CURA PARA HISTERIA

Desde quando ainda nem andava, Semira fazia o maior escarcéu se algo lhe era recusado.

Batia os pés, chorava convulsivamente até perder o fôlego, atirava-se no chão, revirava os olhos e outros artifícios dramáticos que seriam curados com umas palmadas bem aplicadas na bunda gorda nos momentos adequados.

Mas por ser filha única, nascida depois que os pais tinham perdido os dois primeiros por doenças perfeitamente evitáveis se houvessem bons hábitos de educação e higiene, todos os seus desejos eram atendidos sem quaisquer argumentos. Semira desconhecia o significado e a importância da palavra não.

O tempo passou e o pai morreu deixando a pensão magra que não permitia que a mãe pudesse continuar satisfazendo todos os desejos da filha.

Num dia em que estava com o mau humor à flor da pele, Semira resolveu que iria trabalhar. Que não ia mais precisar da ajuda de “ninguém”.

Ninguém era a mãe, tola e desvalida, que estava em prantos por causa do que a filha dizia em altos brados.

Semira pouco ou nada sabia que lhe garantisse um emprego numa loja ou escritório e depois de muito procurar, conseguiu arranjar emprego de doméstica na casa do Sargento Otaviano, porque dona Lia, mulher dele, não estava mais dando conta dos serviços da casa e do cuidado com os sete filhos do casal.

Acertaram um valor qualquer que seria pago dentro de um mês à guisa de salário, porque as duas não tinham a menor ideia do que seria salário mínimo e também porque, naquela época, emprego doméstico era semelhante ao trabalho escravo com casa e comida garantidos, mas pouca coisa em moeda sonante.

A maior parte do trabalho de Semira era cuidar das crianças menores, brincadeiras ao ar livre que mais parecia parque de diversão do que trabalho.

Com o dinheiro do primeiro salário no bolso, Semira viu uma bolsa numa loja e resolveu comprá-la, mas o valor recebido estava muito aquém do preço da mercadoria de luxo, alvo do seu desejo.

Na manhã seguinte, foi reclamar dos patrões.

O salário era muito pouco, não dava para comprar nem a bolsa dos seus sonhos. Ela queria aumento imediato.

Acostumada desde sempre a ser atendida em todos os seus desejos, chegou falando grosso com dona Lia.

O sargento era enfermeiro no hospital militar e estava de folga por ter cumprido plantão duplo.

Ouvindo o escarcéu, veio apaziguar a situação, mas quando Semira entendeu que não tinha mais dinheiro para receber e que o sonho da bolsa tinha ido para o espaço, apelou para o artifício do ataque histérico.

Prendeu a respiração, desabou no chão com os olhos virados, espumando pelo canto da boca como se tivesse sofrendo uma crise epilética.

Conhecedor das sutilezas dos espertos, o sargento pegou a seringa na bolsa de trabalho e injetou 1cc de éter na bunda da “desacordada” Semira.

Acontece que o éter é volátil em temperatura ambiente, imagine a ebulição que ocorreu em contato com os 37º C do corpo.

A sensação de ser perfurada com ferro em brasa, fez Semira levantar-se como se houvesse sido catapultada e aos gritos de dor voltou para casa em desabalada carreira.

Depois desse santo remédio ela não voltou para o trabalho nem teve mais nenhuma crise histérica...

GLOSSÁRIO

1cc = 1 ml

Éter = Etoxietano (substância química, fórmula C4H10O) de uso medicinal antisséptico e anestésico. Na mitologia grega significa céu superior.