UÓLACI, E A ARTE DO MOVIMENTO

O moleque veio ao mundo em movimento, na gravidez sua mãe sentia a agitação do feto, ele chutava, balançava a cabeça e seus bracinhos já faziam bagunça no barrigão. E olha que passara por uma gravidez anterior tranquila.

Em pouco tempo, Uólaci passou do engatinhar para as duas pernas, e logo conseguia correr no pouco espaço da diminuta residência da família encarapitada no alto do Morro da Mangueira.

O ambiente musical e a irregularidade das vias internas da favela aprimoraram o balanço do garoto, que passou a subir e descer as espremidas vias de terra que serpenteiam o morro, como se estivesse na amplidão das calçadas lá do asfalto.

Então, dois novos objetos entraram na sua vida para ficar: a bola de futebol e o tamborim, este último, que abriu portas para tantos outros instrumentos de percussão que musicavam sua trajetória de artista.

O garoto magricelo e de pernas compridas logo se fez presente nos projetos sociais da comunidade. Destaque no gramado sintético, e surpresa no barracão de ensaios da escola de samba. Para seus amigos, aquela pele retinta contrastando com o brilhante sorriso de dentes brancos em conjunção àqueles olhos escuros sobre um fundo branquinho acabaram definindo seu apelido, alma.

Precocemente se apresentava na ala infantil da escola de samba, no Sambódromo. No futebol, fez teste e foi aceito na divisão de base do Clube de Regatas Vasco da Gama, ali no vizinho bairro de São Cristóvão.

O sucesso conseguido simultaneamente nessas duas paixões nacionais: samba e futebol, não se repetia nos bancos escolares. Afinal, Uólaci era movimento, para a psicóloga da escola ele deveria tomar Ritalina, e assim controlar sua hiperatividade. Seus pais discordavam do diagnóstico, e não aderiram ao tratamento.

Para qualquer adolescente permanecer horas sentado, ouvindo a monocórdia voz da professora, se conformava como síntese do tédio, imagina então para Uólaci. A saída desse pesadelo veio sob a forma de bocejos e rápidos cochilos em sala de aula.

Tanto no clube de futebol, como na quadra da escola de samba, sua evolução meteórica, exigia troca constante de turma, ele precisava de contínuos desafios. Na quadra era capaz de quase levitar enquanto sambava, seus movimentos eram graciosos, suas pernas longas permitiam ações inusitadas. Para descansar das piruetas, pegava algum instrumento e seus companheiros paravam o que estavam fazendo, para assistir sua esmerada técnica.

No Vasco da Gama, ninguém mais queria marcar o ensaboado atacante, de corpo esguio e pernas rápidas. Seu drible ao leigo pareceria sempre o mesmo, pareceria, na realidade pequenas variações aconteciam espontaneamente. Tinha como hábito encarar o marcador, e nessa troca de olhares, a bola já tinha sido jogada para frente. Pronto na corrida ele não tinha competidores a altura, fui....

Com dezesseis anos já desempenhava o papel de porta bandeira da escola e jogava futebol entre os profissionais do clube. Com o sucesso, ampliou o contingente de seguidores do seu perfil nas redes sociais, que superava meio milhão de seguidores.

Como todo atleta ou artista bem sucedido, ele também optou por se mudar para a Barra da Tijuca. No caminho para os jogos, não importando o meio utilizado ônibus oficial ou avião, na bagagem do Uólaci, Alma para os mais chegados, não faltavam instrumentos musicais. Ele, além de puxar cantorias, incentivava os demais atletas a participarem dessa banda improvisada.

A ganância de dinheiro do clube aliada a do empresário do jogador, contratado para intermediar contratos com o clube, ou com possíveis patrocinadores, acabou gerando uma venda internacional, com valores estratosféricos para a realidade brasileira. No final todos ganharam muitos euros.

O atleta foi parar no Lokomotiv, clube de Moscou, muitas vezes campeão russo. Logo que chegou a capital soviética, Alma se impressionou com as instalações esportivas do clube, que em nada lembravam as precárias condições de seu clube anterior.

Sua chegada à Rússia do ditador Putin, coincidiu com a entrada do outono, e em poucos dias a temperatura começou a cair, e não parou mais. Ele em desespero ligou para os pais, relatando seu sufoco diário, que começava com a inviabilidade de comunicação, se nem inglês ele entendia, o que pensar do russo.

Para não assustar a família, nem tocou no assunto frio. Seus pais desembarcaram trazendo calor humano, feijão e café. Ele sentiu que talvez desse para aguentar o tranco, na casa bem equipada, gentilmente cedida pelo clube. Mas os pais, com idade mais avançada, não resistiram a essa vida levada entre quatro paredes. Bastava abrir a porta da rua, que o vento polar penetrava nos ossos. Não demorou uma semana, para que desistissem da empreitada e retornassem para o confortável e ensolarado apartamento na Barra da Tijuca, depois de viveram boa parte da vida em precárias condições periféricas da favela.

Uólaci não aturando a situação, convocou seus parceiros de batucada e de bola, para passar uma temporada com ele, mas a história voltou a se repetir. Depois da chegada eufórica, com muita alegria, recordações à beça e muita batucada no intervalo entre treinos e jogos. Mas ninguém conseguia superar a uma semana de vento frio, neve e dias cada vez menores. Isso para não falar no russo, aquela névoa branca que impedia uma visão superior a dois metros além da janela.

Não demorou muito para os primeiros sinais de depressão se abaterem sobre o coitado do Uólaci. Aquela rotina de frio intenso, não apenas na natureza, mas também entre colegas de trabalho. Treinar e jogar futebol na neve não é realmente coisa para brasileiro.

Todas as externalidades atingiram em cheio a autoestima do atleta, que sem motivação, foi parar no banco de reservas, e logo, nem mais para lá ele era convidado.

Sem aparecer a três dias no clube, um funcionário foi a sua casa para saber o que estava acontecendo. Ao se aproximar da residência, achou estranho encontrar janelas abertas.

Exames toxicológicos confirmaram ingestão de coquetel de barbitúricos, regado a vodka.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 25/10/2023
Código do texto: T7916478
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