SÃO PAULO, JANEIRO, 1976

Vantuir morreu por dentro após receber um não da família de Lucinalva. Ele era um jovem atrevido, não aceitava que ficasse por isso mesmo! Os dois se gostavam desde os tempos de escola. Vantuir era aquela figura largada, não valorizava o que os pais faziam por ele: uma boa educação, viagens, cursos... Não tinha nada que ele quisesse que não chegasse em sua mão. Mas a "porta larga" da facilidade lhe apresentou um abismo. Ele caiu no egoísmo. Não admitia ser contrariado e passou a tomar atitudes ilícitas para conseguir seus objetivos. Abandonou a faculdade e fez amizade com uma turma barra pesada. Na frente de Lucinalva ele era romântico, trazia um olhar carinhoso ( o cara -de-pau sabia a manha, era conquistador nato! )

Lucinalva, apesar de ser maior, não tinha vivência. Só enxergava com os olhos da paixão. Viajava no mundo romântico das fotonovelas. Na escola, na hora do intervalo, fazia planos com Vantuir. Queria uma família grande, ser mãe de quatro filhos. Lucinalva era de fato sonhadora. Era filha de um industrial com uma renomada artista plástica. A jovem nasceu e foi bem criada no bairro dos Jardins. Já Vantuir veio de uma família que foi galgando a vitória através de muito suor e muita luta no ramo do comércio.

Seu Osimar tinha uma disposição de leão: plantava hortaliças e muitas frutas no seu sítio. Aos catorze anos , trabalhando numa quitanda, juntou dinheiro e comprou um terreno. Do terreno passou para a chácara. A vida dele era de muita labuta. Acordava de madrugada e já colocava as mercadorias ( caixas de frutas, legumes e verduras) na camionete e já ia para a feira.

Foi lá que conheceu Dulce, mulher batalhadora. Os dois combinavam. Muito trabalho, muita garra, dinheiro entrando e saindo. Osimar e Dulce começaram a união ( no amor e nos negócios). Osimar viu Dulce e pensou: É com essa baixinha guerreira que irei me unir!

No ano de 1956, num domingo de Agosto bastante chuvoso, eles se casam. O disse-me-disse dos convidados, que cochichavam uns com os outros: Hum.. sei não... Casamento em dia de chuva? Isso é mau presságio. Os "pombinhos" não terão o céu, vão sofrer...

De fato, os dois passaram por muita provação, muitos obstáculos... A começar já na lua-de-mel: a chuva caiu com força nos dias seguidos. Vantuir pegou uma forte gripe que não se aguentava em pé. Ficou assim por muitos dias. Dulce cuidou da saúde do recém -marido. Também cuidou do comércio. Em agradecimento a tanto carinho e dedicação, Osimar fez um filho nela. Em 1957, nasce Vantuir.

Que criança linda! Bem amada e cuidada pelos pais!

Vantuir cresceu num lar confortável, sem nenhuma privação. Vantuir foi chegando na fase da adolescência e só ia para o colégio para paquerar as belas estudantes e até as professoras.

Um jovem dissimulado. Era assim Vantuir. Na frente dos pais, cara de bom moço, longe... Só Deus sabia o que ele aprontava.

Vantuir rasgava os boletins e as cartas de aviso para os pais comparecerem no colégio.

O mistério que todos os estudantes se perguntavam é o fato de ele ainda não ter sido expulso.

Vantuir era rebelde, para ele não havia limites. Foi nessa fase do fim da adolescência que ele conheceu um pessoal mal-falado no bairro. Jovens arruaceiros que cometiam todas as atrocidades que se possa imaginar.

Chegou aos ouvidos do casal Osimar e Dulce que seu filho Vantuir estava com essa patota.

Eles não queriam acreditar e infelizmente só acreditaram após um acontecimento triste para todo pai e mãe. Um certo dia, Vantuir mentiu para os pais dizendo que iria estudar na casa de amigos para a prova. Mas na verdade ele estava envolvido num crime, um assalto ao banco, um assalto que foi mal-sucedido graças ao trabalho dos policiais que "largaram o aço" sem dó nem piedade nos delinquentes. Vantuir escapou, levou um tiro de raspão no antebraço.

Em casa, ele ouviu poucas e boas dos pais. Principalmente da mãe, pois o pai era coração mole.

Dulce chegou a sugerir que cortasse os privilégios do jovem rebelde, mas Osimar não concordou. Não queria ver o filho passando sufoco, pois só ele sabe o quanto sofreu trabalhando, virando a madrugada, cochilando em cima de caixotes, muitas vezes levando chuva. Mas Seu Osimar agia muito errado, e todo pai que age assim com os filhos erra. A vida é um desafio, não existe facilidade. Não existe mesmo!

Vantuir passou pelo momento mais difícil de sua vida: a perda do pai, Seu Osimar. Ele teve um mal súbito. Vantuir chorou abraçado ao corpo do pai, como se pudesse ressuscitá-lo.

Mas a vida não é só feita de tristeza, e Vantuir viu no bistrô que costumava frequentar, uma linda jovem e lembrou logo dela. Como poderia esquecer de Lucinalva? Amiguinha de infância da Escola Primária. Os dois perderam o contato quando tinham dez anos, pois a família de Lucinalva passou tempo morando nos Estados Unidos. Vantuir sentiu seu coração bater forte, percebeu que ela continuava com o mesmo rostinho angelical. Os dois conversaram, ela também se lembrou dele. Vantuir desabafou, falou da triste perda sofrida. Lucinalva o consolou. Ela falou também de sua vida, disse que estava cursando a faculdade de Letras. No fim da conversa rolou um beijo, aquele beijo foi um remédio, uma paz no coração de Vantuir. Tanto que ele deixou a sua velha vida de mulherengo, de largado. Passou a pensar e viver a vida como um homem de verdade. Dulce já não estava dando regalias ao filho, e o fato de ter encontrado a mulher de sua vida foi um incentivo a mais para procurar um trabalho digno, ganhar seu próprio dinheiro para ser o provedor do lar.

Vantuir viajava nos sonhos , o casamento com Lucinalva, os filhos, dormir e acordar ao lado daquela mulher maravilhosa....

Tudo muito lindo!

Nada poderia fugir dos planos... Mas infelizmente, aconteceu o inesperado. Se bem que já era esperado, só Vantuir não enxergava isso. O rosto dele estava marcado desde o dia do crime que não chegou a ser concretizado.

Vantuir foi pedir a mão de Lucinalva numa tarde de Verão. Não esperou passar a chuva, tal era a sua pressa em receber aquele sim. Vantuir chegou todo molhado, de jaqueta, protegendo a cabeça da chuva.

Um rosto esperançoso. Lucinalva estava no quarto, lendo as fotonovelas e também estudando para a prova.

Seu Washington, pai de Lucinalva, reconheceu Vantuir, mas não aquela criança inocente, amiguinho de sua filha. Reconheceu pela foto no noticiário policial.

O homem esbravejou, um criminoso querendo entrar na família se casando com sua filha. "Some daqui seu vagabundo! Com minha filha você não se casa! "

Lucinalva saiu do quarto e falou que Vantuir era o homem de sua vida e que nada iria impedir o casamento deles.

Os pais de Lucinalva não foram tolerantes, não passaram a mão na cabeça, como fizeram os pais de Vantuir.

" Você quer mesmo casar com ele? É isso que você quer para a sua vida, Lucinalva? Então você não é mais nossa filha. Vá viver com ele! "

Então Vantuir e Lucinalva passaram a morar nas ruas de São Paulo.

As lágrimas no rosto dos dois e a chuva. A cidade de São Paulo chora a enchente de Janeiro de 1976.

Vantuir leva Lucinalva para debaixo de uma marquise.

A chuva não para. Um verdadeiro dilúvio, o fim do mundo.

Vantuir está próximo do banco. A polícia passa e reconhece o jovem, " O que você está fazendo aí? Você está pedindo né? "

Vantuir se assustou, não teve nem tempo de se explicar, partiu dessa para melhor.

Lucinalva assiste a triste cena.

Ela chora e morre sendo arrastada pelas águas pluviais.

Janeiro de 1976, a cidade de São Paulo chorou.

( Autor: Poeta Alexsandre Soares de Lima)

Poeta Alexsandre Soares
Enviado por Poeta Alexsandre Soares em 19/01/2024
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