Sem espera, sem boas vindas

Iė, que foi assim. Assim, desse jeito, sem tirar, nem por, na conta certa, sem mais, sem menos, foi assim que o acontecido aconteceu. O sujeito chegou, chegou despois de traveis ter ido sem despedida, sem arrumar morada certa. Foi assim, na surdina, coisa de quem num quer despedida, num quer saudação. Estranho. Estranho foi sim, sair igualzinho ladrão que chega, de noitinha, no silêncio da noite, lua solitária, ruas vazias, tão sem alma, tão sem sinal de coisa viva, que dá pra ouvir, sem muito esforço, só ficar quieto, dá pra ouvir o respirar da coruja. Ié, foi assim mesmo. O sujeito foi e ninguém viu. Igualzinho ladrão que chega e sai sem deixar rastro. Foi assim que o sujeito foi, sorrateiro, sutil, morno morno, nem quente, nem frio. A pois que no dia despois de ter ido sem rastro marcado, a mulher e mais treis filhos, todos mirrados de fome, imagina que o sujeito foi e deixou mulher e filhos esquecidos, sem recursos e sem um nada pra comer. Sujeito desalmado, sujeito sem coração. Disse o vigário, disse na missa em encomenda a memória da senhora Ninoca, mãe de Jacinto, pedreiro e agricultor, muito estimado, disse o vigário que o desalmado pagará ao Altíssimo. Que abandonar mulher e filhos não é coisa de gente que tem coração.

Mas o sujeito voltou, não voltou, perguntou a Terêncio, o senhor Ubalino, ex prefeito e atual secretário de assuntos humanos. E se diz que voltou, respondeu Terêncio como se a resposta pudesse lhe custar tormentos. Não acrescentou mais nada; respondeu e saiu. Saiu às pressas feito cachorro chutado. Seu Ubalino nada disse, apenas observou mas nada disse. Fosse o que fosse, não carecia perguntar. Cada homem, em si, sabe o que pensa. Sabe que do que se diz, por mais que se diz, sempre fica um ramo do assunto guardado. Não que se queira segredo, não. O que se guarda é para que o espírito consiga, ele próprio, e sem ajuda, avançar no entendimento. Pode um dia resolver contar? Sim! Claro que pode. Mas esse contar será diferente do primeiro que não contou. É igual ao vinho: se guarda no barril para que se desenvolva, para que seus elementos, todos, ao serem amalgamados, produzam novas combinações e incorpore à bebida sabores e fragrâncias que não teria se servisse tão logo a uva fosse prensada. É por isso que alguns vinhos tem sabor (personalidade, na linguagem do Sommelier) amadeirado, floral, cítrico, suave, etc. Dito de modo um pouco diferente: o vinho precisa, como o sujeito que guarda seus segredos para posterior divulgação, tanto um como o outro, se dão o tempo próprio para o que o espírito guarda se revele mais disponível e agradável a quem se destina. Assim é, pois que é. Viver conforme a vivência, não querer que as coisas venham antes do tempo. Seu Benedito sempre dizia "quem adianta o tempo, encurta a vida". Seu Benedito era homem muito que sábio. Falava coisas que faziam a gente pensar. Era homem de fala pouca, porém, muito precisa. Nada do que seu Benedito falava, nada, nadinha, era sem importância. Pena foi quando seu Benedito teve que ir pra cidade. Foi pra ajudar cuidar de uma filha que ficou muito doente. Inté que faz tempo que ele foi. Às veis, dona Neneca, esposa de seu Laurentino, vó, de Raimundo, o mundingo, das coves, às veiz, dona Neneca tráz noticia da cidade. Da última veiz disse que a filha do seu Benedito estava bem recuperada e que ele resolveu ficar por lá para ficar com os netos. Que seu Benedito estava bem, que mandou abraço pra todo mundo.

Dona Laurinda, a beata, filha da outra beata a Aparecida, já falecida, dona Laurinda, que da vida mundana só conhecia os pecados, certa feita, por pura ousadia da língua, se pôs a dizer que Gervásio e sua senhor, dona Divilandia, estavam em prontidão de separação, que ele tinha amante e ela tinha outro. A pois é claro que nada de nada ficou provado. Seu Gervásio e dona Divilandia continuam casados, com as bençãos do Senhor, costuma registrar, dona Divilandia, e felizes com a chegada do primeiro netinho, o Raul.

Assunto verdadeiro, cada um guarda o seu. Nada dizia, nada mais, seu Gerônimo quando perguntavam se sabia do sumiço do Reginaldo. Segredo bem guardado, ora, pois sim que é, disso ninguém duvida, que segredo guardo igual tesouro raro, escondido, ora, pois sim que é, ninguém mais que duvida, gente de cabeça oca não sabe guardar segredo, gente de cabeça oca, igual cesto vazio, sem nada, nadinha de nada, cesto vazio, não traz nada, igual é cabeça oca, por isso não sabe, ora pois, não sabe que segredo bem guardado garante que se vive mais tempo, pois sim que é, dizia, seu Gerônimo quando perguntavam sobre sumiço do Reginaldo.

E pois, foi assim, o sujeito chegou sem aviso e sem anúncio. Chegou e ninguém quis saber de dar boas vindas. O sujeito não apreço de ninguém, abandonou esposa e filhos, um sujeito sem coração, sem uma nada de consideração. Não mereceu boas vindas. Chegou e ficou, esquecido.