O MALACABADO VAMPIRO DA TRONSENVÂNIA

 

   O mestre Francisco, depois de enrolar bem o fumo de corda, passeou as vistas pelo aconchego da cozinha a fim de assuntar a disposição dos amigos. Eles estavam distraídos, contudo esperavam outra história de assombramento. O mestre levou o cigarro de palha à boca e deu uma longa tragada. Depois, como era de costume principiar os seus causos, virou-se na direção de Antônia, amancebada sua de há muito, e lhe perguntou:

 

   — Tonha, vosmecê ainda tem guardado no velho baú os dentões daquele chupador de sangue dos diabos que veio lá da Tronsenvânia?

 

   Assim que fez a pergunta à companheira, o mestre Francisco espiou satisfeito à agitação das visitas. O cego Idalino arrastou o banquinho mais à frente. O compadre Argemiro deu novamente parte de si, deixando os pensamentos distantes na intenção de voltar à cozinha. A moça Dandara, filha de Argemiro, abandonou a janela enluarada e veio sentar-se junto ao pai. Todos eles prontos a fim de lhe dar ouvidos de atenção.

 

   — Chico, o nome do lugar não é Tronsenvânia, seu aluado. É Trensenvânia! – informou Dona Antônia, tomando assento perto do marido.

 

   — O amigo tá falando de vampiro, é? – perguntou o compadre a tirar baforadas nervosas do cachimbo.

 

   — Cruz credo, o padrinho só se mete em confusão com coisa-ruim! Aí danou-se!

 

   — De fato, vampiro é bicho perigoso. O cabra tem que ter muito tino pra não acabar morto – refletiu o cego e, sentado como estava, de queixo apoiado nas costas das mãos pousadas na luva da bengala, inclinou-se à frente atento à narrativa do mestre. – E como é que foi o sucedido, seu Chico?

 

   — Pois olhem, meus amigos, este forrobodó dos infernos ocorreu nos meus tempos de mocidade quando eu ainda tava de chamego com Tonha lá pras bandas de Itambé. Na ocasião derramou-se um boato nervoso na cidade por conta de caboclo morrendo sem um pingo de sangue no corpo em meio à caatinga. Ora, naquele tempo não se sabia que existiam estas criaturas do demo. Por isso, ninguém botou reparo à mortandade esquisita bem quando foi parar na região um estrangeiro alto, estranho, branco igual papel, que só era visto gastando sola de sapato naquelas estradas à noite. O tal era podre de rico, feito o falecido Coronel Idelfonso e se chamava Conde Dráqui, vindo lá da Tronsenvânia.

 

   — Trensenvânia, Chico!

 

   — E como é que o compadre foi topar de frente com o lazarento?

 

   — Ah, foi por causa de Tonha.

 

   — Por causa d’eu? Dessa parte eu não me alembro, não!

 

   — Claro que não. Como haveria de lembrar? Quando me meti naquele arranca-rabo, vosmecê dormia tanto que inté fazia gosto.

 

   — Como assim, padrinho? Vá direto ao ponto, não fica de mutreta.

 

   — Pois muito bem. A família de Tonha morava em terra mais apartada da cidade. Eu tava enrabichado por esta mulher e numa certa noite bebi uns tragos no boteco do velho Vadico. Homem quando enche a cara de cachaça, mesmo cabra macho feito eu, fica mais corajoso ainda, visse? Bateu dentro dos meus pensamentos a ideia de ir falar com os pais de Tonha, de modo a pedir a mão dela em namoro.

 

   — Que coisa mais linda, padrinho. Atitude de muito respeito.

 

   O mestre Chico expressou sorriso de bobo ao ver a companheira ficar corada nas ventas.

 

   — Era uma noite bonita de lua cheia, como a de hoje. Então, decidi tomar meu rumo por uma estradinha batida dentro da caatinga e, desconjuntado das ideias por causa da cachaça, nem percebi que já era madrugada. Compadre da minh'alma, mal botei as alpercatas nos roçados da fazenda não é que eu vi, assim de supetão, o malacabado do Conde Dráqui em riba do telhado da casa de Tonha.

 

   — Vixe, Nossa Senhora! E o que o enfezado queria? - exclamou o velho cego, dando um pulinho assustado no banco.

 

   — Ora, ora, trocar telha por causa de goteira é que não era. O tranqueira chupador de sangue já tava fazendo o serviço de modo a retirar a cobertura com a má intenção de entrar no quarto de Tonha. Quando vi aquela safadeza, a cachaça se evaporou num instante. Fiquei danado da vida. Nem naquela época e nem hoje não tem homem, bicho, ou coisa do além que venha bulir com a minha mulher.

 

   — Deixe de ser bobo, Chico – disse Antônia com o rosto vermelho outra vez.

 

   — O que o senhor fez, seu Francisco? – perguntou Argemiro de olhos esbugalhados.

 

   — Peguei uma pedra que encontrei ali por perto e joguei no maldito. Acertou bem no quengo. O buliçoso desgramado ficou surpreso. Procurou ao redor e me viu. Bati no peito. Chamei o enfezado pro barulho. “vem aqui embaixo, filho duma égua, que aqui tem homem pro teu tamanho”.

 

   — Vixe, compadre, vosmecê chamou o azarento pro pau, foi?

 

   — Chamei, sim. Só que eu não sabia que o tal era um vampiro dos infernos. Rapaz, ele deu um pulo de lá de arriba do telhado e veio parar bem pertinho, assim, na minha frente. Pulei de recuo, assustado, e fui logo de mão à peixeira escorrida na cintura, lembrança das minhas andanças no bando de lampião, mas tinha deixado a faca em casa.

 

   — Nossa Senhora, padrinho, o senhor não se fugiu, não?

 

   — Jamais. Não me acovardo diante de barulho nenhum, porque sou cabra macho das antigas, Dandara. Quando ele arreganhou os dentões por riba de mim, levantando aqueles braços com as mãos cheias de unhas grandes, atinei logo que o Conde Dráqui não era um camumbembe qualquer. Eu tinha é arranjado encrenca com o filho do capeta.

 

   — Virgem Maria! – sussurrou a afilhada, a expressar o medo em olhos arregalados.

 

   — O vampirão viu que eu tava decidido pra cair na briga. Avalie, seu Argemiro, sabe o que ele teve a coragem de fazer? Quis me engabelar com aqueles dois zoiões que começaram a brilhar num amarelidão sem fim, querendo me puxar pra ele.

 

   — Benza-me Deus – cochichou o compadre, fazendo rapidamente o sinal da cruz.

 

   — Avalie, seu Idalino. O coisa-ruim ainda teve a petulância de bater o pé no chão e apontar o dedo pra junto dele como se eu fosse um cachorro e falou bem nas minhas fuças: “vem aqui, anda, junto, tô mandando”.

 

   As visitas expressaram um “ooohhh” de espanto em uníssono.

 

   — Não acredito. O sem-vergonha fez esta desfeita ao compadre?

 

   — Pois não foi? Rapaz, o sangue me subiu à cabeça na hora. “Filho duma égua. Vosmecê me paga, cabra!”. Quando ele aumentou a força daqueles zoiões pra me botar cabresto nas ideias, bateu o pé e me disse “aqui, junto”... ahã, fui junto, sim. Dei dois passos na direção dele e lhe apliquei um tapa de mão aberta estralado na rosca do ouvido. O mequetrefe rodopiou três vezes e se emborcou todo no chão com a aquela bunda seca virada pra lua. Deu inté pena.

 

   — Boa, pois foi muito bem-feito – disse Dandara em sorrisos de orgulho pela façanha do padrinho.

 

   — Eita, por essa ele não esperava – arrematou o compadre Argemiro.

 

   — Não mesmo. O maldito levantou-se atarantado com a boca cheia de terra. O tabefe foi tão forte, tão forte, que o cão se envesgou todinho. O sopapo inté tirou os dentões dele do prumo. E aí levantei os punhos e disse: “vem, cabra safado, vem que aqui tem homem de envergadura.”

 

   — Jesus Cristo!

 

   — Aquilo era cria do demônio mesmo, só se vendo. Ele arreganhou de novo a dentadura e pulou pra riba de mim num bote, feito uma cascavel. Mas ele não tava lidando com um desvalido qualquer, não senhor. Mandei um pontapé bem na caixa do peito. Do jeito que o bicho veio, ahã, voltou no mesmo pulo. Caiu de corcunda no chão, assim, todo estropiado.

 

   — Credo em cruz. Não tinha uma estaca por ali perto pra lhe furar o coração, padrinho?

 

   — Nada... mas se tivesse também não ia usar. Eu queria era dar uma coça naquele dentuço que gostava de bulir com a mulher dos outros.

 

   — Eita compadre corajoso da moléstia. Já tô inté com pena do vampiro.

 

   — E daí, seu Chico, o que aconteceu depois?

 

   — Ora, seu Idalino, o malacabado viu que o buraco ali comigo era mais embaixo. Ele escafedeu-se dentro da caatinga se fugindo na escuridão da noite. Vosmecês me conhecem. Sou homem de opinião. Dou um boi pra não entrar numa briga, mas pago uma boiada pra não sair. Fui atrás dele, peguei um pedaço de pau no caminho e matei o bicho na base de paulada no meio do quengo. Foi bem assim.

 

   Argemiro e Dandara ficaram admirados com a bravura do mestre Chico. Pai e filha estavam realmente eufóricos. Antônia levantou o queixo orgulhosa por ter um homem destemido daquela marca como marido. No entanto, o calejado contador de causos percebeu logo a expressão de dúvida estampada na cara do cego, um vivente boa-praça, amigo de longa data, mas que tinha o costume feio de sempre suspeitar da veracidade de suas histórias. O mestre ficou curioso em saber o que o velho estava de cisma.

 

   — O que foi, seu Idalino? O amigo não acredita no acontecido?

 

   — Seu Chico, brigar na unha com vampiro não é coisa fácil, não. Sei disso. Ainda assim dizem que eles têm muita força também.

 

   — Vosmecê ainda duvida das minhas palavras, não é isso? Pois eu lhe digo, seu Idalino, não carece de um homem do meu calibre sair por aí inventando desconchavos. Detesto exagero. Só conto o que aconteceu. Nem mais nem menos. Tonha, vá até o nosso quarto e traga a queixada do malacabado.

 

   A companheira de seu Francisco saiu da cozinha por um momento sob os olhares perplexos das visitas. O mestre, além de compartilhar com modéstia os detalhes de suas proezas, ainda fazia questão de provar a verdade dos fatos relatados. Não demorou muito para Antônia voltar do quarto com a mandíbula do vampiro nas mãos.

 

   — Faz favor, amor de minha vida, dê a ossada aí pro meu compadre. Ele precisa conferir de perto o despotismo da encrenca.

 

   — Nossa Senhora, padrinho, que bocarra assustadora!

 

   — Deixa eu ver, deixa eu ver – disse o cego a estender as mãos ansiosas a fim de receber a queixada.

 

   — Como vosmecê vai ver, seu Idalino, se o senhor é cego? – zombou o mestre em sorriso bonachão, de brincadeira entre amigos.

 

   — Não vejo com os olhos, seu Chico. Eu vejo é com as mãos.

 

   O velho Idalino, então, começou a tatear a queixada esmiuçando tudo. Rigoroso nos procedimentos. O mestre Francisco, por sua vez, entre pitadas impacientes no cigarro de palha, observava a inspeção minuciosa já dando mostras de irritação. O tal exame a fim de averiguar a lisura da sua narrativa parecia-lhe descabido. O aborrecimento piorou ainda mais ao perceber, para o seu desgosto, que quanto mais o cego enxerido bulia com a dentadura tanto mais fazia cara de cismado.

 

   — O que foi? Vosmecê ainda não se confia nas minhas palavras?

 

   — Seu Chico, o senhor não me leve a mal, não. Mas isso aqui é uma queixada de suçuarana.

 

   A declaração categórica do cego pegou a todos de surpresa. Fez-se um silêncio constrangedor na cozinha. E tanto foi que dava até para escutar os grilos de cantoria ao redor da casa. De repente, Argemiro levantou-se do banco indignado em defesa do amigo.

 

   — Arre égua, homem, tome tento. Vosmecê ainda tá duvidando da história do meu compadre. Ora, aonde já se viu um cego querer enxergar melhor do que a gente que tem a vista boa. Confundir dentões de vampiro com os de onça-parda. Mas essa é boa.

 

   Francisco, para o espanto geral, falou com calma.

 

   — O seu Idalino tem razão.

 

   Argemiro engoliu a indignação. Sentou-se novamente com a expressão aturdida, sem saber o que fazer. O cego sorriu triunfante, porém foi por pouco tempo.

 

   — Esta queixada aí é de suçuarana... mas também é de vampiro – afirmou o mestre em tom impassível.

 

   Eles olharam surpresos para o dono da casa. Até Antônia, testemunha ocular da maioria dos relatos do marido, não esperava por essa.

 

   — Afinal de contas, compadre, estes dentões são de vampiro ou de onça-parda?

 

   — São dos dois. Eu explico. Sou cabra modesto e eu não queria me alongar no causo.  Quando o dentuço se fugiu em meio à caatinga, eu fui atrás dele. O malacabado, sendo cria de satanás, acuado, vendo que não me levava na briga, transformou-se numa suçuarana bem na minha frente. Foi bem assim.

 

   — Por Jesus Cristo. Aí deu a gota serena! – arregalou os olhos o compadre, enquanto a afilhada levava a mão à boca, assustada. Dandara tinha pavor de onça-parda.

 

   — Pois é, então caí em cima da bichana na base de paulada e tapa de mão aberta no meio das fuças. Ela me lanhou todo. Deu trabalho, visse? O bicho tentou escapulir. Daí, peguei a malvada pela cola. Girei, girei, girei e joguei a maldita contra umas pedras grandes. Finou-se ali mesmo.

 

   Embora a explicação fosse carregada de fala e gestos teatrais eloquentes, principalmente ao girar o felino pela cola, o fato é que a expressão cismada em nenhum momento abandonou o semblante de seu Idalino. O velho, apesar de cego, era homem experiente nas agruras da vida. Era cabra traquejado nas andanças do sertão. Não se dava por vencido facilmente.

 

   — Seu Chico, o senhor não me leve a mal, não, mas dizem que quando o vampiro se transforma em bicho... ora, ele se transforma é em morcego!

 

   O mestre fechou a cara na hora com a insistência inoportuna de Idalino em se prender a meros detalhes. Queria dar o causo por encerrado. Entretanto ao reparar na fala atrevida do cego o seu compadre coçar o cocuruto, confuso, e ver a afilhada desviando os olhos à procura de formiga no chão da cozinha, ele não aguentou mais o agravo à sua pessoa e levantou-se profundamente irritado.

 

   — Ora, seu Idalino, o vampirão se transformou em suçuarana bem na minha frente. Eu vi, sim. Vi com estes zóios que esta terra há de comer. O senhor precisa entender que aqui no sertão as coisas são bem diferentes de lá das Europa, visse? Eu não sei como explicar o motivo, mas aqui no sertão o maldito só tinha poder de modo a se transformar em onça-parda... bom... hum... pra ele virar morcego, verdadeiramente, só poderia acontecer lá na Tronsenvânia!

 

   — Aaahhhh! – suspiraram aliviados pai e filha, agora, satisfeitos com a explicação.

 

   A confiança deles no seu Chico retornou com mais respeito. Mesmo conquistando de volta o orgulho e a credibilidade, o velho contador de causos sentou-se aporrinhado com o amigo cego que ainda lhe fazia, dentro de sua própria casa, a desfeita de ficar com a cara de desconfiado. Emburrado, danado da vida, o mestre cruzou os braços com vontade. Fez beiço de criança birrenta para todos, enquanto ouvia atrás dele a voz de Antônia a lhe azucrinar os ouvidos:

 

   — É Trensenvânia, chico. Tren... sem... vânia, seu aluado!

 

 

 


Tema CLTS 25: Terrir


 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 10/11/2023
Reeditado em 19/11/2024
Código do texto: T7929317
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