Tá dano
Domingo à tarde, o estádio do PEC, no Morro do Lavrado, está cheio. Jogam Caveira e PEC. Caveira é o São Francisco Futebol Clube, o alviverde. O Caveira, cuja sede e estádio estão atrás do Cemitério, tem torcedores fanáticos e, como qualquer torcida, alguns brigões. O PEC é o Pitangui Esporte Clube, uniforme alvinegro. A rivalidade é grande, talvez até maior que Pitangui e Clube Atlético Pitanguiense, o clássico da cidade, pois o Caveira é resultado de uma cisão do PEC: quase briga de família.
Neném torce pelo PEC, já está alterado, mostra que tomou um pouco muito naquele domingo. Se ganha o seu time, não chega em casa antes de terça-feira. E uma de suas reações é provocar o Cacá, parente seu, bom de surdo e capoeira, componente da charanga do Caveira, conhecido pelo pavio curto.
E o Neném inaugura a sessão, vai direto na veia: - Sua muié tá dano!!!
Cacá finge que não escuta, mas - sim - escuta e se irrita aos pouquinhos. A barulheira é muita, ainda mais pra ele que bate no surdo. Ele também se faz de surdo, mas Neném quer confusão. Não para. Na barraquinha do lado, pega mais uma pinga, joga pra dentro, mais insulto:
- Sua muié tá dano.
Convenhamos, a paciência tem limites. Depois de quase uma hora só escutando aquilo, o Cacá não aguenta, larga o surdo e quer fazer o Neném ficar mudo. Magrinho, rápido, golpe de capoeira, num instante, Cacá derruba o insultador e o põe com o pescoço debaixo do seu pé, um frango pronto pro holocausto:
- O que que minha muié tá fazeno?
- Tá dano, responde o Neném.
- O que que minha muié tá fazeno?
A cada interrogação, a resposta do outro sai mais fraca, à medida que Cacá aperta o pé no pescoço do Neném.
- T... t... da... no!!!
Mas Neném não emudece assim fácil. Vai ficando asfixiado, a voz fraquinha cada vez mais fraca, quase um sussurro. O interrogatório segue em frente:
- O que que minha muié tá fazeno?
- T ... t... aaa dannn... uuuu
Ia morrer ali, mas não ia parar de espalhar o boato e manchar a reputação do Cacá. E o caminho era esse, se não fosse a turma do deixa-disso. Neném foi retirado da sola do pé do Cacá, ainda repetindo o refrão, tipo por inércia:
- Tá dano... tá dano... tá dano...
Cacá, dentro dum cordão de isolamento, furioso, queria acabar o serviço. Mas era muita gente em volta dele, teve de se conformar, enquanto Neném era rebocado pelos conhecidos, cara vermelha, cuspindo pra todo lado:
- Tá dano... tá ... dddannno ...
Neném foi-se embora desse mundo alguns poucos anos depois, nos braços de uma dúzia de anjos cachaceiros. Sorte do Cacá, que poderia ter antecipado a partida definitiva do Neném e ficado com esse remorso.