sabia de coisa do mundo mais que qualquer um. Lenço na cabeça corriqueiro e véu de viúva quando ia à missa. Rezava para os santos na igreja e para todos os encantados no seu terreiro. Quem não conhecia a velha em Serrolândia?
Benquista, nonagenária na década de setenta do século vinte, era a iaiá de todos os que tinham avó e adotava os que não tinham. Assim, adotou tantas netas e tantos netos de todas as cores, brancos, loiras, gazos, negras, morenos. Cansava a boca de tanto abençoar quando passava para a missa e de volta da igreja, na rua das Flores, na Avenida 06 de maio e na Praça Manoel Roque Rodrigues, onde fica a Igreja de São Roque.
- Sua bênção, iaiá!
- Deus lhe abençoe, meu filho.
- Sua bênção, iaiá!
- Deus lhe abençoe, minha filha.
Quando havia muitos no mesmo lugar pedindo-lhe a bênção estendia a mão e dizia:
- Deus abençoe a todos.
E na igreja rezava por todos, podia até se atrapalhar com os nomes, porém lembrava direitim de todos os rostos e sabia de quem eram filhas e filhos e de quem eram netas e netos, mesmo que seus avós já tivessem morrido. Por vezes se lembrava até dos bisavós, de uma boa parte da raiz deles, pois gente é como planta, vem da terra, se puxar o novelo chega até ao barro que os gerou.
Diziam que ela tinha um terreiro, esse terreiro era uma enorme chácara, quase uma fazenda e lá tinha todas as plantas medicinais que se pudesse pensar para tudo que servisse para as rezas, as doenças costumeiras, no entanto, mais precisamente as doenças dos ramos: quebranto, mau olhado, espinhela caída, feitiço, coisa feita, amarração e tudo quanto é coisa de maldade.
Ninguém pedisse que rezasse para fazer o mal para outra pessoa. Isso não fazia, se fizesse trazia vento da peste e tudo que se planta colhe. Nos arredores da sua casa as ervas cheirosas perfumavam o ambiente. Ainda que não fosse para ser rezada ou rezado por ela, as pessoas ia lá prosear, ouvir conselhos, ouvir casos, buscar saberes.
Explicava que não era mãe de santo, não fora iniciada nos mistérios, frequentava o terreiro de mãe Aninha como parte de suas filhas de santo. Havia recebido o dom de rezar e curar com as ervas. Disso sabia a mais não poder. Cada erva para cada doença ou mal qualquer. Só não curava o que Deus não queria.
As festas na sua casa não eram nos dias aprazados como no terreiro de mãe Aninha. Elas ocorriam espontaneamente quando alguém levava uma viola, uma sanfona, um pandeiro, uma zabumba. Aí era xote, xaxado, samba, jongo, umbigada, arrasta-pé, forró, gemedeira e até muitas músicas novas. Como lá tinha comida farta, bebidas não faltavam. Por muito respeito à iaiá, não saía uma briga sequer. Brincavam até amanhecer na mais perfeita paz.
Certa feita, Liana deu cor de si de seu filho febril, molinho, choroso. Procurou a ajuda da sua mãe para tentar descobrir o que tinha o menino e D. Zeferina não conseguiu saber o que tinha. Cada vez o menino piorava. Nessa aflição, iaiá Maria Joaquina passou pela rua para ir à missa.
- Bênção, iaiá.
- Deus lhe abençoe, minha filha.
E Maria Joaquina já sentiu logo o ambiente pesado. Perguntou:
- O que tem o menino?
- Não sei, iaiá. Tá com febre, molinho e só chora.
- Xente, minha filha. Vou para a missa e na volta leve ele para eu rezar no meu terreiro.
Liana e D. Zeferina nem foram para a missa também e de pronto se prepararam para acompanhar Maria Joaquina para rezar o menino.
Depois da missa, ao chegarem no terreiro Maria Joaquina disse:
- Primeiro vou fazer um chá de sabugueiro porque o que ele tem preso sai para fora.
Depois de darem o chá para o menino, arrumou a preta velha as folhas para rezar o curumim:
- Te rezo, te curo, de todo mal te esconjuro. Sai mal de quebranto, sai mal olhado, sai tudo que se encostou nesse corpo de Deus. Vem comigo anjos do céu, arcanjos e serafins do exército de Deus. Ave Maria mãe de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo. São Roque nos livra da peste...
E com muitos outros dizeres que só ela se lembrava.
O menino começou a olhar para as flores, começou a acompanhar os movimentos de Maria Joaquina, seus braços, seus movimentos corporais, seu balbuciar rezando e de repente desatou a rir e começou a rir desbragadamente. A mãe quis ralhar com ele, ainda bem pequeno para entender o que a mãe dizia. Maria Joaquina lhe impediu e disse:
- Deixe ele rir o quanto quiser. Ele agora está curado. O que ele tinha era riso preso.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 25 de janeiro de 2023.