Falado na forma

Tudo tinha que ser falado na forma. E é assim mesmo, perguntou padre Bento ao Juvenal e ao Terêncio, sobre o ocorrido na estrada descampada do riacho fino, perto, quase encostado do cercado, um pouco, não muito encostado, da cerca farpada da fazenda Junta da Bica. Fazenda de Nhô Bezerra, homem por mais que demais, de muito tanto falado, conhecido inté mais que o próprio prefeito, o discorrer de Nhô Bezerra, todos sabiam, tão igual como todos sabem o pecado que é faltar com a verdade, todos sabiam que Nhô Bezerra não era homem de tolerância com mal conduzido. Não aceitava nada que era contrário às normas do livro santo, nem com as coisas que não seguiam a lei. Era tinhoso inté mais que o próprio quando a questão era envolvida a honra e a honestidade de alguém. Era sim, ninguém discordava, um sujeito desprovido de qualquer etiqueta, de qualquer bajulação, não, isso não. Falava na venta, fosse quem fosse, prefeito, delegado, juiz, ah pois sim, pois sim que isso nao fazia ele melhorar a fala. Nada. Nada que fazia aquele homem mudar de ideia só porque quem falava era autoridade, não, pois que não. Era educado na medida da educação do outro. Nunca maltratava quem fosse. Criança, velho, autoridade, padre, todos ele tratava igual. Por isso era muito respeitado.

Inté que sim. Inté que não podia ser de outro modo. Como se fala, como proceder ao narrado de fato tão medonho, tão distorto com o modo bão de viver uns com outros. Não foge do plano divino, inté peço perdão a nosso Senhor se falo seu Nome em vão, não foge do plano se as coisas não correm conforme o planejado, quer dizer, não diz as escrituras que somos imagem e semelhança do Criador? Pois sim. Penso que sim. Inté porque, ainda lembro, eu mirradinho de pequeno, ouvia o falecido padre Nonô, que Deus o tenha, dizer que somos criaturas que o Senhor fez pra gente ser feliz, pra gente viver feito irmão, lembro, tenho claro na memória essas palavras. Tão clarinho que nunca que esqueci, nunquinha mesmo, que disse padre Nonô que nois é semelhança do Pai celestial, jamais que ia esquecer um troço desse, tá pois, que nunca, nunca mesmo. Inté cheguei pensar que Deus fez a gente imagem e semelhança Dele, cheguei inté pensar, que se é isso, então eu era Deus também. Mas não. Não era isso, disse o padre Nonô, quando ele disse que somos imagem e semelhança de Deus, quis dizer que somos capazes de amar e fazer o bem. Que assim a gente fica igual a Deus porque Ele se revela dessa maneira, no querer bem ao próximo. E disse também, que o contrário, é a ausência, a falta de Deus. Confesso que fiquei sem entender direito.

Pois sim. Como que pode ser assim e

acontecer o acontecido, triste, muito triste, acontecer de acontecer aquela tragédia, aquela situação que me faz lembrar das palavras do padre Nonô, que Deus o tenha, e não descreditar do que disse o falecido padre? Como, como sair às ruas e ver tanta gente sem abrigo, ao vento, sem alimento?

Saudades do padre Nonô. Inté que muita coisa que ele dizia eu achava difícil de acreditar, mas gostava do padre Nonô. Era um homem por demais de bom.

Na beira da estrada, assim, meio que jogado, de qualquer jeito, um pedaço de papel. Um pouco amassado, outro tanto rasgado. O papel apareceu para Terêncio como um acontecido sem acontecer, assim, desavisado, sem anúncio, sem pré dizer; apareceu sem que Terêncio desse conta, inté que ia passar quase que cego, nunca que ia ver aquele pedaço de papel jogado sem modos, assim, de qualquer jeito.

O ocorrido, na forma dita por Juvenal, mais concordância de Terêncio, inté que outras pessoas quereriam dar parecer, parecer sem compromisso com verdade, quer dizer, parece r só pra ficar na lembrança do povo, o Terêncio, mais o delegado, mais o padre e dona Nina, mulher do falecido, ainda poucos dias, seu Rosildo, dona Nina, mais delegado, Terêncio e o padre Bento, resolveram que as coisas não podiam ficar no esquecido. Não podia porque Juvenal, com concordância de Terêncio, teimava, mais que tinhoso seu Bezerra, que as coisas não podiam ficar no esquecido. Era preciso saber do ocorrido, dos fatos probatórios, como dizia o doutor delegado, para não cometer injustiça. Nada era mais medonho de ruim que injustiça. Terêncio inté lembrou de sujeito preso sem provas por um juíz, um juiz mequetrefe, que sem provas e de mãos dadas com outro mequetrefe, fizeram um injustiça tão grande que padre Bento disse "esses dois sentirão a espada do Senhor", o que todos concordaram, inté o delegado.

Dona Nina, disse que no dia antes do ocorrido, disse que uma chuva fina, mas demorada, caia. Disse que a estrada estava vazia, que as veis passava uma, as veis duas, que na maioria do tempo, ficava sem passar um alguém. Que no dia antes do acontecido, aconteceu de acontecer que, lá nas bandas da moita da onça, lugar distante do vilarejo, deu pra ouvir, sem saber precisar do que se tratava, disse que deu pra ouvir um estrondo. Um barulho tão medonhento que parecia o fim do mundo, disse, dona Nina quando o delegado perguntou com que parecia o estrondo. Padre Bento só fez o sinal da cruz. Juvenal, mais Terêncio, apenas disseram que o papel, o pedaço de papel na beira da estrada, conforme leitura de seu Bezerra, não era nada mais que um pedaço de papel sem importância. Não dava nem pra ler direito, disse, seu Bezerra, porque faltava pedaço. Dito isso, sem mais, sem menos, seu Bezerra, um tanto avexado, assim, descalmo, inté em contrário com o que era, seu Bezerra, feito boi brabo, sem tempo de pasto manso, seu Bezerra, saiu e adentrou varanda da fazenda, nem se despediu, virou de costas e se foi. Juvenal, inté tentou dizer alguma coisa, mas aí chegou Zé Caboclo, e ficamos no silencioso do silêncio. Zé Caboclo, tudo mundo sabia, delegado, padre, juiz, prefeito, tudo mundo sabia, que Zé Caboclo era homem de serviço de encomenda. Do contrário de coisa mal feita, tudo mundo sabia, mas ninguém provava nada, nada de nadinha, contra Zé Caboclo, era sabido que serviço de Zé Caboclo, homem caprichoso no vestir e no trato, tudo mundo sabia, que serviço de Zé Caboclo era por demais que bem feito. Inté mesmo o juiz mequetrefe, o mesmo que prendeu sujeito sem provas, esses dois sola de bota furada, sabiam, mas qual deles era capaz de fazer com Zé Caboclo, o que fizeram com o sujeito Luiz, a pois que não, não tinham essa coragem, ah pois que não . Com Zé Caboclo, ah, pois, isso não aconteceu. Correu história de que o juiz mequetrefe tinha medo de Zé Caboclo. Pode ser isso mesmo. O fato sabido mesmo era que Zé Caboclo fazia serviço de encomenda, que nunca que provaram nada contra ele, que seu Bezerra, depois de ler os pedaços de papel, entrou num arranque de impaciência. Que Juvenal, homem por demais de experto, inté ia falar alguma coisa, mas, com a chegada de Zé Caboclo, resolveu ficar no silêncio silencioso do pensamento.

Dona Nina nada mais disse pro delegado além de repetir que tinha ouvido um estrondo que se parecia com o fim do mundo. O padre Bento, por demais calmo, nessa calmaria acostumada, ficou. Por mais de quatro veis fez o sinal da Cruz, e só. Juvenal, de repente perdeu a voz, não conseguia falar mais nada. Zé Caboclo, sem explicação, saiu da cidade e seu Bezerra, viajou pra visitar parente, coisa que nunca tinha feito. O delegado, homem correto com o proceder das investigação, o contrário de um juiz mequetrefe, o delegado, sem mais nada pra resolver o acontecido, e pra manter a justiça no topo da razão humana, resolveu dar o caso por encerado. Fato é, do acontecido, e nunca esclarecido, ficou na memória da cidade, um ocorrido de triste lembrança, um acontecido que de muito se disse, mas de nada se provou. Seu Bezerra se foi. Zé Caboclo, pelo que se diz, ficou numa estrada caído depois de emboscada, dona Nina deu seu último suspiro nos braços do padre Bento. Juvenal nunca recuperou a voz. O delegado foi promovido. O prefeito, Boca Mole, digo, Astrogildo Menezes Silva, teve um desmaio, bateu a cabeça e desde esse acontecimento anda pela cidade dizendo ser Deus. Que vai fazer milagre de desvendar as causas do dilúvio, que Adão e Eva vão se casar. Lourdinha, a bela moça, filha caçula da falecida dona Dinorá, Lourdinha, a graciosa moça, dois dias antes do casamento com Geraldo, o vice prefeito da cidade Sonho Meu, na redondeza da mata da onça, Lourdinha resolveu que a festa do casório iria acontecer na cidade e que todos estavam convidados. Foi um acontecimento, saiu na TV, com presença de artista de novela e bençãos do padre Bento, na forma do falado.