O Paletó

Até outro dia mesmo o dinheiro, papel moeda, também chamado dinheiro em espécie era bem mais utilizado do que nos dias atuais. Hoje existem diversos outros meios de pagamento que dispensam o dinheiro: pode-se pagar com cartões de débito ou crédito, transferências, PIX, e por aí vai.

Mas, dos anos 1990 para trás, era muito comum o cidadão assalariado receber o seu pagamento em espécie, geralmente todo dia 10 do mês (o que era uma festa para ladrões). Algumas vezes esse pagamento era realizado na própria empresa empregadora, outras em agências bancárias. O trabalhador geralmente pegava aquela dinheirama e corria guardá-lo em casa. Mais comum ainda, era que fossem usados os bolsos do único paletó existente na casa, para "esconder" o salário. E foi precisamente em novembro de 1970 que isso aconteceu.

Alzira foi bater o capacho na janela e viu, lá longe, o Mário descendo a ladeira com o paletó nas costas. Virou-se para o marido, Cassiano, que estava sentado no sofá resolvendo palavras cruzadas e coçando, distraidamente, os vãos dos dedos do pé:

- Te esconde, rápido, que o Marinho lá vem vindo ali te pedir dinheiro emprestado!

- Vem vindo, é? - perguntou Cassiano sem querer acreditar.

- É batata! Tá trazendo o paletó. Aquele...

O paletó era um sinal indubitável de necessidade entre a família. O irmão mais novo, Natanael, o havia ganhado de um ex-patrão, francês. Era uma peça fina, de bom gosto, bom corte, tecido de qualidade e cor sóbria. Apenas o nome da marca, também francesa, permanecia um mistério. Ninguém nunca arriscou sua pronúncia, que mais se parecia uma brincadeira de trava-língua.

Os irmãos, numerosos, eram nove no total: cinco mulheres e quatro homens. Os rapazes vieram de Minas para São Paulo, com "uma mão na frente e outra atrás" como costumavam dizer. As irmãs permaneceram na cidade natal; três delas casadas. A caçula, Josefa, que ainda era solteira, morava com os pais. Entre os homens apenas Cassiano era casado.

Sobre o paletó, aconteceu que um dia Natanael se viu na maior pindaíba. Desempregado, os armários vazios, aluguel atrasado e sem dinheiro até para tomar condução. Sem ter mais de onde tirar dinheiro, olhou demorado para o paletó pendurado num prego atrás da porta. Ainda que doesse o seu coração, sabia que os irmãos, assim como ele, eram encantados pela peça. E eram todos muito parecidos fisicamente. Altura, cintura, tronco. Tudo.

Natanael se achava estiloso dentro do danado. Conquistava qualquer mulher vestido nele. Se colocasse uns óculos escuros então... mas sem dinheiro...

A contra gosto rumou para a casa mais próxima, a de Jorge. Pegaria uns vinténs emprestados e daria o paletó como garantia.

- Meu irmão, eu emprestaria umas moedas a você com o maior gosto! É só que o salário já está atrasado duas semanas. O povo tá ameaçando parar a obra se o engenheiro não resolver... E eu estou com tanto compromisso atrasado que vão me "comer" nos juros. Não posso me arriscar, senão te ajudaria... De coração! - disse Jorge, pesaroso por não poder pôr as mãos naquele paletó encantado.

Natanael tentou o Cassiano, mas ele também citou um período de "vacas magras". Finalmente, Mário que não estava "nadando em dinheiro", mas tinha recebido o pagamento naquele dia, emprestou a quantia e ficou com o paletó. Sabe como é pobre, né? Pobre perde a noção de suas restrições orçamentárias no dia do pagamento.

Jorge, Natanael, Mário e Cassiano. Nessa ordem, ou alternados. Dali pra frente, o paletó passaria de mão em mão sempre que um deles precisava de dinheiro; e já iam reiniciando, nessa empreitada, a sexta ou sétima volta no rali da família.

Alzira foi até à porta, assuntar o cunhado:

- Diga aí Marinho!

- O meu irmão não está?

- Tá não... É o quê? Só com ele? - se fez de besta.

Cassiano, abaixado atrás da cama, escutava atentamente.

- Sabe o que é, Alzira, tô num apuro danado. "Matando cachorro a grito", mesmo! Queria ver se o Cassiano não me comprava o paletó...

- Essa "inconha braba" desse paletó de novo, Marinho?

- Deixe de caso, cunhada. Cê sabe que eu adoro esse paletó... Foi feito pra mim... As coisas melhorando, eu venho trazer o dinheiro e pego ele de volta!

- Não! Ele não tá não! E eu já falei pra ele que se faltar comida aqui em casa com esse diabo desse paletó no guarda-roupa ele vai ter que comer paletó! Você sabe, tem hora que nenhum "doceis" tem dinheiro e a gente fica com esse troço atravancando feito um elefante manco.

Mário deu um longo suspiro, olhou pro céu que já escurecia, e pro chão. Teria que voltar pra casa sem uma moeda no bolso. Os outros dois irmãos também (e como sempre) estavam passando por dificuldades. Parecia encerrada a penhora do paletó entre eles.

Cassiano, ouvindo como a conversa terminara, ficou chateado com o silêncio do irmão. Levantando-se, deu um salto até a janela e o viu pelas costas; os passos arrastados da derrota. Deixou o quarto num galope, passando como um raio pela mulher que ainda estava na porta.

- Marinho! Marinho! - gritou.

- Eu sabia que cê tava escondido seu filho d'uma mãe! - sorriu o irmão - Cê vai me ajudar, ou não? Cê sabe que eu pago, eu sempre volto, uai!

- Vou não. A Alzira tá uma onça com essa história. Braba que só. Tô de mãos atadas! - cochichou Cassiano.

Mário baixou os olhos novamente, inconsolável. Permaneceram em silêncio por alguns instantes. Até que Cassiano teve uma ideia.

- Mas vem cá, vamos dar uma chegadinha ali no campinho. O Túlio tá sempre por lá, jogando pelada. Ele me deve uns favores e tem mais ou menos o nosso corpo...

- Vou ali com o Marinho! Já volto!

- É ocê que sabe, uai! - ela respondeu num conformismo ameaçador.

A tramóia até que deu certo; não o Túlio, que era liso feito um sabonete, mas um colega de bar (que já estava com "muitas" na cabeça) topou emprestar o dinheiro pegando o paletó como garantia. Sim, lá do campinho eles fizeram uma verdadeira Via Sacra, com o paletó à tira-colo. Um calor danado, aliás. Um tal de Miúdo, que era miudinho mesmo, topou a transação e enfrentou a gozação dos amigos, um bando de invejosos, por algumas semanas.

- Eita !!! "O defunto era maior, é? "

Olha meus amigos , verdade seja dita, é que dessa feita em diante o paletó ganhou as graças da vila inteira e começou a dar uma volta beeeem mais longa, passando por infinitas mãos antes de retornar à família.

E essa é a história, mais ou menos real, dos irmãos mineiros que chegaram em São Paulo nos meados dos anos 70. Àquela época, a construção civil estava a todo vapor, e a metrópole importava mão de obra do Brasil inteiro. Sobretudo das regiões norte e nordeste. Nesse tempo - de um país em construção e muitos desafios - pobre era pobre mesmo. De "marré, marré, marré", como dita uma quadrinha infantil. Não possuía carro, geladeira ou telefone. Não raro, não tinha nem sapatos. Mas eu tenho a sensação de que eram pessoas mais felizes, na pureza da fé e esperança num futuro melhor. Na confiança em valores éticos e de fraternidade hoje mais raros. E no pragmatismo de transformar, diuturnamente um limão numa limonada.

GEORGES
Enviado por GEORGES em 18/01/2024
Reeditado em 20/04/2024
Código do texto: T7979140
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.