Uma viagem para interior de seu corpo

Conto e reconto essa história mil vezes para mim mesmo, dizia ele, imersa na profundidade de seus botões. Eu acordo com o peito contorcendo em um sentimento quente, pesado e dolorido. Talvez seja angústia, talvez seja ansiedade. É um misto de dor e expectativa, uma expectativa de algo iminente que não quero que aconteça. Porém, na maior parte das vezes não acontece nada.

– Isso é bom, não é? – Ele escuta alguém falando e olhou pros lados, mas não tinha ninguém. Seria de dentro de sua cabeça?

– Bom? – Ele resolveu fazer de conta que era tudo muito natural. Estava vivendo uma realidade surreal dentro e fora de casa, então, porque uma vozinha de interlocutor desconhecido iria assustá-la? – Bom é questão de ponto de vista, isso eu posso te afirmar. – Ele deu um profundo suspiro. – Quando acontece alguma coisa, esse sentimento quente, pesado e dolorido se transmuta. Ele fica mais pesado, mais dolorido. Vira uma agulha afiada no peito. Confesso que fico muito mal. Quando não acontece, o sentimento fica ali, dia após dia, no vazio do nada que não acontece, esperando algum momento. Ele fica, entende? Não é que ele quer que aconteça, mas também não quer essa pedra quente em dele…

Ele esperou um pouco, pra ver se outra pergunta se formava, mas ninguém perguntou mais nada. Ai, aos poucos, foi sentindo um grande peso. Provavelmente está entrando de volta no seu corpo, pensou, despertando vagarosamente e dolorosamente. E antes de abrir os olhos, entendeu que aquele diálogo improvável acontecia dentro de sua cabeça.

Ele abriu os olhos e ficou a observar. Fazia dois dias que o sentimento pesado, quente e dolorido estava machucando seu peito. Ele levou uns segundos até aparecer hoje de manhã, mas estava lá, firme, batendo cartão. Hoje mais forte que ontem, ontem mais forte que antes de ontem. Ele esperava, como um verme pronto para devorar um cadáver em decomposição. Ele esperava acontecer, mas ontem e antes de ontem, nada.

Mas hoje sim, hoje era domingo de manhã, ela podia ficar um pouco mais na cama. A esposa foi quem levantou para fazer o café e ele ficou ali, observando, sentindo o sentimento corroer o seu peito. A expectativa. A maldita e desnecessária expectativa, quente, dura e certa.

A menina entrou no quarto confusa. Ele disse: Deita aqui, meu amor, perto do papai. E com a criança do lado, o sentimento afrouxou, foi embora por uns segundos, e ele pôs-se a conversar animadamente com a filha. Mas curvou-se para o lado um pouco e ao fazer a pergunta, não obteve resposta. Antes de virar, já sabia.

Olhou para a criança, que se desconectara completamente. Só o corpo estava ali, a consciência dele não. A consciência dele está bem longe daqui, dissera a médica. E durante os minutos que se seguiram, ele entendeu que o sentimento duro, quente, pesado, não tinha afrouxado. Ele estava transmutando-se, igual uma larva que se transmuta em uma mariposa horrorosa, porque enquanto o menino tinha a crise, ele ressurgia, como uma faca de mil pontas, afiada e cortante, perfurando o coração.

A criança permaneceu na inconsciência, cinco, dez minutos. Foi voltando aos poucos, queria tomar café. Enquanto a menina levantava-se, o pai sentou na cama. Ficou ali, olhos fixos no nada. Uma profunda lentidão tomou conta dos seus movimentos, e, quando o sentimento fincou os espinhos penetrantes em sua carne, quando ele sufocou sua garganta e enfiou as garras em cada músculo do seu corpo, ela não reagiu. Nada pensou, apenas disse.

– Estou oco.

Jova
Enviado por Jova em 06/06/2023
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