Às vezes tem razão quem nunca tem razão.
Marcelo, amigo meu de longa data - e ao dizer longa data estou a dizer que o conheço há uns trinta anos -, nunca foi reconhecido pela sensatez, que ele jamais revelou possuir, e menos ainda pela inteligência, da qual ele, direi a verdade, é desprovido. A vida não lhe foi generosa. E não digo por mal. Embora não conte com a graça da sensatez e com a da inteligência, é ele um homem boníssimo, extrovertido, espirituoso, de bom coração, mesmo que não seja seu coração perfeitamente são, sempre a estender as mãos, e não raro em seu prejuízo, às pessoas que a ele, nunca em vão, recorrem em busca de ajuda. Não é um espartano; nem estóico ele é. E também não é um liberal desmiolado. Estão nele, misteriosamente, e inexplicavelmente, fundidos, a parcimônia, a avareza e a liberalidade. É ele, inegavelmente, um tipo singular. Há quem, fazendo-o de bobo, ato reprovável mais fácil de se concretizar do que roubar pirulitos às crianças, cai em desgraça, fica em maus lençóis e come o pão que o diabo amassou, e não por um ato de vingança do meu amicíssimo Marcelo, mas devido à reação de quem vem a saber do ato maldoso praticado contra ele. É ele querido de todos. Nunca roda a baiana; nunca solta os cachorros para cima de ninguém. Dizem que ele tem sangue de barata. E sempre que entende, o que raramente acontece, pois é sua alma de uma inocência constrangedoramente admirável e incompreensível, que alguém o passara para trás, ri, gargalha, dá de ombros, e segue seu caminho. Distingue-se, e em muitos aspectos - e eu não erraria se dissesse em todos -, de seus irmãos e de seu pai, quatro homens maldosos, atrabiliários, rancorosos, vingativos, sempre a urdirem artimanhas para dar uma rasteira em alguém.
Hoje, ele veio ter comigo, em minha casa, um pouco antes das seis da tarde, a sorrir de uma orelha à outra, a felicidade em pessoa. E tão logo saudou-me, contou-me, no seu tom bonacheirão inconfundível, que nele os amigos tanto admiramos:
- Teotônio Lins da Natividade, meu velho amigo, vós estais bem?
- Melhor, impossível.
- Contar-vos-ei, meu caro, o que hoje me aconteceu, há umas duas horas. E vós não me acreditarás. Meus irmãos, ilustres em toda a cidade, e o senhor meu pai, cuja fama ultrapassa os limites do universo, meus irmãos e o senhor meu pai, meu Marcelo do coração, querido amigo, surpreenderam-me com palavras surpreendentemente amigáveis, simpáticas. Vós não acreditais?! Conto-vos, então, o que de inusitado me aconteceu. Vós sabeis que eles nunca se recusam a me alcunhar tolo, bobo, paspalho, azêmola, bocó e coió-de-argola. E de louco. Não o fazem por mal. Eles são geniosos, sei. Conheço-os há cinquenta e dois anos. E vós, que os conheceis, não tão bem quanto eu os conheço, é verdade, mas os conheceis, sabes que peças eles são. Figurinhas carimbadas, raras. Eles sempre divergem de mim, pois, eles dizem, eu digo bobagens, e apenas bobagens, asneiras das grossas, baboseiras, e groselhas, e abobrinhas, e nada mais. Da minha boca, e minha boca fala mais do que eu, dizem meus irmãos e o senhor meu pai, não sai nada de útil, de proveitoso. Só coisa de maluco-beleza. Que seja! Se eles dizem! E porque de mim pensam o que de mim pensam, eles jamais concordam com o que lhes digo; todavia, meu querido, hoje eles concordaram com o que eu lhes disse. Vós se surpreendeis com a notícia?! Ora, palestrávamos, animadamente, e ríamos, e gargalhávamos, e contávamos piadas e anedotas, e zombávamos uns dos outros, tais quais os bons irmãos que somos eu e meus irmãos e o bom pai e o melhor filho que somos o senhor meu pai e eu, seu filho amado, e eu lhes contava histórias, e eles, durante a contação, a me chamarem louco. E assim que eu lhes disse que eu, que me deixara ludibriar por um espertalhão espertinho, que me havia surrupiado uma caixa de fósforos e uma caneca de cerveja, sou um tolo sem tamanho, um bobão exemplar, eles, além de me chamarem louco, concordaram comigo. Às minhas palavras não apresentaram objeção, nenhuma ressalva. Chamam-me louco; e concordam comigo! E o louco sou eu?!