ACIDENTE NO ALASCA

Quando seu Olegário chegou na porta do bilhar de Tota Medrado, antevendo mais uma mentira das boas, Marcolino falou sem sair de detrás do balcão.

- O tabelião seu Mané Fagundes disse que o senhor tem um couro de urso. É verdade seu Olegário?

- É, e não é. Porque eu ganhei o couro na competição lá do Alasca, mas não trouxe não.

- E o senhor foi pro Alasca competir, foi? Me conte essa história...

- Isso já faz tanto tempo que eu nem me lembrava mais...

- Mas conte assim mesmo, sem os detalhes, é só dizer como foi.

- Olhe menino, se a gente não contar o acontecido nos mínimos detalhes as pessoas podem pensar que é mentira e você sabe que eu detesto gente mentirosa.

Marcolino colocou na mesa o prato com tripa frita e a cerveja véu de noiva. Serviu o copo e, sentado num dos tamboretes, esperou o início da narrativa.

- Eu era adolescente. Acho até que mais novo do que você e o meu professor de inglês era da Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos e, naquela época, que não existia esse tal de zatizapi, as pessoas conversavam por cartas e tinha um programa de correspondência entre os adolescentes dos dois países, aí ele trouxe um bocado de cartas dos meninos de lá e perguntou quem queria trocar cartas com eles.

Era assim a gente escrevia em Português e eles escreviam em Inglês, que era para um treinar o outro na maneira de se comunicar.

Eu nunca fui apreciador da língua deles, mas fiquei com pena de uma carta que ninguém quis. Era de uma menina de uma cidade lá dos confins do Alasca, canto frio de torar, que quando o termômetro de lá chega em três graus, o povo já veste roupa de banho e vai para a praia.

- Que lugar excomungado é esse seu Olegário?

- Pois é, meu filho. Você acha que o resto do mundo é que nem aqui? Com esse calor bom para tomar cerveja? Tem canto que o sol não aparece de jeito nenhum...

- Aí a competição foi por carta, foi?

- Não. Deixe de seu avexo.

Fazia mais de ano que eu trocava cartas com Mary, uma mocinha mais nova que eu, aí ela disse que ia ter a festa anual da cidade e que era uma boa oportunidade para eu conhecer o Alasca para saber como era lindo e maravilhoso o lugar em que ela morava e que já tinha falado com os pais dela para custear a minha viagem.

Aí eu mandei dizer a ela que era muita cortesia, mas que eu não poderia aceitar.

Afinal era uma despesa muito grande que nem a minha família nem a família dela podia arcar só para eu conhecer um lugar novo.

Dias depois, na semana do natal, o cônsul dos Estados Unidos foi lá em casa falar com meus pais para eles autorizarem a minha viagem.

Que eles não teriam que se preocupar com nada, nem com as roupas de frio que já estava tudo providenciado porque eles tinham um filho da mesma idade que eu. Que era gente muito religiosa e respeitadora e que se meus pais deixassem, não teriam que gastar nem um tostão.

Aí meu pai me chamou na sala, contou o que estava acontecendo e perguntou se eu queria ir.

Aí eu disse: óxe pai, isso é lá pergunta que se faça? Eu quero ir sim, e agora mesmo se puder...

Aí o cônsul disse que eu me preparasse, porque a viagem seria na primeira semana de fevereiro que era quando ia acontecer a festa. Eu ia viajar no dia trinta e janeiro e no dia dez de fevereiro já estaria de volta

Cheguei lá mais moído do que arroz de terceira, mas estava muito feliz.

Além de Mary, que falava português muito bem, fiz amizade logo de cara com Douglas o irmão dela, que todo mundo chamava de Doug, porque americano tem mania de comer os pedaços das palavras.

Eu tive que me acostumar a responder todas as vezes que eles me chamavam de Oleg.

Do aeroporto para a casa deles nós fomos de trenó puxado por oito cachorros.

Que coisa boa, andar naquilo deslizando por cima do gelo, aí eu pedi a Doug para guiar o trenó.

O pessoal ficou admirado com a minha destreza, mas eu um cabra acostumado a carrear por esses estradão, não tinha dificuldade nenhuma na trilha que já estava marcada por conta do monte de gente indo e voltando.

Outra coisa é que cachorro é mais inteligente do que boi de carro e conhece a mão firme de quem está dirigindo.

No dia seguinte ia ter a corrida de trenó.

Em vez de sair tudo junto, como corrida de cavalo, sai um trenó, eles dão um tempo, parece que dez minutos e depois sai outro, e sai outro e outro até acabar os concorrentes inscritos.

O trenó de Doug tinha ficado por último e Mary deixou que eu fosse no lugar dela ajudando o irmão a fazer a carreira.

O mês de fevereiro é o mais frio do ano, tudo que não tiver protegido, vira gelo.

Tem local que o gelo tem mais de um metro de grossura por cima da água do rio que continua correndo lá por baixo.

É a coisa mais perigosa do mundo.

Se alguém cair e se molhar todo é morte certa e se molhar só o pé ou a mão, perde porque engreguena na mesma hora.

A trilha já estava bem usada, e Doug pensava que não havia problema nenhum.

Eu até disse a ele, vá mais devagar porque esse gelo pode já estar fino demais para aguentar o peso, mas ele ou não entendeu o que eu disse ou porque queria ganhar o prêmio, danou-se a estalar o chicotear para estrumar os cachorros a correr cada vez mais rápido.

Numa curva feita de mal jeito, o trenó virou e ele caiu num lugar em que o gelo estava partido e a água do rio encheu as luvas que viraram duas pedras de gelo no mesmo instante.

Se não agisse rápido, ele ia perder as duas mãos, mas aí eu me lembrei de um livro que tinha lido enquanto esperava o dia de viajar para lá, e sabia que quando acontece um acidente assim, a única coisa que pode salvar o cristão é abrindo o bucho do cachorro e botar a parte congelada dentro porque está com temperatura perto dos quarenta graus aí recupera a circulação na hora.

Cortei as luvas dele com a faca que estava no trenó, desatrelei um dos cachorros, abri o bucho dele e enfiei as duas mãos do meu amigo no meio do fato do animal.

O grito de dor que ele deu foi tão grande, misturado com o uivo do cachorrão quando levou a facada que o pessoal do socorro veio ver o que era que estava acontecendo.

Aí levaram ele para o hospital e o pior não aconteceu.

Nessa competição, o couro do urso era o prêmio para quem demonstrasse ato de bravura e por ter salvado o meu amigo de perder as duas mãos, eles me deram o prêmio, mas eu não podia aceitar, porque eu não tinha feito nada além da minha obrigação. Aí a família muito agradecida pelo meu gesto me deu uma faca bonita com cabo feito com chifre de caribu.

- Oh seu Olegário, o senhor deu uns pega na Mary?

- Rapaz, você tá pensando o quê de mim? Como é que eu podia desrespeitar uma família decente como a dela? Você me respeite, seu cabra.

- Òxe, seu Olegário, era só para saber...

E com a voz sumida dos arrependidos, perguntou para aliviar a tensão;

- O senhor ainda tem essa faca, seu Olegário?

- Olhe, ter eu tenho, porque nunca me desfiz dela, mas faz muito tempo que não vejo.

Deve estar no meio daquela bagunça que Zarolho faz no depósito da fazenda...

ADVERTÊNCIA

Este texto foi produzido sem os rigores gramaticais, obrigatórios à linguagem culta, a fim de emprestar maior veracidade à historinha.

GLOSSÁRIO

Avexo = pressa, no contexto.

Engrenguenar = gangrenar

Estrumar = instigar, estimular

Fato = intestino, vísceras

Ôxe = aglutinação da expressão Oh! Gente, denota admiração