O incrível agrião do Dr. Malabuse

 

 

O INCRÍVEL AGRIÃO DO DR. MALABUSE

 

Miguel Carqueija

 

Nota introdutória:

Este conto é inédito e eu o reencontrei num antigo caderno de manuscritos meus. Infelizmente, parece que eu ainda não tinha o hábito de datar meus textos, ou só fazia às vezes, mas a história em questão é da década de 1980.

Nessa época eu procurava desenvolver alguns personagens de série, que interagiam uns com os outros. Mas não houve continuidade; logo eu estava mais interessado na ficção científica, para a qual dirigi meus esforços. O personagem que teve vida mais longa e que até reapareceu recentemente foi o Dr. Brian Max, advogado inglês, cuja característica mais marcante é o mau humor.

O personagem Miranda Monteiro é brasileiro e um sujeito que tem o hábito de contar mentiras inofensivas, já que não prejudicam ninguém. Ele vive relatando supostas aventuras e experiências vividas em outras épocas e geralmente impossíveis de verificação. Quanto ao Jorge Cunha, o narrador fictício deste "causo", é o amigo paciente que escuta as patranhas e finge acreditar.

 

 

(das memórias de Jorge Cunha)

 

 

Afonso Henrique Miranda Monteiro aproximou-se de mim e falou:

— Esta salada lembrou-me da fazenda do Dr. Malabuse, em Vacaria do Alto. As experiências dele foram uma das coisas mais loucas que eu já vi. Tenho certeza que você gostará de escutar essa história.

Miranda Monteiro sempre tem certeza de que as suas histórias agradam. Aturá-lo durante mil e oitocentos quilômetros de viagem pelo país não é tarefa muito fácil, apesar da remuneração. Naquele momento, estávamos enguiçados em Uberaba e aguardando que a oficina liberasse o nosso auto. Miranda não pode ficar ocioso muito tempo sem começar a contar as suas narrativas sempre variadas e aparentemente intermináveis.

"Foi há mais de doze anos atrás. Eu estava viajando em Goiás e hospedei-me em casa de certo Professor Aristóteles Malabuse, já nem me lembro mais a exata localização. Eu levava uma carta de referência do Deputado Santana Castor, e dessa forma o professor não fez nenhuma objeção."

(É muito cômodo não se recordar do local. O nome Malabuse fazia lembrar muito o Dr. Mabuse dois filmes de Fritz Lang.)

— Note — continuou Miranda — que o homenzinho não parecia lunático. Parecia apenas um velho professor aposentado com seus achaques, óculos, sua velha roupa caseira, seus cachorros, sua esposa bem adequada “para o ambiente” etc. Ele tinha uma horda nos fundos da casa e também um pomar, e um jardim na frente. Enfim, um lugar bem agradável para passar uns dias.

“Mas não creia que foi tudo tão rotineiro assim. Sê-lo-ia se não fosse pelos agriões.

— Agriões?

— Vamos por partes. Chegaremos lá, não se apresse. Os agriões são o pivô da história. Deixa eu ver... como é que foi mesmo? É que faz tanto tempo...

(Tive a impressão de que Miranda Monteiro estava inventando a história na hora.)

— Ah! — fez ele afinal. — Lembro-me bem agora. Eu estava no meu quarto, espiando pela janela, quando bateram na porta. Era a empregada Carmela que me transmitia um recado do professor. Ele queria me mostrar uma coisa muito importante, na horta.

— Os tais agriões?

— Realmente era isso. Quando cheguei lá o Malabuse me pegou pelo braço e falou: “Seu Miranda, o senhor tem que dar uma espiada nos meus agriões. É uma coisa nova que eu estou criando, sabe? Vou lhe mostrar.”

— Era na horta?

— Sim, claro.

— Mas o agrião não é uma planta aquática?

— Ah, sim? Bem... eu não acabei de contar que o Malabuse ia me mostrar uma coisa nova? Ora bem: era um agrião terrestre.

— E que tem isso de interessante?

— O interessante não era isso. Tenha paciência que eu já conto!

Sugou um pouco da laranjada em canudinho. Creio que ninguém bebe mais refresco de canudinho sobre a face da Terra.

— O caso — prosseguiu Miranda — é que esses agriões produziam efeitos colaterais em quem os comiam. O Dr. Malabuse era um excelente físico, além de biologista, e aplicando alguns isótopos naquele agrião elaborado, conseguiu verdadeiras maravilhas.

— Ele contou isso a você?

— Sim, naquela tarde. Confidenciou-me como se estivesse transmitindo um segredo de estado: “esses agriões podem um dia revolucionar o mundo”.

— Ele não fazia por menos?

— Não, porque os efeitos do agrião eram mesmo espantosos. Assim ele me disse: “Seu Miranda, se o senhor tomar chá desse agrião, será capaz de pular o muro sem tocar nele”.

— Não acredito, é impossível.

— Esse agrião é energético. Se você o espalhar num aquário, logo verá os peixes numa atividade febril. Em poucas semanas, a população deles aumentará muito.

— Então é até perigoso, não é?

— Não exatamente. Se você tomar um remédio que não precisa ou uma quantidade excessiva, passará mal. Ora, é só usar corretamente o agrião que nada de mal acontecerá.

— Mas o senhor já fez a experiência, já comprovou tudo?

— Muita coisa falta comprovar. Veja bem, este avião poderá curar miopia, reumatismo, aftas, doenças dos rins, úlceras estomacais e duodenais, varizes, enxaquecas, infartes, anemias, calvície, câncer, pneumonia, rinite, tuberculose e muitas outras coisas ainda. Só depende de descobrir o modo certo de aplicá-lo em cada caso.

— E falta muito para isso?

— Certamente demandará muitos anos de pesquisa para desenvolver todas as potencialidades que descortino. Neste atual estágio, o meu agrião é o melhor fortificante que existe, em sua forma de infusão.

— Então eu quero experimentar esse agrião! Será que posso?

— Posso sim, mas somente uma xícara. O senhor não está acostumado e talvez haja efeitos colaterais se tomar muito.”

 

...............................

 

Miranda pagou a conta e eu o encarei:

— E você tomou o chá?

— Que pergunta! E você acha que eu deixaria de fazê-lo?

— E houve algum resultado?

— Se houve? Imagine que eu fiquei sem espinhas e cravos em uma semana!

— O que?

— É o que eu lhe digo. Você nunca me viu com espinhas, não é mesmo? Naquele tempo eu as tinha.

— E você pulou o muro?

— Pulei. Conseguia fazê-lo alguns minutos depois de tomar o chá, imagine.

Enquanto eu pensava se deveria chamá-lo de mentiroso, Miranda Monteiro prosseguiu:

— Fiquei entusiasmado. Quis logo ter uma conversa séria com o Malabuse e, na sala de estar, fui falando assim: — Professor, uma coisa dessas não pode ficar oculta do mundo. Vou falar com meus amigos que são muitos e influentes, e vamos levar isso avante.

Infelizmente ele recusou. Contou-me a história de Schliemann, o arqueólogo que descobriu Troia, de como ele foi combatido pelos “donos da verdade científica”. Eles farão tudo para me destruir — explicou. Não, eu prefiro divulgar isso aos poucos e ir publicando discretamente os meus trabalhos. Mendel só foi reconhecido depois da morte. O melhor meio será encontrar laboratórios que queiram colocar o agrião em suas fórmulas. Quando estivermos diante de fato consumado, então sim, será possível agir livremente.

— E depois disso, Miranda? Pelo que parece a coisa não foi mesmo divulgada, pois você é o primeiro que me fala nisso.

— Bem, Jorge... realmente eu só tornei a ver o Dr. Malabuse umas duas vezes. Um farmacêutico de Campo Grande, em Mato Grosso, estava usando um suco de agrião na fórmula de um tônico do coração. E saiu um artigo do doutor num jornal do interior de Goiás. Ele está agindo, mas, como ele mesmo disse, essas coisas demoram para ser reconhecidas.

— Você tem o endereço desse farmacêutico? É que eu gostaria de experimentar o remédio.

— É mesmo? (Miranda Monteiro tossiu duas vezes) Bem, eu tinha o endereço, mas acho que já o perdi... é que eu viajo muito, você sabe... você por acaso está duvidando de mim, Jorge?

— Não, é claro que eu não duvido!

Afinal, vejam bem, quem duvida é porque está em dúvida. E eu tinha plena certeza de que tudo aquilo era mentira...

 

 

(Na foto, a página manuscrita do início do conto.)

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 05/11/2023
Código do texto: T7924975
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