O segredo do senador

Dezembro

Em Brasília, o clima natalino deixa a Capital mais iluminada e colorida. Há um visível esvaziamento da cidade, com menos movimento de pessoas nos prédios públicos, vagas ociosas nos estacionamentos, rodoviária e aeroporto mais calmos. Diferente de sua agitação típica, a cidade parece fleuma nessa época do ano.

Ao contrário dos demais espaços da Capital, na residência do senador Charliston Campeiro ainda há bastante movimentação política em meio às festinhas privadas, que ocorrem frequentemente em qualquer época do ano. Os muros altos do casarão, cobertos por gramíneas verde-claras, escondem as reuniões informais que acontecem lá dentro.

Semanalmente, sempre às sextas-feiras, os restritos convidados, empresários, embaixadores, políticos e gestores públicos do alto escalão, que não saem de Brasília nos finais de semana, ao contrário da grande maioria, disputam um convite para a concorrida festinha privê do senador Campeiro.

Excelente oportunidade para fazerem políticas e negócios, os frequentadores da festa não escondem o interesse em participar dos encontros providenciais. Muitos se oferecem, mas os assessores que organizam o evento seguem o rigoroso controle do senador, que sempre dá a palavra final sobre quem deve ou não participar.

O chefe da segurança da residência, homem de confiança do senador, é o discreto Calado, chamado assim não exatamente por ser de poucas palavras e reservado em seu papel na casa, mas por ser esse o seu último nome. José da Silva Calado mora na periferia do Distrito Federal e é por lá que arregimenta as funcionárias que servem aos convidados na residência do senador.

– Você vai trabalhar na limpeza. Nas sextas o expediente se estende por toda a noite e ainda na madrugada do sábado. Aí você também pode ser requisitada para servir aos convidados – Calado convida a namorada Dulce a assumir uma vaga na casa do senador. – O importante é não se esquecer de não falar, não ver e não ouvir nada. Tudo o que acontece naquela mansão é sigiloso.

Essa é uma recomendação sempre passada pelo chefe da segurança a todos os empregados. Tudo o que acontece na casa não pode sair dela. A preocupação maior é com algumas garotas contratadas para animar as noites e deixar os convidados mais à vontade. Elas são convocadas semanalmente pelo chefe Calado e sempre recebem essa mesma recomendação.

Janeiro

O ano político ainda não começou. Nos prédios públicos há pouco movimento, assim como nas estradas. À noite, a iluminação especial de Natal esquecida na Esplanada ainda dá brilho às largas avenidas da cidade. Na rua onde mora o senador os carros fazem fila na entrada da mansão, onde são identificados pela guarda particular. O esquema de segurança, comandado por José Calado, conta com alguns policiais civis e militares, que fazem essa atividade extra com remuneração bastante gorda.

Os vidros dos automóveis baixam levemente para que os seguranças identifiquem seus condutores. As placas dos veículos também são checadas. Só entram convidados. Até a meia-noite é assim a movimentação na entrada da mansão. Após isso, o sossego da rua só é quebrado novamente na saída dos convidados, sempre ao amanhecer do sábado.

Dulce percorre o salão com uma bandeja recolhendo garrafas e taças vazias. Desde o seu primeiro dia de trabalho, não se preocupa em identificar as personalidades ali presentes, exceto o senador, dono da festa, e alguns políticos que ela já vira no noticiário e na propaganda eleitoral, mas nem recorda bem os seus nomes.

Já de manhã, quando todos os convidados haviam saído, Dulce recolhe os copos, pontas de cigarro, restos de comida. Como parte do seu ofício, entra em todos os cômodos da casa para fazer a faxina.

No dormitório do senador ela encontra, entre outros lixos jogados no chão, um envelope de preservativo. Procura um pouco mais e logo acha embaixo da cama o preservativo usado. Utilizando luvas e demonstrando nojo, recolhe a camisinha e a lança no saco de lixo.

O barulho da porta a assusta. Enrolado em uma toalha, o senador sai do banheiro e também se surpreende com a funcionária. Surpresa ao ver um homem tão importante do meio político nacional em traje tão impróprio, Dulce sussurra apenas um tímido bom dia e imediatamente deixa o ambiente.

– Ficou maluca? Você não pode entrar no quarto do senador sem ter a certeza de que ele está fora – reclama Calado depois de ouvir o relato de Dulce.

Nas sextas-feiras seguintes a empregada age prudentemente. Transita pelo salão transportando a bandeja e circula entre os figurões como se ela própria não existisse. Ninguém a nota ou se importa com sua presença ali. Continuam falando de políticas e negócios, fazendo planos e transações geralmente sórdidas.

Fevereiro

Noite de sexta, a movimentação na rua contrasta ainda mais com o deserto da cidade. O Carnaval deixa Brasília ainda mais vazia, mas na rua do senador Campeiro a movimentação permanece constante. Essa festa é mais descontraída que as anteriores. Pouco se fala em negócios, não há moderação no uso de bebidas, alguns se vestem com cores mais alegres, principalmente as garotas da periferia do Distrito Federal contratadas por Calado, que até reduziram o tamanho de suas roupas.

Na manhã do sábado pós-carnaval, na faxina do quarto principal da casa, o do senador, Dulce encontra outro preservativo, dessa vez jogado na lixeira do banheiro. Ela pensa bastante, interrompe o trabalho por um tempo e senta na bacia sanitária para refletir. De braços cruzados, finta o teto e por um longo período continua pensando.

Decidida, corre até a porta do quarto, tranca a fechadura e deita-se na cama. Mesmo assustada, baixa a roupa íntima e, numa habilidade ensaiada, vira a camisinha pelo avesso introduzindo-a na vagina com o dedo indicador. Assim permanece quieta por alguns segundos.

Aguardava ansiosamente essa coincidência: estar em período fértil e encontrar uma camisinha usada pelo senador. Sentindo-se realizada, para o seu serviço na casa e vai embora. Comunica ao namorado que está passando mal depois de trabalhar ininterruptamente por toda a noite e madrugada.

Março

O ano começa realmente na Capital. Por ser um ano eleitoral, as estratégias para o pleito começam a ser planejadas pelo senador, sua equipe de campanha e convidados. Nomes de políticos são lançados e descartados a cada instante. Dulce fica surpresa ao saber que os primeiros acordos pré-eleitorais nascem em ambientes como esse e dessa forma. As discussões sempre duram por um longo tempo, tomando toda a madrugada.

Abril

Nada de diferente. Os debates são tão intensos que as horas se passam mais rapidamente. Os encontros são insuficientes para os acordos e os participantes deixam continuamente a agenda de discussões para a próxima semana. Lembram sempre de outros nomes que devem ser convocados para os diálogos das noites seguintes. Nesse período, a quantidade de frequentadores da casa é bem maior.

Mas, apesar do maior número de homens na festa, as garotas contratadas para animar os encontros ficam com o tempo livre e formam grupinhos de fuxicos afastados das discussões políticas. É que nesse período elas são menos requisitadas. Os homens da política e dos negócios estão muito ocupados com os assuntos mais sérios.

Maio

O clima ameno da Capital parece diferir do clima da casa do senador. Os debates parecem acalorados. Até mesmo a utilização dos quartos da mansão é reduzida. As ações prazerosas e cenas de orgia já não são tão comuns. Calado revela à namorada Dulce que nesse período economiza contratando menos garotas. Ela, enquanto atua servindo bebidas e aperitivos, contempla as outras mulheres em seus lindos vestidos, saltos, cabelos e joias.

– Não se meta com essas garotas de programa – aconselha a cozinheira da casa, percebendo que Dulce as observa. – Não se preocupe meu bem. Faça o seu trabalho e não ligue para elas. São lindas e vulgares. Só servem de distração aos homens ricos.

Dulce continua contemplativa até receber outra bandeja e a indicação de voltar ao salão. Antes de deixar a cozinha ouve a conclusão da colega:

– Acho que é por isso que usamos uniformes. Para não sermos confundidas com elas.

Ao contrário da cozinheira, Dulce não despreza aquelas mulheres e sim inveja suas poses de glamour. Sabe que poderia ser uma delas, diferentemente das demais funcionárias que trabalham ali na cozinha e na faxina, que nunca serão confundidas com uma daquelas lindas garotas e jamais serão assediadas por um daqueles homens. Há muito mais que um uniforme separando as empregadas da casa e as mulheres esculturais contratadas por Calado e cobiçadas pelos amigos do senador.

A sensação de estar do lado errado, trabalhando numa função menos rentável na casa, deixa Dulce irritada com o seu namorado. Não fosse o fato de namorarem, ela seria contratada para a outra função. Assim, ela culpa Calado por sua situação de desvantagem na festa e por isso passa a evitá-lo.

Junho

Preocupado com o estado de saúde da namorada, que age de forma esquisita no trabalho há quase um mês, Calado a visita em casa no final da tarde. Fica feliz em saber que ela está bem melhor. Seu rosto feliz o faz sugerir fazerem amor naquela tarde, sendo imediatamente contrariado por ela.

O plano de Calado, de morar definitivamente com Dulce, parece cada vez mais distante. Estão juntos há pouco tempo, desde que se conheceram quando ele começou a frequentar o bairro dela à procura de garotas para o trabalho na casa do senador. Dulce foi uma conquista que Calado quis para si como mulher, por isso não a indicou para o trabalho de atendimento íntimo nas festinhas da mansão. Ela despertou nele uma paixão que o levou a pensar em casamento e filhos. Ao menos ele continua pensando assim. Já ela sempre se retrai quando esse é o assunto discutido.

– Casar, só depois de estar bem estabelecida. Preciso ter uma boa renda, uma casa confortável... – justifica ela diante da insistência do namorado. – Eu não posso ter um filho com você. Não sou uma irresponsável para colocar mais um pobre no mundo.

– Você não se contenta com a vida, não é? – ele protesta. – Vai ficar esperando um príncipe rico enquanto deixa de viver? Quando perceber, vai ser tarde demais. Nem príncipe, nem vida.

– Que vida? Ficar o dia inteiro na cozinha lavando pratos, passar a madrugada servindo uísque, limpar a casa dos outros enquanto não posso cuidar da minha própria! Você acha que isso é viver?

Julho

A relação entre Dulce e Calado permanece instável. Desde a última contenda não desfrutam de nenhum momento juntos, porque as desculpas da namorada se modificam a cada encontro numa criatividade atípica e inumerável, fazendo com que ele a procure cada vez menos. E toda vez que se cruzam no trabalho surge uma nova discussão, de forma que já evitam até mesmo a troca de olhares. Assim, Calado sequer percebe a alteração no corpo de Dulce. Em um desses momentos de bate-boca, ela insiste na recusa de ter uma vida simples ao lado dele.

– Não quero mais. Acabou!

A decisão de Dulce impressiona Calado, que percebe o clima desfavorável e a deixa em paz. Embora ainda possa nutrir o desejo de desfrutar bons momentos com a mulher que ele gosta, resiste aos seus impulsos e decide parar. Nesse momento, essa é a melhor saída, imaginando que terá outros dias mais tranquilos para reconquistá-la. Afinal, com o trabalho na casa do senador, estarão sempre próximos.

Os dias que seguem são calmos aos dois. Calado e Dulce raramente se falam na mansão e não se encontram fora do expediente.

Agosto

Verão em Brasília. Os canteiros estão secos e o asfalto quente nas avenidas do Planalto Central. A poeira vermelha sobre os automóveis estacionados indica a sequidão do lugar. Verde, apenas no entorno do lago Paranoá, incluindo a grama na mansão do senador Campeiro, onde o cenário não se altera com o clima.

A campanha para reeleger o senador já está lançada. O material de divulgação está pronto para ser espalhado pelas ruas e avenidas com cartazes que pregam a ética na política e nos negócios. Essa é a bandeira central da campanha do senador, aprovada em uma das festas entre políticos corruptos e empresários fraudadores.

As trocas de favores ocorridas durante o seu primeiro mandato, em alianças com grandes grupos empresariais, incluindo banqueiros e empreiteiros, garantem ao senador recursos suficientes para uma campanha majoritária bem sucedida. Os altos custos da campanha, definidos por aliados e financiadores, refletem o elevado poder de influência e barganha do político.

Setembro

O senador vai prestigiar a Parada acompanhando o presidente da República. Na ocasião, boa parte dos empregados da mansão são dispensados, momento em que Dulce e Calado se encontram, inevitavelmente, no vazio da casa. O feriado da Independência permite aos dois ficarem sozinhos no trabalho, apaziguando a relação e colocando a conversa em dia. Ela reclama do calor insuportável e ele da falta de uma companhia. Ambos trocam palavras afáveis, bem diferentes do último encontro, mas nada além disso.

Percebendo a frieza da mulher e sua recusa em dialogar sobre o motivo do afastamento, Calado resolve pressioná-la com aspereza. Só assim ele compreende o ocorrido, para a sua breve felicidade, acompanhada por uma longa e forte decepção.

– Eu estou grávida.

Com ar de surpresa, ele franje a testa em demonstração de dúvida. O afastamento e sua falta de atenção não o deixaram identificar o ventre volumoso de Dulce. O avental do uniforme também dificultou. Ele volta a fazer o mesmo gesto de surpresa quando ouve a mulher afirmar que ele não é o pai.

Após um longo silêncio ele se move, caminhando para traz e fintando-a até alcançar a porta. Ele desaparece na rua saindo do campo de visão de Dulce, que respira fundo, aliviada por ter contado a primeira parte da notícia. A segunda seria contar quem é o pai, mas essa seria uma informação a ser dita primeiramente ao senador.

Trabalhando na mansão do Campeiro, fica fácil para ela conseguir materiais para o teste. Coleta fios de cabelo, pontas de cigarro, lenços usados e até mesmo cotonetes. Coloca tudo separadamente em envelopes plásticos e guarda-os seguramente consigo até a hora de ir embora.

Já havia traçado toda a estratégia: primeiro ato, com suas economias, procurar uma clínica e pagar por um exame de DNA; segundo ato, de posse do resultado do exame, procurar o senador para exigir-lhe a paternidade do filho; e terceiro ato, a partir dessa imposição, conseguir negociar um acordo, incluindo o aborto, caso a recompensa seja vantajosa. Difícil mesmo será esperar em silêncio até sair o resultado do exame.

Um dia de dois tristes: José Calado chora disfarçadamente cada vez que observa Dulce nos seus afazeres, em seu uniforme mais largo, percebendo que o seu plano de formar uma família com aquela mulher declinou; Dulce, por sua vez, chora ostensivamente em todos os cantos da casa. Não reprime a ira desde que recebeu o resultado do exame. Ainda não sabe quem é o homem responsável por sua gravidez, mas, seguramente, não é o senador.

O resultado negativo do exame de DNA a faz traçar novas rotas e levantar novas investigações para a sua causa. A quem pertenceria aquele esperma recolhido em uma camisinha encontrada no quarto do anfitrião? Qual frequentador da casa teria tamanha liberdade para levar uma mulher ao quarto do senador? E como encontraria elementos para descobrir o pai e cobrar-lhe dinheiro?

Com a alta rotatividade dos frequentadores das festas, a dúvida de Dulce se multiplica a cada sexta-feira. Passeando no salão, ela olha cada rosto, tentando encontrar uma pista. Observa que novos participantes se misturam aos antigos. Alguns são mais constantes, outros aparecem esporadicamente, de forma que ela não consegue lembrar quem estava na festa no dia em que fez a inseminação.

Conversando com outras empregadas para levantar informações, ela colhe nomes de desconhecidos, pesquisa o grau de relação desses com o dono da festa e procura saber das posses de cada suspeito. Sobre cada possível pai, ela pergunta a ocupação, o estado civil e se costuma transar quando está ali. Porém, para essas perguntas, suas colegas de trabalho não sabem as respostas. Nem mesmo as garotas contratadas para divertir os convidados conhecem tão bem os seus clientes.

Nada. Nenhuma pista acalenta Dulce, que já começa a se desesperar, vendo o seu plano ir por água abaixo. Para deixá-la mais intrigada, ouve de uma companheira de trabalho, mais antiga e experiente, que jamais um casal teria a autorização do senador para usar o seu quarto. Por isso é que há vários outros aposentos disponíveis na casa. Outra colega, também antiga no trabalho, registra que nunca uma mulher entrara no quarto do senador. Essa até levanta a suspeita de que ele não se envolve com mulheres.

Como uma atividade rotineira, desde o seu primeiro dia de trabalho, Dulce entra no quarto do senador para fazer a faxina. Displicente, pela situação que a envolve, não lembra a recomendação de Calado para não entrar no quarto até ter a certeza de que o senador não esteja presente. Surpresa ao perceber um rapaz deitado na cama, ela sai apressadamente pelo corredor até a cozinha, cruzando no caminho com o senador, que segue em direção ao quarto com um copo d’água e, provavelmente, um frasco de medicamento nas mãos. Já na cozinha, ela pega o casaco, vesti-o sobre o uniforme e caminha para a porta de saída dos empregados. Permanece caminhando apressadamente de cabeça baixa até passar na portaria.

– Dulce, Dulce. Espere.

Ela ouve a voz do ex-namorado, mas não quer parar. Tenta fugir para não dar explicações. Apenas retém os passos e volta o rosto quando ouve atrás de si a entonação da voz ficar mais grave.

– Dulce. O que houve? – Calado grita, preocupado. – O que você fez, menina?

Ela, sem entender, apenas sobe os ombros. Pensa que o questionamento tem relação com a gravidez e passa a mão sobre a barriga.

– O doutor Campeiro acabou de ligar para a portaria. Pediu para evitar a sua volta e disse que você está demitida. – Ele suspira para poder continuar a falar: – Eu o informei que você está grávida. Mesmo assim, ele quer você fora daqui. Fala pra mim, Dulce... o que você fez.

– Esqueci – lamenta Dulce.

– Esqueceu o que? Fale de uma vez!

– Esqueci a sua recomendação e entrei novamente no quarto do senador. Tinha outra pessoa lá... Um rapaz. Eu fechei a porta rapidamente... daí corri, mas o senador me viu.

Ela descreve a cena pausadamente, porque pensa no insucesso do seu futuro enquanto organiza as frases. Como fará agora, fora da casa, para continuar suas investigações sobre a paternidade do filho que espera?

Desempregada, Dulce passa os dias sem reação à vida. Recebe diversas visitas do ex-namorado, que tenta uma reconciliação, mas o medo de ter falhado a deixa sem ânimo. Ela pensa até mesmo em produzir um aborto, mas no fundo ainda alimenta uma esperança de identificar o homem que lhe tiraria da pobreza. Só isso a consola. A única certeza que tem é a de que apenas ricos participam das festinhas do senador Campeiro. Um deles, obviamente, será chantageado mais cedo ou mais tarde.

Outubro

A agitação eleitoral toma conta da Capital, assim como de todo o país, mas parece que em Brasília os efeitos são mais efervescentes. Período eleitoral em Brasília é esquisito: ao mesmo tempo em que todos parecem agitados, tudo parece tão estático. A cidade para enquanto as pessoas correm. Esquisito mesmo.

Depressiva em seu sofá, Dulce não tem muitas alternativas para passar o tempo a não ser ver televisão e ler revistas de fofoca. Muitas fotos e matérias apresentam mães ricas e perfeitas, no formato dos seus sonhos. De repente, a imagem na TV a faz tirar rapidamente os olhos da revista. É a campanha do senador Charliston Campeiro, candidato à reeleição. Anunciando novas pesquisas eleitorais, a propaganda afirma que o senador é o franco favorito, tendo sua campanha atingido a aceitação máxima entre os eleitores. O discurso de combate à corrupção havia decolado rapidamente, com a ajuda da imprensa, e também rapidamente caído no gosto do eleitorado.

No entanto, é um rosto que aparece em meio ao grupo de apoio ao senador o que chama a sua atenção. O rapaz que está ao fundo da tela, enquanto o candidato concede a entrevista, é familiar. Forçando a memória, ela logo se lembra do jovem que estava no quarto do senador no dia de sua demissão.

Despertando, como quem acorda de um sono profundo, Dulce inicia uma busca por qualquer informação sobre aquele rapaz. Rosto jovem, corpo atlético, jeito de garotão aventureiro, tatuado, aquele perfil não foi esquecido por ela. Lembra-se de tê-lo visto na festa consumindo drogas em um canto do jardim. Certamente é o amante do senador; o alvo de sua gravidez. Ela liga para as poucas amigas, pesquisa na internet, percorre a cidade procurando em academias, mas não consegue nada. Nem sabe o nome dele, o que dificulta a pesquisa. Ninguém consegue dar uma pista favorável. Isso serve de motivo para ligar outra vez para Calado.

O pedido por telefone faz Calado ir novamente à casa de Dulce. A ex-namorada está mais bonita, reagindo à vida. As roupas largas e estampadas deixam transparecer a saliência da barriga. Os olhares se cruzam e ambos trocam sorrisos. Ele está curioso para saber o porquê do convite.

A verdade contada por Dulce não obtém sua compreensão e ele se recusa a colaborar. Esclarece que o jovem descrito é conhecido, entretanto nega que o senador tenha relações com aquele rapaz. Ainda pede insistentemente para ela esquecer toda essa história, ao menos até passar a eleição, e a faz prometer que não atrapalhará a campanha do senador.

Sem discordar, Dulce se compromete a esquecer o caso e assim o faz soltar mais algumas informações sobre o rapaz, inclusive o seu nome. Isso facilitará a sua busca. Ela descobre que se trata de um estudante universitário, filho de um empresário também frequentador das festinhas. O garoto, de 17 anos, fora contratado para atuar em uma empresa responsável pelo marketing eleitoral da campanha do senador.

Tino é o nome do procurado. Constantino lembra um bad-boy que não combina o estilo ao nome. Assim ficou conhecido simplesmente como Tino. A mais conturbada notícia da vida daquele jovem é dada em meio a uma reunião de trabalho no comitê do partido. Sem ter agendado a visita, Dulce entra na sala de gestão da campanha, aguarda meio minuto estática na porta e, indisposta a esperar mais, entra no recinto tomando a direção da mesa oval onde sua vítima discute aos gritos com outros homens. Ela prostra-se ao lado do rapaz, que não percebe a sua presença, e lhe passa o bilhete. Sai da sala da mesma forma que entrou, sem ser notada.

“Tino,

Tenho duas notícias bombásticas a lhe dar:

A primeira é que eu sei de sua relação com o senador;

A segunda é que estou esperando um filho seu.

Estou lhe aguardando lá fora.

Dulce.”

Menos de meio minuto esperando e a porta se abre. Tino, com cara de assustado, surge a sua frente.

– Que brincadeira é essa?

– Já perdi muito tempo, garoto. Portanto, vou ser direta. Encontrei uma camisinha usada no quarto do senador. Recolhi o esperma e, como você pode ver, estou grávida.

O rapaz amassa o papel com a mão e o lança ao chão, aos pés de Dulce.

– O que você quer, sua vadia?

– Bem sei que você não tem grana suficiente, mas o senador pode pagar um bom valor para que a imprensa não tome conhecimento desse caso amoroso entre vocês. Procure-me amanhã, quando estiver mais calminho.

Ela se afasta vagarosamente enquanto ele não consegue reagir, apenas a observa. Desorientado, ele apanha o bilhete no chão e o desamassa, para em seguida guardá-lo no bolso, enquanto continua a observar a mulher estranha caminhando tranquila, como quem triunfa.

Reta final das eleições, a agitação é enlouquecedora na casa do senador. As ruas estão cheias de carros e o entra e sai enlouquece os seguranças. Todos tentam falar com o candidato favorito à vitória e não o encontram pela casa. Reservados no escritório, apenas Campeiro e Tino conversam:

– A piranha acha que está grávida de mim – argumenta o rapaz – e ela ainda imagina que temos um caso, só por ter me visto no seu quarto – desabafa. – O pior disso tudo vai acontecer se ela descobrir que você é quem é o pai, já que o preservativo encontrado só pode ter sido seu.

Tino lembra que foi levado ao quarto naquela noite a pedido do próprio senador depois de ter sido encontrado desmaiado no jardim por ter consumido drogas em demasia. Os amigos o encontraram e o esconderam para que o seu pai não o visse naquele estado.

– Ela pode ter gravado os meus encontros, pode até ter fotos – especula o senador.

– Ela já teria usado essa arma, caso a tivesse – conclui o rapaz.

– Não quero arriscar. Vamos apelar para a solução definitiva. Peça ao chefe da segurança para adiantar as coisas. Ele é o meu funcionário de confiança e vai me ajudar.

– Tem certeza, senador. Podemos negociar. Ela só quer dinheiro. O senhor paga e exige que ela retire a criança.

– Sem acordo!

Calado é chamado para uma conversa reservada onde recebe a missão de eliminar a chantagista.

– Aquela puta que você trouxe para trabalhar aqui... Lembra? A que demiti no mês passado? Ela está nos trazendo problemas muito graves. De todas que você nos trouxe, essa piranha foi a pior.

– Vou conversar com ela, doutor Campeiro.

– Não quero que você converse. Quero que ela não fale mais – esbravejou. Depois se conteve, fixou em seus olhos no capataz e reforçou: – Não quero que ela fale mais. Entende o que isso significa?

– Sim, senhor! – quase que sem voz, responde ao patrão ainda sem saber qual providência irá tomar. Sabe que não pode decepcioná-lo, tampouco fazer com a mulher que ama o jogo sujo que já fizera no passado a outros desafetos do patrão, como parte de sua tarefa naquela casa. É essa função marginal que dá ao segurança o status de homem de confiança do senador. Ele conclui a conversa em uma frase: – Vou providenciar.

Calado não consegue dormir e vai até a casa de Dulce em plena madrugada. Discute, xinga, ameaça e em um instante de fúria chega a bater na mesa. O homem teme trazer de volta o seu passado de bandido diante daquela mulher. Aos poucos, ele procura se acalmar.

– Você tem que sair daqui. Vá embora. Você tem parentes em Goiás. O que eu posso fazer é ajuda-la com a passagem e lhe enviar algum dinheiro.

Ele tenta convencê-la a desaparecer da cidade. Assume diante dela que será punido pelo patrão se esse desconfiar que ele não executou o serviço encomendado. Além de perder o emprego, correrá risco de morte, pois outros serão encarregados de eliminar, tanto a mulher que ameaça a reeleição do senador, quanto o mau funcionário que sabe demais e também será visto como uma ameaça.

– Eu pedi para você não fazer nada disso. E mais uma vez você não me ouviu. Eu estou temendo pelo que possa acontecer a nós dois – lamentou – nós três – corrigiu, observando a barriga dela.

Depois de muitos gritos, a mulher é finalmente convencida de que a melhor solução é deixar a cidade. Enche a mala com as coisas mais necessárias e é conduzida até a rodoviária. O ônibus a levará para Goiânia, onde tomará outro para o interior, numa cidadezinha onde moram os seus pais.

Charliston Campeiro percebe que seu homem de confiança trabalha normalmente naquele dia. Não pergunta nada sobre a realização do serviço, pois tem a certeza de que o bom funcionário não falha. Em outros casos, no passado, nem tomava conhecimento das tragédias pelos jornais, porque o serviço era tão bem executado que não havia marcas, nem notícias e muito menos investigação. O político também prefere não saber sobre as formas cruéis de desaparecimento das vítimas por ele indicadas.

Longe do perigo, supostamente, e passando privações, Dulce volta a agir. Decide não desperdiçar essa oportunidade única de conseguir dinheiro. Só precisa tomar cuidado para não revelar ao senador que está viva, nem contrariar o seu ex-namorado e algoz latente. A gestante volta para Brasília e busca refúgio com um candidato opositor, Eduardo Santos, que aparece na segunda colocação nas pesquisas, mas sem chances de vitória.

– Ainda que pudéssemos mostrar você em nosso palanque, fazendo acusações desse tipo, não teríamos nada de bombástico que abalasse a campanha de Campeiro. Você é só uma garota esperta que quer ferrar o ex-patrão – deduz um assessor do candidato de oposição. – Vão descobrir que ele é um canalha e isso vai lhe custar a perda de alguns votos femininos. Apenas isso – externa sua conclusão, com descaso. – O que mais você pode nos dizer sobre ele? Algo que nos sirva realmente.

– Ele tem relações com garotos, menores de idade.

Faz-se silêncio por alguns instantes na sala, até os poucos presentes desmancharem suas caras de estarrecidos e as transformarem em alucinadas, como se descobrissem a salvação para todos os problemas do mundo. Ao menos para o mundo do candidato Santos.

– Isso é verdade?

– Onde ele faz isso?

– Você tem provas?

– Podemos confiar?

– Você presenciou?

– Você não está blefando, está?

– Pode nos passar o contato de algum desses menores?

Cada assessor presente faz uma pergunta, quase que ao mesmo tempo. Dulce não consegue respondê-las. Ela não consegue dar atenção a um questionador porque o outro logo a chama com outra pergunta. A chuva de questões a mantém sem poder falar, até que ela pede calma e convida a todos para sentarem-se próximos, no que é prontamente atendida. Os assessores do candidato a cercam como se vissem nela a última esperança.

O depoimento da mulher desperta o interesse no grupo, mas essa denúncia inda precisa de uma confirmação, uma prova factível. Diante da novidade que pode inverter a eleição já na reta final, os assessores abreviam a reunião e vão tratar diretamente com o candidato uma nova estratégia de campanha, utilizando essa arma, ainda sem munição.

De volta ao interior de Goiás, Dulce passa os últimos dias que antecedem a eleição na expectativa de que Charliston Campeiro seja denunciado pelo candidato opositor e punido nas urnas pelos eleitores.

Sem nenhuma alteração no final da campanha, o senador Charliston Campeiro é reeleito com uma ampla vantagem na contabilização dos votos. O candidato Santos, como apontavam as pesquisas, obtém uma votação inexpressiva.

No dia seguinte à eleição, Dulce resolve ir até o comitê do candidato derrotado. Não quer uma explicação, mas apenas desabafar. Foi isso o que fez ao entrar na sala. Onde antes havia assessores em reunião, agora ela enxerga apenas papeis no chão e uma imensa mesa vazia. No fundo da sala, apenas um dos assessores que a receberam no momento em que foi feita a denúncia.

– Pode me explicar o que aconteceu? Não divulgaram nada contra o Campeiro. Havia um acordo de cavalheiros entre os candidatos? – protesta Dulce.

O assessor apenas observa a mulher em pé a sua frente e continua limpando as gavetas de sua mesa.

– Deveriam ter lançado a denúncia na imprensa. Poderiam ter mudado o resultado do pleito. Não entendo porque não usaram isso – continua reclamando.

Sem dar ouvidos à reclamante, o rapaz continua retirando papeis e objetos das gavetas e enchendo mais uma caixa. Um disco de imagens é localizado por ele entre os cartazes e panfletos e passado para ela.

Sem entender o sentido da ação, Dulce leva um tempo até estender a mão para receber o disco. Faz um movimento com os ombros para registrar que continua sem entender nada.

– Não encontramos prova alguma do que você nos falou. Implantamos um detetive na cola do senador Campeiro, montamos um comando de espionagem na mesma rua dele, acompanhamos uma das festinhas das sextas. Queríamos uma imagem que flagrasse o seu relacionamento com garotos. Só conseguimos isso – conclui, apontando para o disco.

Decepcionada, Dulce o deixa em paz limpando as gavetas, guarda o disco na bolsa e sai calmamente da sala.

Novembro

A chuva é convidativa para assistir TV, mas nenhum programa de fofoca da vida privada de artistas famosos encanta uma tarde entediante. Assim, Dulce desiste de acompanhar o programa e toma coragem para, do fundo do guarda-roupas desarrumado, com vestidos e calças jogadas, retirar o disco e o inserir no aparelho de DVD.

O janelão do quarto do senador Campeiro está aberto, como em cada manhã. Na claridade matinal é possível enxergar a movimentação lá dentro. Nas primeiras cenas apenas o senador passa algumas vezes no ângulo alcançado pela câmera, provavelmente instalada clandestinamente no poste de eletricidade na calçada da rua. Depois de alguns instantes sem movimento algum, surge a empregada para a limpeza do quarto.

Dulce paralisa a reprodução do vídeo e lembra os dias em que ela fazia aquela atividade de faxina. O sonho de mudar de vida pareceu mais próximo quando encontrou, naquele mesmo ambiente, uma camisinha que pensou ter sido usada pelo senador. Agora, numa desilusão grandiosa, ainda sem saber quem é o pai secreto do seu filho, solta a pausa no controle remoto e volta a prestar atenção na filmagem.

Depois de acelerar a reprodução, volta à velocidade normal quando nota uma movimentação na imagem. No escurecer do dia, a luz do quarto acende e o senador passa do banheiro em direção à cama. Alguém, que acabara de entrar, passa na mesma direção da cama. É um outro homem que, ainda de pé, tira a roupa e se move vagarosamente ao encontro do senador. A luz é apagada e, de costas para a janela, o estranho se desloca para o banheiro. Não dá para identificar quem está no quarto com o senador, mas certamente não é o rapaz que ela imaginou.

Mais alguns minutos de expectativa e a cena registra outros movimentos do homem estranho que acompanha o senador. Agora ela assiste à filmagem com maior atenção. De repente, aquela pessoa lhe parece familiar. O homem reaparece seguidamente, mas o seu rosto não se volta para a janela. Os dois continuam no quarto, sem serem identificados pela filmagem.

O choro do bebê a faz paralisar outra vez a reprodução. Ela se afasta até o berço e logo em seguida, movida pela intensa curiosidade de ver na tela a revelação do que tanto a angustia, volta ao sofá com a criança no colo e solta a pausa.

Mais alguns segundos de espera e Dulce abre bem os olhos e leva a mão à boca. O estranho está identificado. Estarrecida, ela descobre o amante do senador e pai de sua criança. No instante em que o homem se levanta e, com o rosto escurecido aparece na janela, a luz externa ilumina um pouco a sua face. A imagem não é tão nítida e não permitiria a outra pessoa identificá-lo, mas ela conhece bem aquele rosto. Paralisada, apenas murmura a decepção de sua descoberta:

– Calado!

Eri Carmo
Enviado por Eri Carmo em 28/10/2023
Reeditado em 29/10/2023
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