VALORIZANDO A SIMPLICIDADE
Era então conhecido como Adolfo Curtidor, o sobrenome incorporado pela habilidade em trabalhar o couro. Morava num apertado cortiço na Rua das Laranjeiras, no térreo funcionava sua oficina. Já uma improvisada e íngreme escada de madeira levava ao conjugado do andar superior.
A moradia recebia luz natural, proveniente do corredor de acesso aos demais sobrados geminados, a falta de vento cruzado e a incidência do sol da tarde tornavam o calor do verão insuportável. Internamente, o banheiro se constituía na única área privada, que como muitas dependências de empregada, de tão compacto, sobrepunha chuveiro ao vaso sanitário.
Nessa espécie de loft rústico, a cama do casal e uma cortina estampada definiam o espaço íntimo do casal. Os dois filhos dormiam num sofá-cama, que durante o dia servia como espaço de uso comum da família. Naqueles vinte metros quadrados por piso a família interagia.
Adolfo, tão logo os meninos cresceram, não se fez de rogado, passou a ensinar-lhes os macetes do trabalho com couro.
Como só aceitava pagamento em espécie, nunca precisou de conta bancária, mesmo assim, observador do cotidiano, não entendia a razão de tanta gente disposta em fila, diante dos bancos, isso nas poucas vezes que pisava à rua, para recompor algum item esgotado de seu diversificado arsenal de pressões, tarraxas, fios etc.
Uma notícia inesperada balançou as estruturas da família. Um convite irrecusável, ainda mais partindo de um irmão, que morava numa fazenda em Barra dos Bugres, Mato Grosso. A proposta incluía casa com toda infraestrutura, alimentação, e um salário superior ao que conseguia auferir em sua acanhada oficina.
A estabilidade da família balançou: pelos pais a partida seria imediata, enquanto os filhos adolescentes rejeitaram de cara essa mudança, que os levaria para o meio do mato, e nesse caso grosso, isso ia contra todos os interesses deles, nesse especial momento de hormônios a flor da pele.
O mais velho, que completaria dezoito anos ao final do ano, conseguiu convencer o pai de ficar, já dominava a arte dos consertos de sapatos e se achava maduro, capaz inclusive de manter casa e oficina funcionando. Afinal, algo poderia dar errado na aventura da família pelo interior do país, e contar com um plano B, seria no mínimo estratégico.
Mantida a lógica de que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, valeu a palavra dos pais. Em quinze dias todos embarcariam de ônibus para uma viagem de 24 horas até Cuiabá, a capital do estado. Lá um veículo da fazenda completaria o percurso.
Enfim a felicidade batera à porta de Jorge, o filho mais velho. Teria trabalho, casa, dinheiro e independência para curtir tudo isso, sem precisar dar satisfação a ninguém. Agora já dispunha do pé e da jaca, bastava apenas dar um passo a frente.
Parece coisa do passado, mas a comunicação deles com o filho se dava por carta, na fazenda pelo relato da mãe, tudo era farto, mas a comunicação com o resto do mundo precária, muito precária
No início, tudo eram flores, imagina agora o Junior tinha o quarto dele, os pais curtiam a intimidade de ter um banheiro no quarto, e a cozinha inspirava Dona Maria a tentar produzir pratos novos. Que felicidade!!!
O trabalho era tranquilo, e o irmão Jonas, montara uma oficina improvisada para Adolfo, caso quisesse aproveitar horas vagas para produzir peças de couro, principalmente para montaria e botas, e assim, ainda tirar uma grana extra.
Afinal, no início da noite, nas tardes de sábado e no domingo a diversão era mesmo escassa, o que levava a peãozada a beber como um gambá, e assim passar de forma diferente aquele longo tempo ocioso.
Os meses passando, e aquela felicidade inicial definhando, Junior nunca se conformara com a situação, e sua expressão sempre carrancuda, mexia fundo com aquela tranquilidade inicial desfrutada pelos pais.
A falta de convívio com outras pessoas afetou diretamente o adolescente em primeiro lugar, mas acabou contagiando os pais, que não podiam se misturar aos peões, se limitando ao relacionamento com o irmão e a esposa, que tentaram durante muito tempo, mas infelizmente não conseguiram ter filhos.
Em pouco tempo, Adolfo conseguiu juntar uma graninha, pois não tinha onde gastar dinheiro. Já pensava até em comprar um carro, coisa que nunca tinha passado pela sua cabeça, mas que talvez desse autonomia para quebrar a rotina com passeios no final de semana.
Interessante essa reação que o vírus urbano causa nas pessoas, a tristeza que acompanhava o filho, agora atingia de frente ao pai, que da noite para o dia foi ficando magro e mal humorado.
Seu irmão preocupado com a situação tentou interceder, vendo tristeza no comportamento de Adolfo. Propôs férias no Rio, para procurar atendimento médico e que também serviria como parâmetro de comparação entre a precariedade anterior e a abundância que se refletia nas suas economias atuais.
Não deu outra, em poucos dias estabelecido na cidade, Junior e Adolfo já transpareciam a alegria de estar de volta ao seu habitat. Nem partiu da dupla de ex-descontentes a proposição de retornar a vida anterior. Dona Jurema, a esposa tomou a iniciativa de escrever para o cunhado relatando a decisão familiar.
Quem teve que engolir todas as mudanças a seco foi Jorge, que agora abdicaria de sua autonomia, consolidada ao longo dos dezoito meses de muitas descobertas.
Agora, a poupança conseguida no período, seria empregada para comprar o sobrado vizinho, e assim trazer conforto para todos, retomando a trajetória anterior, que mesmo com menos recursos financeiros, abundava em vivências urbanas, permeada pela volta da alegria, um sentimento que efetivamente não tem preço.