O CONTO BRAVO E O MÚSICO INFELIZ

O Conto, hoje acordou azedo. Imagine uma limonada sem açúcar misturada com hipoclorito de sódio com validade vencida.

Do gabinete de trabalho, escutava-o brigando com a Crônica, crítico, desnexo, desvelado por ela estar bem-escrita. Discutia com o Romance. Maltratava o Poema. Xingava a Poesia. De repente, descabelou-se tendo-me como alvo do seu destempero, gritando que sou parcial na minha escolha do escrito da vez. Acusou-me que demoro demasiado em escrevê-lo. Que, ultimamente, escrevi oito Crônicas seguidas, diversos Poemas e estar dedicando um demasiado tempo ao atual Romance. Que os recheei com perfeitas Poesias. E que, para ele, nada de palavras, frases, ou adocicada Poesia. Nadinha; de nada! Nadinha; de nada! gritava como uma criança mimada queixando de estar com fome sem perceber a mamadeira cheia na sua boca.

Não interfiro ou me meto nas inspirações! O papel principal são deles. Todavia, como o meu nome foi colocado no ringue, como adoro pugilismo e não dispenso briga, entrei de supetão. Coloquei cada um na sua janela, minimizando-as, calando-os. Adverti-os que com mais um pio, com uma vírgula fora do contesto, uma frase descabida ou um ponto final antes da hora, que deixarei de escrevê-los para todo o sempre. Aposentaria-me. Desinstalaria o Word e que venderia o Notebook.

E a paz reinou...

Abri, somente, a janela do Conto brigão. Prometi atenção aos seus queixumes e que se fizesse em inspiração. Ele, calmo e suave como uma poesia com rosa e beija-flor, pediu-me um escrito de brevidade. Sem longo enredo ou diversos personagens. Dispensa de cenários elaborados, cores e o glamour de uma cortina, pois recusa-se ser peça de teatro. Nada de tela grande, pois não será filme de longa-metragem. Nunca o vi determinado e exigente para, certamente, provar-me ser eu um canastrão na arte.

Resumiu a precisão: que tenha aquele beco da avenida central com seus ratos, escuro e frio como a visão infravermelha do Telescópio James Webb mais longa e profunda do Universo, cheirando urina e fezes dos esquecidos pelas canetas das autoridades. O beco, com seu piso cheio de colchões ortopédicos de papelão aos seus moradores para as noites intermináveis sem sonhos, com ecos das tosses de pulmões inexistentes uivando à lua e roupas maltrapilhas de tecidos jamais lavados.

Determinou, imperativo afirmativo, que precisava, apenas: do Tempo com nome e sobrenome Breve em sua carteira de identidade; do beco; de um homem vagueando sem personalidade e dignidade por muitas luas; do violino “Hellier” Stradivarius valendo mais de cinquenta milhões e construído pelo próprio sr. Stradivari. E, finalmente, que precisava de um anjo; apenas um. Assim seria o conto que o Conto gostaria de ser.

Tratei de seguir a sua ordem. Escrevi-o, breve, exposto sucinta e resumidamente como uma única dose de sentimentos servido em taça de cristal quebrada, num rápido golado sem inspiração e expiração:

“O homem chegou da ronda pela cidade ao seu lar-beco, como sempre humilhado, carregando dores e frustrações. Coloquei adjetivos que identificam o mau cheiro das suas roupas, seus arrotos etílicos, estômago esfomeado implorando por mais sorte de uma refeição no dia de amanhã. Descrevi o famoso ‘Hellier’ Stradivarius sobre o seu colchão usando o cuidado das frases dignas com o seu valor e história. O personagem, que recusou um nome, sentou-se com o instrumento à mão. Levou-o junto ao corpo na posição que lhe cabe estar. Sorrindo, como a leveza da pureza mais bela de uma criança iniciou a sua sinfonia. Magistralmente, a obra atingiu os ouvidos dos astronautas da Estação Espacial Internacional, os religiosos pararam suas orações diante daquela oração sonora e harmoniosa, os enamorados desamados no planeta se beijaram e se reconciliaram, malucos vestidos de governantes deram tréguas nas guerras, e a natureza iniciou o seu processo de regeneração. E outros milagres aconteceram.

O mendigo calou o instrumento...

Deixou algumas gotas de lágrimas tingirem seus olhos necrosados de feiuras do dia a dia...

Recolheu-se nas suas dores cheio de saudades e nostalgias e, antes de chegar o eterno, sobressaltado e inacabado sono das malditas noites, um Anjo da Morte com sua intensa e brilhante luz envolveu-o com amor, dando-lhe a dignidade da sua história de um famoso músico escondido nos palcos de ribaltas esmaecidas pela mazela humana. Libertou-o para voltar a criar suas sinfonias. Enxugou com doçura os seus olhos, fechando-os para que visse somente a beleza da eternidade. Sua missão terminara.”.

Fiquei parado diante da tela, apreensivo e com o medo de não o ter agradado.

Relativa demora...

E, de repente, o Conto agradeceu-me pelo esforço. Esperou que desligasse o Notebook e, feliz, deu-se por encerrado.

Arabutã Campos
Enviado por Arabutã Campos em 05/06/2023
Reeditado em 05/06/2023
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