MÁGOA DE PEÃO

MAGOA DE PEÃO

(Dux Pellegrino/Gerson Zequim 1996)

O peão trabalhava com seu pai desde que aprendeu a andar, com catorze anos ficou paraplégico devido a um choque térmico sofrido quando com febre alta entrou nas águas geladas de uma lagoa para recolher um jumento. Depois de dois anos prostrados em uma cama ele se esforçou para “cachingar” pela casa apoiado em uma muleta, no final do quarto ano o peão já era capaz de se locomover sem o auxílio do aparelho. Respeitado por sua inteligência e força física ele ajudou ao pai a criar os doze irmãos mais jovens, com seu braço ele produzia muito em sua roça e no curral seus animais eram os melhores do rebanho, porém o seu pai se apossava de tudo sem dar satisfação. Aos vinte e cinco anos se casou para se libertar das garras do pai quando comprou um pedaço de terra na vizinhança onde construiu um pequeno paraíso.

Devido a criação na lida roceira o peão não frequentou aos bancos escolares e por isso vendeu o sitio para dar uma chance de estudo aos filhos pequenos. Esse analfabetismo o impediria de galgar melhores lugares na empresa onde trabalhava. Anos mais tarde foi dispensado do emprego de tantos anos ele passou a fazer bicos nos serviços gerais da construção, maquinas de beneficiamento de grãos. O peão fazia questão de andar malvestido para justificar o dinheiro que gastava com bebidas nas noites de quinta a domingo pelos bares da cidade. Com o dinheiro sempre diminuindo pela falta de trabalho, o peão trocou a cerveja pela cachaça e o cigarro moderno pelo fumo de rolo. Certa vez os garotos estavam tomando banho para ir a escola quando o velho chegou desesperado gritando para abrir a porta que ele precisava usar a privada:

- Abre! Abre! Que estou apertado. Solicitou o pai.

- Abre logo menino, o seu pai precisa entrar agora. Completou a mãe.

O mais novo intentou abrir a tramela, mas foi contido pelo irmão mais velho que acenou com a mão para ficar em silêncio. De repente os meninos ouviram um sussurro:

- Hi, me caguei. Disse o pai do lado de fora.

Os filhos sorriam silenciosamente com medo do pai ouvir, pois aguardavam essa chance de se vingar do velho que colocava apelido nos quatros filhos e na esposa, chamava a mãe de “cassaí”, o filho mais velho era “jaguara do pelo vremeio”, o filho do meio de “cabeça de comacho” e os filhos mais novos de “caça-cobras”. Quando estava embriagado o peão repetia algumas frases que somente ele sabia o significado como:

- Quer fazer graça “imriba” de minha cara!

- Peidou Lídia? Não pai bufei.

- Você está querendo ménage.

Uma vida sem sentido para um homem que trabalhava de sol a sol de segunda a sábado e se embriagava quase todas as noites, sendo que nas tardes de sábado e o dia de domingo ele promovia o inferno dentro de sua casa com agressões a esposa e os filhos pequenos. O peão não aceitava ter deixado a pacata vida roceira para estudar os filhos que não valorizavam essa atitude e apenas um deles prosseguiu na vida acadêmica. Um matuto se matando de trabalhar na construção civil em troca de um salário miserável para sustentar a família sem direito a lazer, trajando trapos, calçados furados, montado em uma velha bicicleta, sem assistência médica, praticamente um ser invisível a sociedade liquida. O velho peão com os olhos marejado dizia aos seus familiares que depois de sua morte, a sua sepultura se racharia em forma de cruz para denunciar a sua mágoa contida. “Vai boi Penacho puxa o carro boi Carreiro, companheiro de viagem nas quebradas do sertão, leva essa carga, rasga o barro do caminho, se couber leva um pouquinho da mágoa desse peão (ZÉ MULATO e CASSIANO,1997).

Ele foi definhando até ser internado na Santa Casa Municipal, mas seu corpo já estava consumido pelo álcool, então os médicos lhe deram algumas horas de vida como sentença, porém ele pediu ao filho que lhe fizesse o último favor. O garoto saiu rapidamente da enfermaria e retornou alguns minutos depois para servir discretamente o último gole de cachaça, que foi degustado como despedida dessa vida curta. O velho peão balbuciou bem algumas palavras incompreensíveis, mas os filhos sabiam que ele estava pedindo perdão de suas falhas e permissão ao criador para se juntar aos sofridos que Jesus tanto falou nos evangelhos. O peão deu uma gargalhada que ecoou em todos os ambientes daquele lugar e depois seu espirito retornou ao pai e seu corpo ficou para voltar ao pó, como está escrito. Vinte e cinco anos depois de sua morte os filhos reformaram a sua tumba para retirar a rachadura que seu pai tanto falou.

Os filhos exumaram os cadáveres dos ancestrais, construíram uma tumba com maior capacidade e colocaram os restos mortais em um caixote no canto do sepulcro, ali eles estão a espera do próximo ente que cruzará o portal da outra vida. Um dos filhos resistiu em participar da reforma e foi convencido pelos demais diante da sugestão de que ele poderia ser o próximo morador daquele campo.